sábado, 10 de agosto de 2013

Chica da Silva: Senhora sem procedência

Flávia Ribeiro

A escrava Chica da Silva conquistou o homem mais poderoso das Minas Gerais. Ele comprou sua liberdade e a tornou  rica. Mais que isso: a ex- cativa ganhou respeito.
Francisca nasceu pobre e escrava. Conseguiu a liberdade após viver em concubinato com um homem branco. Ficou rica e conquistou um espaço na sociedade. Isso não era lá algo incomum no Brasil do século 18. Nossa Francisca talvez não fosse citada sequer uma vez em livros se não tivesse se envolvido com um dos homens mais ricos do país na época. Depois de seu relacionamento com o contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira, ela virou Chica da Silva.
E Chica da Silva se transformou em um mito. Como ocorre com todos eles, muito foi dito – grande parte, porém, não era verdade ou não tem qualquer comprovação histórica. Ganhou diversos livros, filme no cinema e novela na extinta TV Manchete. Entre outras coisas, Chica foi descrita como perdulária, devoradora de homens, bruxa. O primeiro homem a escrever sobre a ex- escrava em livro foi Joaquim Felício dos Santos, com suas Memórias do Distrito Diamantino, de 1853. Vista à luz da sociedade do século 19, para quem mulatas como Chica eram dignas de desprezo, ela foi apresentada como uma mulher que “não possuía graças, não possuía beleza, não possuía espírito, não tivera educação, enfim, não possuía atrativo algum que pudesse justificar uma forte paixão”. Era feia, de feições grosseiras, e escondia a cabeça raspada sob perucas, diziam.
Mesmo negativas, as citações a Chica em diversos outros livros da época a fizeram conhecida. Só na segunda metade do século 20, no entanto, ela ganhou aspectos positivos. Passou a ser descrita como bela, o que justificaria a paixão de um homem branco e rico como o contratador de diamantes. O que antes era visto como ato perdulário, como viver cercada de luxo e riqueza, virou sinônimo de refinamento. Tornou-se ainda, num período marcado pelo nacional-desenvolvimentismo ufanista, “a primeira heroína da nascente nacionalidade brasileira, redentora da sua raça”, segundo afirma a historiadora Júnia Ferreira Furtado em Chica da Silva e o Contratador de Diamantes, a mais completa biografia da ex- escrava já escrita.
Nos anos 70, surgiu a imagem de Chica que permanece até hoje: sensual, libertária, de sexualidade aflorada. Um novo mito foi criado pelo livro Xica da Silva, de João Felício dos Santos, sobrinho-neto de Joaquim Felício dos Santos, e difundido pelo filme homônimo de Cacá Diegues, ambos de 1976. Além da substituição do “Ch” pelo “X”, a personagem ganhou a beleza de Zezé Motta e a liberação de costumes da mulher daquela década, marcada pela revolução sexual. “Chica é uma personagem com várias construções. A virada do mito, com Cacá Diegues, na verdade diz mais sobre os anos 70 do que sobre a mulher que retrata”, afirma a historiadora Keila Grinberg, professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e co-autora do livro para- didático Para Conhecer Chica da Silva.

Outras Chicas
Em 1953, a poetisa Cecília Meireles versava em seu Romanceiro da Inconfidência: “Ainda vai chegar o dia / de nos virem perguntar / – Quem foi Chica da Silva, / que viveu neste lugar?” Pois então: afinal, quem foi ela? Livre dos anacronismos dos séculos subsequentes, Chica da Silva não foi uma exceção. Foi, sim, um produto de seu tempo. “Muitas ex- escravas afirmavam seguidamente que sua condição de liberta devia-se a elas próprias”, afirma Júnia Furtado, que é professora da Universidade Federal de Minas Gerais. “Mais de 50% dos chefes de domicílio no arraial do Tejuco (como era chamado, então, o distrito de Diamantina) na época eram mulheres libertas, ex- escravas.”
Havia, portanto, muitas outras Chicas, ex- escravas que viviam como senhoras. Muitas eram amantes ou mesmo casadas com homens brancos e poderosos. Outras viviam de seu próprio trabalho, ligado, em grande parte das vezes, ao comércio. Não só no Tejuco, como diz Júnia: “Essa formação social era típica de áreas urbanas, e a região da mineração foi a área mais urbanizada da colônia”. Para ela, Chica passou a ser vista como única porque, objeto de livro, não se perdeu a memória da sua existência. “Já as demais ficaram sob o manto do esquecimento a que a sociedade machista, escravocrata e tradicional do século 19 as relegou”, afirma.
Em 1774, época de Chica, havia 511 residências no Tejuco. Dessas, 282 eram chefiadas por homens livres ou forros – apenas 89 eram negros ou mulatos. No entanto, as outras 229 casas eram comandadas por mulheres livres ou forras. E, dessas, 197 eram negras ou mulatas. Incluindo Chica. Elas se misturaram à sociedade branca. Eram escravas que ganharam a alforria, foram concubinas de brancos ricos, tiveram filhos com eles, enriqueceram, montaram um patrimônio, frequentaram a Igreja e participaram de ordens religiosas de elite, reproduzindo o modo de vida das brancas, para serem aceitas.
Sobre Chica, não se sabe ao certo quando nasceu, apenas que foi entre 1731 e 1735, no arraial do Milho Verde, perto do Tejuco. Não era negra, e sim parda – o pai dela, Antônio Caetano de Sá, era branco, e sua mãe, Maria da Costa, era uma escrava africana da Costa da Mina. Embora não haja comprovação histórica, acredita-se que Chica era uma mulher bonita, já que atraiu um homem poderoso.
Escrava do médico Manuel Pires Sardinha, ela se envolveu com seu proprietário e foi mãe de Simão Pires Sardinha, nascido em 1751. Dois anos depois, foi viver com o contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira, que a comprou. Acredita-se que Sardinha a vendeu porque teria se comprometido com a Igreja a deixar de viver ilicitamente com duas de suas escravas – Chica, como se sabe, era uma delas. Poucos meses após comprá-la, em pleno Natal de 1753, João Fernandes deu a alforria a Chica. Data do ano seguinte o primeiro documento que a apresenta como a parda forra Francisca da Silva. Naquela época, o sobrenome Silva, bastante adotado no mundo português, indicava o sujeito sem procedência ou origem definida.

