O país caribenho está estagnado e perdeu a importância geopolítica, mas ainda fascina intelectuais e a maior parte da esquerda latino-americana.
Em meio às comemorações do 50º aniversário da Revolução Cubana e aos sinais de flexibilização do embargo americano emitidos por Barack Obama, o ditador Raúl Castro surpreendeu ao anunciar o afastamento de dois dos mais destacados representantes da “nova geração” do regime – os ministros Carlos Lage e Felipe Pérez Roque, que já foram tidos como possíveis sucessores dos Castro. O ritual do expurgo incluiu uma reprimenda pública de Fidel Castro aos ex-dirigentes, além de uma humilhante autocrítica feita pelos dois, na melhor tradição stalinista.O assunto ocupou manchetes na mídia mundial e suscita algumas interrogações: por que mesmo depois de ter perdido a importância geopolítica que teve durante a Guerra Fria, Cuba continua despertando tanto interesse? E por que grande parte da esquerda, especialmente na América Latina, tem como símbolo um regime cuja caricatura de welfare state não esconde o Estado policial e um avançado processo de decomposição social?
Parte desse fascínio por Cuba reside no fato de o regime castrista ter nascido de uma revolução popular, ao contrário do que aconteceu nos países do Leste Europeu, onde o comunismo chegou montado nos tanques do Exército Vermelho, que expulsou os nazistas. Ficou impregnado no imaginário coletivo a idéia de que, em 1959, um pequeno grupo de rebeldes idealistas derrubou a corrupta ditadura de Fulgêncio Batista, que transformara Cuba num “bordel americano”. Aquela revolução foi, de fato, original: liderado por Fidel Castro, o Movimento 26 de Julho subverteu o modelo leninista, substituindo o partido por um núcleo de guerrilheiros que, a partir das montanhas, passou à ação armada e aos poucos conquistou o apoio das massas nas cidades. Nesse sentido, a Revolução Cubana foi percebida como um triunfo da vontade contra a lógica política, antecipando o clima de utopia libertária que seria a marca registrada dos anos 60.
A idéia de Cuba como paladina da luta anti-imperialista é outro pilar da narrativa revolucionária. É inegável que, durante muito tempo, Havana representou uma formidável pedra no sapato de Tio Sam, cuja soberba imperial, ajudou a criar o mito do Davi caribenho contra o Golias do Norte. Ainda em 1961, no início do governo John Kennedy, ocorreu o desastrado episódio da Baía dos Porcos – uma iniciativa da CIA, que recrutou exilados cubanos para desembarcar na ilha e derrubar o regime. A derrota da invasão projetou o castrismo no imaginário do Terceiro Mundo. Depois, vieram as fracassadas tentativas dos irmãos Kennedy de assassinar Fidel Castro com o apoio da Máfia – a Operação Mangoose. O ápice do conflito ocorreu durante a Crise dos Mísseis, em outubro de 1962. O mundo quase sucumbiu à hecatombe nuclear quando os americanos descobriram que os soviéticos instalavam ogivas nucleares na ilha. Sob pressão dos Estados Unidos, os mísseis foram retirados, em troca do compromisso americano de não promover diretamente a desestabilização do regime castrista. Por fim, o embargo econômico imposto pelos Estados Unidos a Cuba em 1962, em resposta às nacionalizações de empresas estrangeiras, e que perdura até hoje, virou um magnífico cavalo de batalha para Fidel Castro justificar a necessidade da ditadura.
Papel essencial na construção da mitologia cubana foi desempenhado por um argentino, Ernesto Che Guevara, que renunciou ao poder em Cuba para lutar contra o “imperialismo” no Terceiro Mundo. Ao contrário do herói romântico pintado hoje, Guevara queria exportar o regime comunista, criar “um, dois, muitos Vietnãs”. Sua opção pela luta armada virou um fetiche para a nova esquerda latino-americana, cansada do imobilismo dos partidos comunistas. Mas o fascínio das armas descambou num fracasso trágico, que acabou levando água ao moinho das ditaduras militares. Então, Guevara saiu da vida e o Che entrou na História: assassinado em 1967 por militares da Bolívia, ele se transformaria em um dos principais símbolos da rebelião juvenil de 1968. Depois, a Teologia da Libertação o vestiria com os trajes de um mártir milenarista – imagem com grande apelo numa região de tradição católica.
Nas palavras do sociólogo José de Souza Martins, essa leitura do Che “inverteu o nosso imaginário de esquerda, fazendo da tradição popular e conservadora comunitária, religiosa e anti-capitalista, o cerne de um novo socialismo, crioulo e popular”. Essa é a origem da mística campônio- revolucionária do MST e da ideologia indígena-revolucionária de Evo Morales. Mas a imagem do Che se mostrou tão poderosa que resistiu até mesmo ao fim do comunismo, e o guerrilheiro se tornaria um dos ícones da cultura pop.
Embora em menor grau, o carisma de Fidel, o Comandante-en-Jefe, não foi pequeno para a simbologia revolucionária.
Trajando seu indefectível uniforme verde oliva, ele manteve o apoio de Havana aos movimentos de “libertação nacional” do Terceiro Mundo mesmo depois de ter se alinhado à União Soviética, então favorável à “coexistência pacífica” com os Estados Unidos. Nos anos 70, quando enviou tropas à África para defender interesses geopolíticos soviéticos, Fidel teve o cuidado de pôr a ação sob a rubrica do “internacionalismo proletário”. E o ditador nunca abdicou de certa margem de autonomia em relação a Moscou. Ele resistiu aos ventos reformistas da perestroika e conseguiu escapar à implosão do bloco soviético.
Mas o regime não sairia ileso. Para evitar o colapso posterior, Cuba adotou uma variante do “modelo chinês” – pequena abertura para o mercado, com a manutenção do regime de partido único. Fidel também sobreviveu à doença e hoje paira acima do bem e do mal. O ex-aluno de jesuítas deve se inspirar no Evangelho de João: “Quem crê em mim, ainda que morra, viverá” (Jó 11.25,26). Frei Beto explica.
Boletim Mundo n° 2 Ano 17
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