Mulher de poderoso
Nossa “Francisca sem procedência” passou a assinar Francisca da Silva de Oliveira depois que a primeira filha do casal, Francisca de Paula, nasceu, em 1755. “Foi com esse nome que Chica iniciou uma nova etapa em sua vida, em que se afirmava no mundo livre por seus próprios meios, porém conectada ao homem ao qual permaneceria ligada até o fim de seus dias”, escreveu Júnia. A nova vida de Chica foi bem diferente daquela a que estava acostumada. Graças à união com o contratador de diamantes, o homem mais poderoso da região, ela ascendeu socialmente e ganhou privilégios. Pôde, por exemplo, frequentar igrejas e irmandades. Chegou a ser madrinha de batismo e casamento inúmeras vezes – o que prova sua boa posição na rede de relações da cidade, já que era costume escolher para madrinha pessoas influentes. Entre as ordens religiosas, frequentou algumas que, teoricamente, eram apenas para brancos, como a Irmandade do Carmo, a mais elitista de Tejuco.
Chica não se transformou apenas em uma pessoa rica – também ganhou respeito. Parte disso deve-se ao fato de ter virado uma espécie de mecenas da região. Costumava promover bailes e peças de teatro. “Uma mulata podia virar uma dama e ninguém tocava no assunto”, diz a historiadora Sheila Siqueira de Castro Faria, diretora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora de artigos sobre mulheres forras, como “Sinhás Pretas: Acumulação de Pecúlio e Transmissão de Bens de Mulheres Forras no Sudeste Escravista”. Apesar disso, era analfabeta, embora tenha aprendido ao menos a assinar o nome, libertando-se de mais um estigma.
A ex- escrava teve ainda uma legião de escravos. Eram pelo menos 104, negros como sua mãe ou mulatos como ela. A maioria das negras forras tinha escravos – ou para se afastar do mundo do trabalho, como as senhoras brancas, ou para trabalhar com elas, aumentando sua riqueza. “A filosofia abolicionista é do século 19. No 18, quando Chica viveu, não havia nenhuma incoerência no africano vir como escravo e, ao virar livre, comprar seus próprios escravos”, diz Sheila. A própria mãe de Chica, Maria da Costa, foi escrava de um ex- escravo, Domingos da Costa.
Ainda contrariando os mitos criados em torno dela, Chica tampouco era uma devoradora de homens. Teve filhos com apenas dois. O primeiro ainda com seu primeiro dono, o médico. Todos os outros 13 rebentos tiveram o mesmo homem como pai, João Fernandes, durante os 17 anos em que viveram juntos. Os dois nunca foram casados oficialmente, mas viveram em concubinato até o contratador de diamantes viajar para Portugal, em 1770 – ele foi defender sua herança após a morte do pai e não voltou mais.
João Fernandes morreu em 1779. Sete anos depois, em 16 de fevereiro de 1796, foi a vez de Chica, cuja cerimônia fúnebre foi “cercada de toda pompa a que ela tinha direito como irmã do Santíssimo, de São Francisco de Assis, das Almas, da Terra Santa, das Mercês e do Rosário”, relata Júnia Furtado. Quando morreu, segundo a autora, “não era mais uma escrava parda sem nada de seu; era senhora de ‘grossa casa’, possuidora de bens imóveis e numerosos escravos”. Era, já havia mais de 40 anos, uma mulher importante, que viveu com um homem poderoso, acumulou fortuna e se tornou, como disse Cecília Meireles também no Romanceiro da Inconfidência, “a Chica-que-manda!”

Prole embranquecida
Um dos filhos de Chica se envolveu com os inconfidentes mineiros.
Chica da Silva lutou para livrar os filhos do estigma da cor e da escravidão. Todos esconderam do jeito que puderam o passado de ex- escrava da mãe, para assim continuar a ascender socialmente. João Fernandes conseguiu que dom José I, o rei de Portugal, legitimasse todos os rebentos.
A tentativa de “embranquecer” a prole tinha um objetivo: garantir o futuro de todos na sociedade. Para isso, Chica mandou todos os cinco filhos homens estudarem em Portugal e as mulheres, em um convento. De todos os herdeiros, quem mais se destacou foi o filho mais velho, Simão Pires Sardinha. Graduou-se em Artes em Lisboa, virou membro da Ordem de Cristo – “a maior honraria que um indivíduo não nobre poderia almejar”, segundo a historiadora Júnia Ferreira Furtado –, sócio- correspondente da Real Academia de Ciências de Lisboa, sargento-mor das ordenanças das Minas Gerais e almoxarife do Reino. Em 1788, Simão envolveu-se com os participantes da Inconfidência Mineira – embora nunca tenha sido formalmente acusado disso. De acordo com Júnia, “foi Simão que mandou avisar o alferes (Tiradentes) de que estava sob vigia e que sua prisão era iminente”.

O brilho do diamante
Companheiro da ex- escrava tinha autorização para explorar a pedra preciosa.
Brasileiro, filho do sargento-mor português João Fernandes de Oliveira com a carioca Maria Inês de Souza, João Fernandes nasceu em 1727 e ficou rico quando, em 1739, seu pai arrematou seu primeiro contrato de exploração de diamantes da demarcação Diamantina – área em torno do arraial do Tejuco que incluía povoados como Milho Verde, Gouveia, São Gonçalo, Chapada e Rio Manso. Era ele o responsável por controlar o fluxo de diamantes da região e o pagamento à Coroa portuguesa. João Fernandes estudou em Portugal, na Universidade de Coimbra, e formou-se doutor em Cânones, o que o habilitava ao exercício do direito civil e do canônico. Tornou-se cavaleiro da Ordem do Cristo e, aos 25 anos, desembargador. De volta ao Brasil, seguiu para o Tejuco, onde assumiu o quarto contrato diamantino conquistado por seu pai. Foi esse homem de formação acadêmica impecável que, aos 26 anos, encantou-se com Chica, na época ainda uma escrava com entre 18 e 22 anos e já mãe de Simão. Controlando a extração de diamantes, João Fernandes acumulou incrível riqueza. Chica também. Tanto que, mesmo após a ida dele para Portugal, a ex- escrava manteve a riqueza e a influência.

Aventuras na História n° 051

Cabo da Boa Esperança: Na esquina do mundo

Fabiano Onça

Nunca uma caravela havia ido tão longe. Em 1488, Bartolomeu Dias contornou o traiçoeiro cabo da Boa Esperança, no sul da África, e provou que era possível chegar ao Oriente pelo mar.
Como você se sentiria se, um dia, seu soberano o chamasse para uma audiência e lhe confiasse a seguinte missão: navegue até onde nenhum homem jamais navegou. Vá até o fim da África, rumo ao desconhecido, e veja o que encontra por lá. Você aceitaria? Mesmo sabendo que teria de atravessar mares traiçoeiros, com tempestades capazes de destruir seu navio em minutos? Mesmo ciente dos longos períodos de calmaria, em que sua embarcação ficaria à deriva durante semanas sob um calor de fritar a cabeça? Mesmo tendo ouvido relatos de que o litoral estaria coalhado de selvagens, prontos a matar quem tentasse pôr o pé em terra? Essa foi a decisão que o navegador português Bartolomeu Dias teve de tomar em 10 de outubro de 1486, diante de dom João II, rei de Portugal.
Naquela época, as nações ocidentais não sabiam o que existia ao sul da África. A região não havia sido descrita em mapas nem contava com portos amigos onde aventureiros pudessem buscar apoio ou consertar uma avaria em seus navios. A proposta de dom João II, sem dúvida, beirava as raias da loucura. Mas nem ele nem Bartolomeu padeciam de insanidade. Muito pelo contrário: eram homens ambiciosos, dispostos a correr riscos. A recompensa? Encontrar a rota marítima para as Índias (nome genérico dado às regiões orientais – muitas delas situadas na atual Índia – que produziam valiosas especiarias como pimenta e cravo).
“Embora tenha governado relativamente pouco tempo (de 1481 a 1495), dom João II ocupa um lugar fundamental na história portuguesa da transição dos tempos medievais para os modernos”, escreveu o historiador português Luis Adão da Fonseca em D. João II (não publicado no Brasil). Quando assumiu o trono, ele não se deixou influenciar por forças estrangeiras e demonstrou aversão às intrigas palacianas. Rapidamente, tomou uma série de medidas para tirar poder da nobreza e concentrá-lo em suas mãos.
O monarca logo foi vítima de conspirações. Nobres, liderados por Fernando II, duque de Bragança, começaram a flertar com o reino vizinho de Castela, pedindo por uma intervenção contra o jovem governante. Dom João II pareceu não tomar atitude. Quando a conspiração estava quase madura, o monarca caiu como um raio. Seu serviço secreto havia interceptado várias mensagens comprometedoras. O duque de Bragança foi executado. No ano seguinte, o próprio dom João II matou a punhaladas o duque de Viseu, seu primo, também acusado de conspiração. Sua autoridade nunca mais foi questionada.
Era esse o homem – ambicioso, estrategista, calculista – que estava diante de Bartolomeu naquele 10 de outubro. Um rei que sabia que uma nova rota para as especiarias da Índia traria a Portugal uma riqueza incalculável. Justamente por isso dom João II tinha dedicado boa parte do seu reinado à revitalização da Escola Naval de Sagres – um dos maiores centros de excelência em navegação da época, fundado por seu tio dom Henrique, o infante.
Bartolomeu, por sua vez, era um membro da pequena nobreza. Sua origem é obscura, mas alguns historiadores afirmam que ele nasceu por volta de 1450, na região de Trás-os-Montes, no norte de Portugal. Era parente de Dinis Dias e Fernandes, desbravador das ilhas de Cabo Verde. É provável, inclusive, que uma indicação dele tenha permitido a Bartolomeu ser admitido na Universidade de Lisboa, onde adquiriu conhecimentos raros naquela época: estudou astronomia e matemática.
Em 1481, numa expedição chefiada pelo veterano marinheiro Diogo de Azambuja (da qual também participou um navegador genovês chamado Cristóvão Colombo), o jovem Bartolomeu assumiu a função de capitão de um dos navios, o São Cristóvão. A missão era construir a primeira colônia européia na África, a fortaleza costeira de São Jorge da Mina (no atual litoral de Gana), fundada no ano seguinte. Foi ali, naquele entreposto perdido no meio da vasta costa, que Bartolomeu familiarizou-se com o comportamento do mar africano, com suas correntes, seus ventos e suas calmarias.
Ao aceitar a missão de tentar contornar a África, Bartolomeu deixou dom João II aliviado. Afinal, os outros navegadores de confiança do monarca estavam incapacitados. O predileto, Diogo Cão, morrera (não existem registros precisos de onde e por quê) naquele mesmo ano, 1486, logo após mapear o rio Congo e parte do litoral da Namíbia – até então, o lugar mais ao sul ao qual os portugueses tinham se atrevido a ir. Já o velho Diogo de Azambuja, fundador da fortaleza de São Jorge da Mina, havia ficado louco.

Na rota do Cão
A expedição de Bartolomeu Dias saiu do porto de Lisboa no fim de agosto de 1487. O navegador comandava duas pequenas caravelas: São Cristóvão e São Pantaleão, cada uma com cerca de 50 toneladas. Além delas, Bartolomeu mandara preparar uma galeota, embarcação menor que levava a mais preciosa das cargas: água e comida extras. É possível que Bartolomeu, lendo os relatos de Diogo Cão, tenha sido alertado para um fato fundamental: as terras ao sul não tinham bons lugares para aportar e conseguir alimento. O comando da estratégica galeota ficou nas mãos de Diogo Dias, irmão de Bartolomeu. Para completar o time, foram convocados dois dos melhores pilotos da frota portuguesa: Pêro de Alenquer e João Infante. Se a expedição se perdesse no meio do caminho, não haveria melhores pessoas para orientar, pelas estrelas, os barcos de volta à costa.
O motivo real da viagem foi mantido em segredo. Oficialmente, ela seria realizada para procurar o mítico reino de Preste João (uma suposta comunidade cristã perdida em meio a terras bárbaras). “Nos bastidores, os portugueses já se preparavam para descobrir caminhos únicos para as Índias e tomar posse de novas terras”, afirma o historiador português Francisco Contente Domingues, da Universidade de Lisboa. Para impressionar os nativos africanos, o rei mandou que Bartolomeu levasse a bordo dois negros e quatro negras, capturados na viagem de Diogo Cão. Devidamente trajados à moda da corte portuguesa, os prisioneiros deveriam ser desembarcados no litoral africano para que os moradores locais se impressionassem com a “grandeza” dos modos lusitanos.
Durante o mês de setembro, a pequena frota singrou o oceano Atlântico sem maiores contratempos. Após uma pequena parada em Cabo Verde, os portugueses começaram a se afastar do litoral africano. A manobra, claro, não foi acidental. Bartolomeu começava a utilizar o conhecimento quase exclusivo que possuía da costa da África, realizando uma manobra chamada “a volta do mar”. A artimanha consistia em afastar-se do litoral, navegando para oeste nas imediações do golfo da Guiné, para depois se aproximar novamente da costa. Com isso, os portugueses evitavam o interior do golfo da Guiné, conhecido por suas infernais calmarias. A manobra surtiu efeito. Quando alcançaram novamente o litoral africano, Bartolomeu Dias estava quase na entrada da luxuriante foz do rio Congo. Até ali, os portugueses estavam em segurança. Diogo Cão, outro navegador, já havia estado lá anos antes e havia cartografado a área.
O desafio maior começou quando, em outubro, a frota passou pelo último ponto desbravado até então, o cabo do Padrão (o atual Cape Cross), a aproximadamente 22 graus de latitude. Naquele lugar, Diogo Cão havia erigido um padrão (um grande marco de pedra) com uma cruz no topo. A partir dali, Bartolomeu não poderia contar mais com mapas. O mar, suas correntes, seus ventos – tudo seria estranho. Para piorar, as chances de descer à terra eram quase nulas. À sua frente, desenhava-se um litoral rochoso, árido, assolado por ventanias de areia – aquele território desértico seria, séculos depois, denominado Costa do Esqueleto, por conta dos intermináveis naufrágios ali ocorridos.
Após passar pelo cabo do Padrão, Bartolomeu navegou por cerca 270 milhas náuticas rumo ao sul (cerca de 500 quilômetros), sempre bordejando a costa. Ao chegar à baía batizada de Angra Pequena (próxima à atual cidade de Luderitz, na Namíbia), Bartolomeu intuiu, pelo recorte do litoral, que estava perto de finalmente dobrar a costa da África. Deixou a galeota de suprimentos ancorada em Angra Pequena e partiu para o ataque com suas duas caravelas.

Surpresa a bombordo
Mesmo olhos experientes podem se enganar. Após passar, em 26 de dezembro de 1487, ao largo de uma baía, batizada pela tripulação de Santo Estevão (atualmente Elizabeth Bay, na Namíbia), Bartolomeu Dias constatou que o suposto “fim” da África não estava onde ele pensava. Até onde a vista alcançava, ainda havia costa – e nenhum sinal promissor. Àquela altura, Bartolomeu poderia voltar e, assim como anos antes fizera Diogo Cão, relatar suas descobertas para que, mais tarde, outra expedição tentasse ir adiante. Mas não foi isso que ele fez. As duas caravelas permaneceram em curso. Após navegar outras intermináveis 150 milhas náuticas (ou 280 quilômetros) para o sul, já próximo dos 29 graus de latitude, ele encontrou a foz de um rio (hoje o Orange, na divisa entre Namíbia e África do Sul).
Ali começou o martírio. Durante cinco dias, ventos contrários empurraram os navios de volta, obrigando-os a darem voltas e mais voltas na tentativa de quebrar a força da ventania. Vencido o obstáculo, Bartolomeu seguiu firme por mais 70 quilômetros para o sul. Na altura da atual cidade de Port Nolloth, os maus ventos transformaram-se numa potente tempestade. Obrigados a abandonar o refúgio da costa sob risco de baterem em rochedos, os dois navios foram atirados ao coração da tormenta. Por 13 dias, as caravelas navegaram sem rumo, ao sabor da tempestade, lutando para não serem engolidas pelas ondas gigantescas. Quando o castigo amainou, os portugueses não faziam idéia de onde tinham ido parar. Só sabiam que o tempo esfriara significativamente – segundo alguns historiadores, o motivo da mudança no clima era a localização: naquele momento, as naus portuguesas teriam chegado a 40 graus de latitude.
A situação era desesperadora. A comida já escasseava. Os marujos não sabiam, mas estavam a mais de 1200 quilômetros do local onde a galeota de Diogo Dias havia sido deixada. A última esperança para sair da enrascada estava no maior trunfo da marinha portuguesa: o uso avançado de instrumentos marítimos, como o astrolábio, e a experiência ímpar de seus navegadores. Pêro de Alenquer fez os cálculos e chegou à conclusão de que eles estavam muito ao sul. Deram meia-volta.
Após dias navegando para o norte, os portugueses encontraram terra. Mas não onde esperavam. Eles imaginavam ver a costa a estibordo (lado direito, tendo como referência a frente do barco). Mas viram montanhas a bombordo, o outro lado do navio. Os cálculos foram refeitos e eles perceberam que, enquanto navegavam em alto-mar, haviam ultrapassado o extremo sul da África. Mesmo sem querer, Bartolomeu tinha conseguido. Quando chegaram à costa, libertaram os negros que traziam consigo e fincaram, na altura do recém-batizado rio do Infante (hoje o Great Fish, na África do Sul), um padrão de pedra para atestar aos viajantes posteriores que Portugal havia ido até lá primeiro.
Naquele momento de glória, Bartolomeu estava dividido. Especula-se que ele tenha tentado seguir viagem e chegar às Índias – de fato, as naus avançaram mais alguns dias rumo ao Oriente. Mas as privações tinham sido muitas e, sem a galeota de suprimentos, a aventura tornava-se impraticável. Foi preciso retornar para casa. No caminho de volta, as naus portuguesas foram bordejando a costa. Em 3 de fevereiro de 1488, aos 34 graus de latitude, Bartolomeu finalmente avistou a tão sonhada “esquina” da África. A travessia foi feita sob ferozes tempestades, o que inspirou o navegador a batizar o local de cabo das Tormentas. O nome, porém, teve vida curta. Em dezembro, dez meses após realizar a façanha, Bartolomeu aportou em Lisboa. O rei dom João II, exultante com a nova rota comercial, preferiu deixar para a história um nome menos sombrio, e rebatizou o lugar como cabo da Boa Esperança.

A vingança do cabo
Depois do feito, Bartolomeu Dias não recebeu condecoração alguma. Permaneceu sem grandes incumbências, relegado ao emprego burocrático de recebedor da Casa da Guiné (responsável por receber e catalogar os bens provenientes da fortaleza de São Jorge da Mina). Mesmo assim, mantinha-se esperançoso para liderar a futura expedição que finalmente levaria os portugueses para as Índias. O rei dom João II, entretanto, preferiu não dar novos passos antes que os novos domínios portugueses fossem regulamentados com a bênção da Igreja. Enquanto nada se resolvia no campo político, Cristóvão Colombo realizou a façanha que ofuscaria para sempre o contorno do cabo da Boa Esperança: em 1492, liderando uma frota espanhola, o genovês chegou à América.
Dom João II morreu em 1495, levando consigo as chances de que Bartolomeu conduzisse uma expedição marítima para as Índias. Com a ascensão do novo monarca, Manuel I, Vasco da Gama ganhou a preferência da corte. No dia 8 de julho de 1497, ele partiu para, enfim, alcançar as Índias de barco. Levou como piloto Pêro de Alenquer, que havia participado do contorno do cabo da Boa Esperança.
A Bartolomeu coube o papel de coadjuvante em outra aventura. Ele comandou uma das naus da expedição de Pedro Álvares Cabral que aportou no Brasil e, em seguida, rumou para as Índias. Na madrugada de 23 de maio de 1500, uma tempestade atacou os barcos portugueses. Ironicamente, a frota se encontrava próxima do cabo da Boa Esperança. Quando a intempérie se dissipou, quatro embarcações e 400 homens, incluindo Bartolomeu Dias, tinham sido engolidos pelo mar – Cabral e o resto da frota continuaram sua jornada rumo ao Oriente.
A esperança de Bartolomeu de chegar às Índias acabou vencida pelas tormentas do cabo que ele havia descoberto. Seu pioneirismo, entretanto, foi crucial para as gerações de marinheiros que o sucederam. “Bartolomeu Dias realizou uma verdadeira revolução geográfica ao provar a intercomunicabilidade do Atlântico e do Índico. Isso mudou a história do comércio na Europa e deflagrou o início do capitalismo mercantil”, diz o historiador Francisco Contente Domingues.

Tatuagens e fantasmas
O cabo da Boa Esperança povoou o imaginário dos marinheiros.
Até o fim do século 19, o cabo da Boa Esperança foi um dos dois pontos obrigatórios que os navios tinham de cruzar para ir da Europa até a Ásia (o outro era seu “irmão” cabo Horn, na América do Sul). Cruzá-lo tornou-se uma espécie de batismo para os marinheiros. Os britânicos, por exemplo, costumavam tatuar cada marujo que fizesse a travessia com uma estrela na orelha esquerda. A cada nova passagem pelo cabo, o marinheiro ganhava mais uma estrela, até completar cinco. As marcas passavam então para a orelha direita. Quando um marinheiro tinha as duas orelhas tatuadas com cinco estrelas, ele ganhava o direito de marcar duas pequenas estrelas vermelhas na testa, indicando que ele já havia cruzado o cabo mais de dez vezes – quem chegava a esse nível, dizia-se, jamais pagava a conta num bar.
Além do costume britânico, o cabo da Boa Esperança deu origem a algumas lendas. A mais célebre é a do Holandês Voador. Segundo ela, um capitão chamado Van der Decken teria tentado atravessar as revoltas águas do cabo em 1641, vindo do Oriente. Porém, quanto mais tentava, mais seu navio era atirado de volta. O holandês não se deu por vencido e tentou uma última arremetida. Seu navio, como que por castigo divino, bateu nos rochedos e começou a afundar. Van der Decken, à beira da morte, blasfemou: “Eu vou atravessar este cabo mesmo que tenha de navegar até o dia do Juízo Final!” Desde então, ele reapareceria no cabo nos dias de tempestade, num fantasmagórico navio com as velas içadas contra o vento.
Os nevoeiros constantes no cabo inspiraram outra lenda. No século 18, o pirata holandês Jan van Hunks teria ficado famoso pelo hábito subir as montanhas que circundam o cabo para tragar substâncias alucinógenas com seu cachimbo. Certo dia, diz a lenda, um estranho sentou a seu lado e iniciou uma competição para ver quem fumava mais. Depois de vários dias, Jan derrotou o adversário, que revelou ser o diabo. O coisa-ruim desapareceu, levando consigo o pirata. Cada vez que o cabo é tomado pela névoa, seria um sinal de que Van Hunks e o capeta estão por perto com seus cachimbos.

Aventuras na História n° 051

Os dentes do ofício: a evolução do trabalho dos dentistas

Mariana Sgarioni

Eles já recomendaram bochechos com xixi e foram especialistas em cortar cabelos - mas salvaram nossa pele ao inventar a anestesia. Conheça a milenar (e assustadora) saga dos dentistas.
Deitado, de boca aberta há vários minutos, o homem não pára de suar frio. Na luta para lhe extrair um den­te do siso, o dentista apóia os cotovelos no peito do paciente. O sangue jorra até que, enfim, o dente sai na ponta do alicate – o temido boticão. Esta cena aconteceu há mais de 2 mil anos. Mas pode também ter acontecido agora há pouco, em um consultório perto da sua casa. “O cirurgião deve agarrar firmemente a cabeça do paciente entre seus joelhos e aplicar um boticão robusto, extraindo o molar verticalmente, para que não se quebre”, escreveu Albucassis, cirurgião árabe do século 5. É lógico que hoje contamos com novas tecnologias – a começar pela anestesia –, mas o método e os instrumentos para esse tipo de intervenção não mudaram tanto assim. Deve ser por isso que, quando se fala em dentista, muita gente sente um certo incômodo (para não dizer pânico).
Embora nosso imaginário sugira outra coisa, os dentistas estão bem longe de serem torturadores sádicos. Foram eles que batalharam, por exemplo, para inventar a anestesia, que nos livra de dores muito piores que as de dente. Tiveram ainda uma importante participação na pesquisa de medicamentos e cuidados que contribuíram muito para a evolução do saneamento e da saúde pública. Entretanto, é verdade que, apesar de ter se estabelecido em cima de sólidos preceitos científicos, a história da odontologia passa por alguns momentos horripilantes. Prepare-se para conhecê-la melhor a partir de agora. E pensar sobre isso quando estiver sentado numa sala de espera, lendo uma revista velha e ouvindo Ray Conniff, enquanto aguarda por mais uma sessão daquele famigerado tratamento de canal.

Grandes arrancadas
Há tempos os dentes nos causam dor de cabeça (e de dente, lógico). Pesquisadores da Universidade de Nova York, nos Estados Unidos, descobriram que, na África, uma bactéria causadora de cáries já infestava a boca de seres humanos há 100 mil anos. Os cuidados com os dentes também parecem ser bastante antigos – e podem não ter sido exclusividade da nossa espécie. Em setembro deste ano, paleontólogos espanhóis divulgaram a descoberta, na região de Madri, de dois molares neandertais com mais de 60 mil anos. Eles traziam marcas aparentemente causadas por gravetos de madeira, o que indica que esses hominídeos (que acabaram extintos) gostavam de palitar – ou “escovar” – os dentes.
Os mais antigos relatos conhecidos sobre problemas com os dentes têm cerca de 5 mil anos. Eles dizem que as cáries seriam causadas por “vermes” e foram encontrados em tabletes de argila sumérios feitos na Mesopotâmia, a planície situada entre os rios Tigre e Eufrates (no atual Iraque). Na mesma região, foram achadas peças de limpeza dentária, como palitos feitos de metal trabalhado, que teriam sido elaboradas por volta de 3500 a.C. Demoraria um bocado, entretanto, para que alguém achasse necessário formar profissionais especializados em odontologia.
Os primeiros dentistas de que se tem notícia eram médicos. O mais antigo deles foi o egípcio Hesi-Re, que viveu há cerca de 4500 anos. Ele era conhecido como o “maior médico que tratava dos dentes” – modo como foi eternizado em hieróglifos. Parece que a especialidade de Hesi-Re e seus contemporâneos era a extração – é o que indicam os crânios banguelas daquela época que foram encontrados. O que não faltava era trabalho: os egípcios sofriam de uma grande variedade de enfermidades dentais, causadas por falta de higiene e por sua alimentação. A farinha usada no pão, base da dieta egípcia, vinha carregada de grãos de areia. O mesmo acontecia com os vegetais, que eram cultivados em solo arenoso e não eram lavados adequadamente. O hábito involuntário de mastigar areia causava um desgaste enorme nos dentes, além de inúmeros abcessos na boca.
Papiros catalogados na Universidade de Leipzig, na Alemanha, registram diversos tratamentos egípcios para doenças bucais. Para o dente que “corrói as partes altas da carne”, um deles recomenda “amassar uma pasta e aplicar sobre o dente uma parte de cominho, uma parte de incenso e uma parte de cebola” – imagine só o resultado. Já para os abcessos, o tratamento dos egípcios era feito com furos na gengiva, que aliviavam a pressão das bolas de pus que se formavam no local.
Na Grécia antiga, os hábitos de higiene bucal eram um pouco mais parecidos com os nossos. Diocles de Caristo, médico que viveu no século 4 a.C., aconselhava: “A cada manhã deveis esfregar vossas gengivas e dentes com os dedos desnudos e com menta finamente pulverizada, por dentro e por fora, e em seguida deveis retirar todas as partículas de alimento aderidas”. Já os romanos, influenciados pela cultura grega, usavam pós dentifrícios – parentes distantes dos cremes dentais – feitos à base de ossos, cascas de ovos e conchas de ostra. A escovação também foi defendida por ninguém menos que Maomé. No Oriente Médio do século 7, o fundador do islamismo orientava seus seguidores a usarem o siwak – o precursor da escova de dentes, feito de um ramo de árvore cuja madeira contém bicarbonato de sódio.
A principal contribuição dos muçulmanos para a odontologia foi dada por Avicena, que viveu entre 980 e 1037. Um dos médicos mais respeitados do Oriente Médio, ele lançou princípios que chegaram à Europa e se tornaram a base do tratamento dentário medieval. O principal deles se refere a fraturas de mandíbula: Avicena recomendava a aplicação de uma bandagem de fixação em torno do queixo, cabeça e pescoço, além de uma pequena tábua ao longo dos dentes.

Barbeiragens dentárias
Na Idade Média, os responsáveis por exercer a medicina eram os monges católicos. A coisa mudou de figura a partir de 1163, quando a Igreja os proibiu de realizar qualquer tipo de procedimento cirúrgico – incluindo os tratamentos dentários. Essas tarefas sobraram então para os barbeiros. Mas por quê? Em primeiro lugar, é bom dizer que os barbeiros medievais não cuidavam apenas de pêlos. De tanto ir aos mosteiros fazer a barba e tosar os cabelos dos monges, os barbeiros acabavam aprendendo um pouco de medicina com eles. Tornaram-se, com o tempo, auxiliares cirúrgicos dos monges, especializando-se nos diversos tipos de intervenção que os sacerdotes não podiam mais fazer. Tiravam pedras da bexiga, abriam abscessos, praticavam sangrias e, é claro, extraíam dentes. Com o passar dos anos e o afrouxamento da linha dura da Igreja, os monges puderam fazer cirurgias de novo. Mas os barbeiros tinham se tornado arrancadores de dentes tão bons nisso que alguns médicos encaminhavam a eles os pacientes que precisavam de ajuda odontológica.
O aumento de prestígio dos cirurgiões-barbeiros, como passaram a ser chamados, começou a causar confusão dentro da medicina. Em 1540, o rei Henrique VIII, da Inglaterra, publicou um estatuto para a Real Comunidade dos Cirurgiões-Barbeiros, delimitando as áreas de atuação dos barbeiros e dos médicos. As extrações dentárias ficaram permitidas aos dois grupos. Até o século 18, a maior parte dos barbeiros seguiu oferecendo serviços dentários aos seus clientes. E a odontologia continuou sendo exercida de forma um tanto mambembe, por profissionais muitas vezes inaptos. Alguns, por exemplo, costumavam armar tendas em mercados e feiras livres – assistir às manipulações bucais feitas pelos barbeiros era uma das diversões preferidas dos passantes.

Enfim, uma ciência
O hábito de ter dentes arrancados em praça pública começou a mudar na época em que o francês Pierre Fauchard escreveu O Cirurgião Dentista. Publicado em 1728, o livro foi um marco na história da odontologia. “Aperfeiçoei e também inventei várias peças artificiais para a substituição dos dentes e para remediar sua perda completa, ainda que em prejuízo do meu próprio interesse”, escreveu, anunciando a invenção de pivôs e dentaduras – e achando que as soluções duradouras iriam diminuir sua clientela. Foi a partir do trabalho de Fauchard que a odontologia foi separada da medicina (e da barbearia).
Além de ter sido pioneiro nas próteses, Fauchard dotou o gabinete de dentista de cadeira apropriada (antes os tratamentos eram, em geral, feitos no chão) e defendeu a odontologia preventiva. Algumas das receitas eram bizarras: Fauchard mandava, por exemplo, enxaguar a boca de manhã com várias colheradas da própria urina. Apesar disso, foi reverenciado por seus sucessores. “Considerando as circunstâncias em que viveu, Fauchard merece ser lembrado como um ilustre pioneiro e fundador da ciência odontológica. Se sua prática era tosca, isso se deveu aos tempos”, disse certa vez o dentista americano Chaplin Harris, que em 1840 fundou a primeira escola de odontologia do mundo, o Baltimore College of Dental Surgery, nos Estados Unidos.
Pouco depois que Harris fundou sua faculdade, um dentista americano deu uma contribuição decisiva para minimizar o sofrimento dos pacientes. Em 1844, o jovem Horace Wells resolveu fazer uma experiência em si mesmo: inalou óxido nitroso – ou “gás hilariante” – antes de um colega lhe extrair um dente. O gás havia sido descoberto em 1776 pelo cientista inglês Joseph Priestley, que provara sua capacidade de acalmar as dores físicas e provocar uma sensação agradável. Sob efeito do gás, Wells não sentiu dor alguma. E virou uma celebridade instantânea.
A fama de Wells, entretanto, durou pouco mais de um mês. Numa demonstração de extração dentária com óxido nitroso, feita diante de um grupo de cirur­giões da Universidade Harvard, o paciente sentiu uma dor danada. Tudo porque Wells retirou o gás antes do tempo. A banca examinadora não perdoou e ele acabou caindo em descrédito. Nesse meio-tempo, quem se deu bem foi William Thomas Green Morton, aluno de Wells que, aconselhado pelo químico Charles Jackson, substituiu o óxido nitroso por éter. Depois de fazer testes em animais e em si mesmo, extraiu um dente de um paciente com absoluto sucesso – ou seja, sem um só grito de dor.
Wells, Morton e Jackson se engalfinharam para provar quem tinha sido o inventor da anestesia. Em 1848, Wells acabou se suicidando de desgosto. Só seis anos depois é que um congresso da Associação Médica Americana resolveu bater o martelo e disse que o descobrimento da anestesia tinha sido obra do “recém-desaparecido Horace Wells”. Morton e Jackson morreram na miséria.
Após a controvertida invenção da anestesia, os dentistas ainda ajudaram muito no avanço das ciências da saúde – aperfeiçoando a radiografia, por exemplo. Mas nem por isso os pacientes sorriem de gratidão quando pensam nos tratamentos odontológicos. Há cerca de dez anos, a Revista de Odontologia da Universidade de São Paulo fez uma pesquisa para saber que tipo de emoção estava associada ao ato de ir ao dentista. Descobriram que duas das principais eram... o medo e a dor. Se você também treme só de pensar no barulho infernal do motorzinho, pelo menos agora já sabe que, antes, tudo era ainda pior.

Para limpar, extrair ou disfarçar
Veja os antepassados de quatro marcos da odontologia.

Boticão
Com a aparência de um alicate, serve para extrair fragmentos ósseos e dentes. Na Grécia foram encontrados fórceps dentários datados de cerca de 5 a.C.

Dentadura
A mais antiga prótese removível feita para substituir dentes foi encontrada no Japão. De madeira, ela pertenceu à sacerdotisa budista Nakaoka Tei, que viveu no século 16. A dentadura teria sido feita pela própria dona, uma habilidosa artesã. Cerca de 120 antigas próteses japonesas semelhantes a essa já foram achadas.

Pivô
É um dente artificial fixado à raiz por meio de um pino metálico. Até o século 19, muitas dessas próteses não eram sintéticas, mas ossos e dentes tirados de animais e – isso mesmo – de cadáveres humanos.

Escova de dentes
Maomé, no século 7, orientava os muçulmanos a usar o siwak, um galho com a ponta desfiada, para limpar a boca. Já a primeira escova de dentes moderna foi criada pelos ingleses no século 17. O cabo era feito de osso, com perfurações em que eram amarradas cerdas feitas de pêlo de porco.

Doutores da alegria
Homens que ajudaram a construir um mundo com menos banguelas

Albucassis (936-1013)
Cirurgião árabe nascido em Córdoba, deixou um grande legado para a odontologia. Foi o primeiro a descobrir, por exemplo, que as inflamações da gengiva tinham a ver com enfermidades dos dentes.

Guy de Chauliac (1300-1368)
O francês foi um dos mais importantes nomes da cirurgia medieval. Em seu livro Inventorium, ele analisou a anatomia dos dentes e elaborou uma longa relação das doenças de que eles são vítimas.

Pierre Fauchard (1678-1761)
Considerado o pai da odontologia moderna, o francês sintetizou tudo o que se sabia no Ocidente sobre o assunto no livro O Cirurgião Dentista. Recomendava cuidados preventivos com os dentes.

ChapLin Harris (1806-1860)
Um dos principais responsáveis pela criação da primeira escola de odontologia do mundo, em 1840, da primeira Associação Nacional de Dentistas e da primeira revista científica reconhecida da área – tudo nos Estados Unidos.

Horace Wells (1815-1848)
Americano, é considerado o inventor da anestesia por ter sido o primeiro a usar o óxido nitroso (ou gás hilariante) para eliminar as dores de um paciente em um procedimento odontológico.

No país de Tiradentes
Ele foi nosso mais célebre cirurgião-barbeiro.

Até 1884, quando surgiram faculdades de Odontologia no Rio de Janeiro e na Bahia, os cuidados com os dentes dos brasileiros eram bastante precários. Assim como na Europa medieval, quem dava conta do recado por aqui eram os cirurgiões-barbeiros. A partir de 1782, uma lei obrigava os barbeiros que queriam cuidar de dentes a tirar uma licença especial conferida pelo “cirurgião-mor” (quem não a possuísse poderia ser preso). O mais conhecido de nossos práticos da odontologia foi o mineiro Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Apesar de ter ficado mais famoso por sua atuação política que por sua habilidade com a boca alheia, ele era considerado um bom dentista – ofício que aprendeu com seu padrinho, Sebastião Ferreira Leitão. O frei Raymundo de Pennaforte, que conhecia Tiradentes, disse que ele tirava dentes “com a mais sutil ligeireza e ornava a boca de novos dentes, feitos por ele mesmo, que pareciam naturais”. Ou seja: apesar de seu apelido, nosso mártir da Inconfidência também era bom em colocar dentes (eitos de materiais como ossos esculpidos). Para completar sua profissão, Tiradentes provavelmente também fazia barba, cabelo e bigode – na cela em que ele esteve antes de ser enforcado, foram encontradas duas navalhas e um espelho.
Aventuras na História n° 051

Casablanca, criador de ratos e Torre Eiffel

Fabio Versano

“Toque outra vez, Sam”
É possível imaginar outro ator que não Humphrey Bogart dizendo uma das mais famosas frases do cinema? Pois por pouco Rick, de Casablanca (1941), par romântico de Ingrid Bergman, não foi Ronald Reagan, o preferido do chefão do estúdio, Jack Warner. Bogart ganhou o papel por insistência dos produtores. Quase 40 anos depois, o ator relegado virou o presidente dos Estados Unidos.

Carioca da gema
Criar ratos virou hábito comum e até lucrativo em 1903 no Rio de Janeiro. O inusitado costume começou após o sanitarista Oswaldo Cruz passar a oferecer 100 réis por cada roedor, hospedeiro da pulga que, contaminada, transmitia peste bubônica. Surgiram até revendedores dos animais. O maior deles, conhecido pela alcunha de Amaral dos Ratos, ao ser preso, chegou a declarar que seus bichos eram cariocas legítimos, enquanto os da concorrência eram paulistas.

Monstruosa Eiffel
Construída para a Exposição Universal de Paris de 1889, a Torre Eiffel é o monumento mais visitado do mundo – 6 milhões de pessoas ao ano. A atração, no entanto, não era unanimidade na época. Antes da inauguração, uma campanha “em nome do bom gosto francês” exigia a demolição da “inútil e monstruosa torre”. Entre outras coisas, ela era chamada de “gigantesca chaminé de usina” e “odiosa coluna de ferros aparafusados”.

Aventuras na História n° 051

Deixa de nhemnhemnhém!

Bruno Vieira Feijó

Expressão vem dos índios da época do descobrimento.
Usada quando queremos encerrar uma conversa fiada e interminável, “deixar de nhenhenhém” é uma adaptação brasileira dos verbos em tupi “nhe’eng”, que corresponde a “falar”, e “nheéng nheéng”, algo como “teimar”, “dar muitas razões”, segundo Antenor Nascentes em seu Dicionário Etimológico, de 1966. Quando os portugueses aportaram no Brasil, em 1500, os índios não entendiam nada daquela falação estranha e diziam entre eles que os colonizadores ficavam de “nheeng-nheeng-nheeng”, ou seja, “falar-falar-falar”.

Aventuras na História n° 051

Segurar velas: a origem da expressão

Bruno vieira feijó

Dito é popular desde a Idade Média.
Quando não existiam as lâmpadas – que podiam ser alimentadas por óleo de baleia ou gás –, as velas eram a principal fonte de luz. Por isso, na Idade Média, os iniciantes em todo tipo de trabalho braçal seguravam velas para que os mais experientes enxergassem o que faziam. Em teatros e outros lugares que funcionavam à noite, por exemplo, havia garotos acendedores de vela. Em francês, uma das explicações da expressão (“tenir la chandelle”) se refere a criados que eram obrigados a segurar os candeeiros durante as relações sexuais de seus patrões e se manter virados de costas para não ver o que acontecia. Entre 1500 e 1600, “segurar vela” passou a significar “ajudar em uma posição subordinada, desconfortável”. Com o tempo, serviu para designar a amante de um triângulo amoroso, e, mais recentemente, o amigo solteiro que acompanha um casal.

Aventuras na História n° 051

Combustíveis: da madeira ao biocombustível

Carlos Minuano

As principais fontes de energia.
Sólidos, líquidos ou gasosos, há séculos boa parte do mundo não funciona sem eles. No entanto, é cada vez mais evidente que os combustíveis estão diretamente ligados ao aquecimento global. Pesquisas vislumbram um futuro com carros a hidrogênio e uma sociedade movida por fontes não- poluentes, mas isso ainda deve levar algumas décadas.

Pré história
Madeira

Também conhecida como lenha, a madeira – usada no início para aquecer e cozinhar alimentos – tem papel fundamental para o desenvolvimento da humanidade. Por ser barata, ela ainda é muito usada nos países em desenvolvimento, mas, embora seja uma fonte renovável, é poluente.
1850

Carvão mineral
Combustível que se torna popular na Revolução Industrial, com o crescente uso do motor a vapor. Sua utilização entrou em declínio nas últimas décadas, mas, com a atual elevação no preço do petróleo, o consumo voltou a crescer.

1906
Gasolina

O início da fabricação em série dos automóveis provoca uma disparada do uso de combustíveis. O petróleo, até então conhecido pelo querosene, passa a ser cobiçado por outro derivado, a gasolina. Começa a era dos combustíveis líquidos.
1920

Gás natural
O gás, que desde sua descoberta, em 1859, era usado na iluminação, começa a se destacar como alternativa a combustíveis bem mais poluentes. Ele não precisa ser estocado, pois sua distribuição é feita através de gasodutos. Porém, é uma fonte de energia não-renovável e finita.

1932
Diesel

Com rendimento maior que o dos movidos a gasolina e emissão de poluentes menor, o motor a diesel, apesar de mais caro, se populariza. Esse combustível, outro derivado do petróleo, ganharia o mundo durante a Segunda Guerra.
1942

Energia nuclear
A fissão nuclear de urânio é cogitada como alternativa de geração de energia. A opinião se dividiu a partir de 1986, com o acidente nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, em que milhares morreram ou foram contaminados.

1975
Álcool

A crise do petróleo na década de 70 chama atenção para a urgência de novas fontes de energia. O etanol, combustível de origem vegetal, surge como alternativa. A produção inicial de 600 milhões de litros em 1975 sobe para 12 bilhões em 1986. Até 2000, foram fabricados mais de 5 milhões de veículos a álcool.
1984

Energia hidrelétrica
Pela quantidade de água de que o Brasil dispõe, não é de causar espanto que o país seja líder nesse segmento. Apesar de ser aproveitada desde o fim do século 19, seu uso cresce na década de 70. O ápice da expansão ocorre na década de 80 com a construção da hidrelétrica de Itaipu, a maior do planeta.

1990
Energias alternativas

Impulsionada pela preocupação ambiental, a energia eólica, que não polui, ganha os holofotes na década de 90, ao lado da energia solar. Apesar de mais caras, as energias alternativas cresceram 40% em 2006, segundo a ONG Greenpeace.
2000

Biocombustíveis
Com o efeito estufa e a escalada do preço do petróleo, as fontes renováveis voltam ao foco do mercado energético. Combustíveis como o biodiesel e o etanol produzidos a partir de cana-de-açúcar, plantas e resíduos agropecuários, entre outros, ganham a cena como soluções sustentáveis.

Aventuras na História n° 051

Museu Nacional dos Coches

Sara Duarte

Em Lisboa, acervo preserva primeiros carros dos reis.
O museu mais visitado de Portugal não é um palácio e não tem nada a ver com os descobrimentos. Ele trata de outro assunto: a paixão do homem por carros – bem, pelo menos os antepassados deles. Com 55 veículos produzidos em diversos países da Europa entre os séculos 16 e 19, o Museu Nacional dos Coches, em Lisboa, atrai mais de 250 mil pessoas por ano.
O termo “coche” vem de Kotze, cidade na Hungria onde foi inventado o primeiro veículo de tração animal para transporte de humanos. Os coches surgiram no século 15, cerca de 300 anos antes das carruagens. “Até então, reis e aristocratas viajavam a cavalo ou em carroças equipadas com almofadas”, explica Maria Ana Bobone, conservadora do museu.
Feitos a mão por carpinteiros, pintores, douradores e vidraceiros, esse carros primitivos eram um luxo restrito às elites. A coleção portuguesa começou a tomar forma no século 19, quando dom Fernando II ordenou restaurar os carros espalhados por vários depósitos e cocheiras da Coroa. Em 1905, a rainha Amélia de Orleans e Bragança reuniu os veículos em um edifício neoclássico no bairro do Belém e criou o Museu dos Coches Reaes.
Naquela época, automóvel era uma novidade. Talvez por nostalgia, os portugueses apoiaram a idéia de se preservarem os coches, símbolo da pompa da realeza. Cinco anos depois, em 5 de outubro de 1910, a monarquia seria abolida em Portugal e a instituição passaria a se chamar Museu Nacional dos Coches.

1. PRO SANTO
Quando a família real acompanhava procissões religiosas, imagens de santos eram transportadas em viaturas como esta, encomendada por dom João V por volta de 1740. O carro tem a caixa envidraçada, lanternas e um pequeno trono para a imagem.

2. LEMBRANÇA DO BRASIL
Borges de Medeiros, duas vezes governador gaúcho, presenteou dom Carlos I, penúltimo rei de Portugal, com esta sela no fim do século 19. Feita de couro e pele de cabrito e com estribo de prata, a peça fica exposta ao lado de similares do Marrocos, da Índia e da Argélia.

3. COCHEIRO CHIQUE
O chefe de todos os condutores de coches de Portugal se vestia na última moda do século 19: casaca com galões, colete com detalhes de prata, chapéu armado, luvas, sapatos de couro com fivelas etc. O museu preserva muitos uniformes como este, que se revezam na exposição.

4. COCHE “TUNADO”
Criadas no século 18, na Inglaterra, as carruagens eram uma evolução dos coches. Mais seguras e velozes, elas tinham o banco do cocheiro mais elevado e vinham com faróis. Este modelo, de 1825, pertenceu a um nobre português.

5. BRINCADEIRA DE CRIANÇA
Esta viatura de passeio do século 19 era usada nos jardins dos palácios. Ela era puxada por um pônei ou uma ovelha e podia levar crianças de até 7 anos.

6. TRAÇÃO HUMANA
Na cidade, havia meios de transporte sem rodas, como as liteiras, para quatro passageiros, e as cadeirinhas, para um. Esta era puxada por dois escravos, que a apoiavam em barras de madeira.

7. O DOTE DE CARLOTA
Ter vários coches era sinal de status. Ao se casar, princesas levavam seus próprios carros, que atingiam a velocidade de 20 quilômetros... por dia! Este é um dos três que Carlota Joaquina trouxe da Espanha em 1785, ao se unir com dom João VI.

8. NA BERLINDA
No fim do século 17, surgiu a berlinda (o nome vem de Berlim, onde foi inventada), coche no qual o passageiro ficava em destaque, mais alto que o povo na rua. Este, de 1790, pertenceu à rainha Maria I, a Louca.

9. PREFERÊNCIA NACIONAL
Os olhares da multidão se concentravam na parte de trás do coche, que, por isso, era a mais elaborada. Este, de 1716, mostra a união do Atlântico com o Índico após a conquista do cabo da Boa Esperança, em 1487.

10. SÍMBOLO DE PODER
No século 18, os coches, que tinham as rodas traseiras maiores para suportar o peso das alegorias, eram o símbolo do poder real. Este é um dos 15 carros que o rei dom João V deu ao papa Clemente XI, em 1716.

Aventuras na História n° 051

Bobby, o irmão do presidente Kennedy

Bobby se passa no hotel Ambassador, em Los Angeles. Era lá que estava o senador Robert Francis Kennedy em 5 de julho de 1968 para celebrar a vitória em eleições primárias da Califórnia. Irmão do presidente John Fitzgerald Kennedy, assassinado cinco anos antes, Bob era o favorito à candidatura a presidente. Até ser morto a tiros no hotel.

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Arte tropical

Uma mistura de arte antiga e arte contemporânea oriunda de locais como Ásia, Oceania, África e América Latina forma a exposição Os Trópicos. O elemento em comum é que elas foram todas produzidas em regiões tropicais. São, ao todo, 130 pinturas, desenhos, fotografias, esculturas, vídeos e instalações – isso dividido em grupos, como natureza e imagens humanas. Entre os objetos, peças antigas do Museu Etnológico de Berlim, na Alemanha, e do Museu do Índio, no Rio de Janeiro.

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Enciclopédia Francesa: A Internet do século 18

Érica Montenegro

Proibida pelo rei e pelo papa, a Encyclopédie levou 21 anos para ser concluída. Seu objetivo era reunir todo o conhecimento humano, mas acabou divulgando uma nova maneira de pensar.
Em uma tarde de novembro de 1752, o rei Luís XV recebeu em audiência um homem desesperado. Jean-François Boyer, jesuíta, bispo de Mirepoix, advertia o rei, com gestos teatrais e lágrimas, de um grande risco que corria o império francês. A terrível ameaça vinha de um grupo de escritores que fomentava idéias de incredulidade, irreligiosidade e rebeldia na população. Os autores, capitaneados pelo filósofo Denis Diderot, já haviam publicado dois tomos de sua coleção de livros, alcançado boas vendagens e se tornado o principal assunto dos salões literários e das páginas de cultura dos jornais.
A ambiciosa idéia de organizar todo conhecimento existente em uma coleção de livros é bem anterior à Encyclopédie. No século 5 a.C., o rei Assurbanípal, da Mesopotâmia, havia ordenado aos sábios de sua corte que escrevessem um livro-síntese sobre tudo o que se conhecia até então. O resultado foram várias tábuas de madeira gravadas em escrita cuneiforme. A palavra enciclopédia vem do grego enkiklios paidéia e significa “cadeia do conhecimento”. O primeiro trabalho que reivindica essa característica em seu título é a Encyclopedia Septem Tomis Distincta de Johann Heinrich Alsted, de 1630, mais de 100 anos antes da mais famosa de todas, a versão francesa, a Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers (algo como “Enciclopédia ou dicionário sistemático das ciências, artes e profissões”).
Mas, se o formato não era exatamente uma novidade, o que fez a Encyclopédie de Diderot e seu parceiro, Jean le Rond D’Alembert, se tornar uma referência? Simples: ela permitiu que as idéias discutidas nos altos salões da intelectualidade chegassem ao povo.
Os enciclopedistas conduziram seus leitores a uma nova maneira de pensar, na qual a investigação e o método eram propostos como a única forma de chegar ao verdadeiro conhecimento. Aos olhos contemporâneos pode parecer pouco, mas naquele tempo os escolásticos eram os donos da verdade e, para eles, todas as respostas começavam e terminavam em uma única palavra: Deus. Na corte do rei Luís XV, dúvidas sobre a existência divina custavam a cabeça de um cidadão. Imagine escrevê-las, imprimi-las e distribuí-las para milhares de pessoas!
Para entender por que os enciclopedistas tiveram sucesso nessa aventura, é preciso levar em conta o período em que a Encyclopédie chegou às estantes: entre 1751 e 1772. Nessa época, a burguesia já era peça importante para o funcionamento da sociedade, a educação estava sendo ampliada às massas e a vida urbana (com sua agitação e possibilidades) começava a ser o modo de vida predominante na velha Europa. Diante desse cenário, o povo estava sedento por informação, que era vista como um instrumento para melhorar de vida. Só entre 1674 e 1750 foram publicados 30 livros com pretensões enciclopédicas, um número muito maior do que nos 200 anos anteriores. Esses compêndios deixavam em casa, ao alcance das mãos e dos olhos de qualquer um, parte dos conhecimentos que, até então, estavam encerrados nas bibliotecas públicas. Guardadas as devidas proporções, as enciclopédias eram para os homens e mulheres daquele período algo parecido com o que a internet é para a gente hoje.

Censura
O rei Luís XV era mais chegado à caça de animais e de mulheres jovens que às questões de Estado. Mas, diante da advertência feita por aquele bispo desesperado, o monarca decidiu tomar providências. Em fevereiro de 1753, proibiu a comercialização dos dois primeiros volumes da Encyclopédie e nomeou um grupo de homens da Igreja para revisar os que ainda estavam para ser publicados. A decisão foi diplomática: agradou a Igreja sem abortar o projeto. Por trás disso havia uma voz feminina.
A amante preferida de Luís XV, madame Pompadour, era amiga dos enciclopedistas e tinha paixão pelas artes e pelas letras. “Sedutora e inteligente, madame Pompadour era uma firme defensora das idéias progressistas na corte”, escreve Philipp Blom, em Encyclopédie – El Triunfo de la Razón en Tiempos Irracionales (sem edição em português). Entre um encontro amoroso e outro, Pompadour convenceu o soberano de que não era bom impedir um projeto intelectual que dava prestígio à França no estrangeiro. Pela extensão do trabalho (no fim das contas, a Encyclopédie compreenderia 27 volumes, 72 mil artigos e 16500 páginas), fica claro que os censores não conferiram letra por letra o que estava sendo publicado. Ou se deixaram enganar pelos malabarismos verbais executados pelos autores. Em entradas como “Autoridade política e direito natural”, os enciclopedistas mostravam o tipo de mudanças que esperavam.
“Nenhum homem recebeu da natureza o direito de mandar nos demais. A liberdade é um presente dos céus, e qualquer indivíduo da nossa espécie tem o direito de desfrutar dela da mesma maneira que desfruta da razão”, dizia Diderot em seu artigo sobre “Autoridade política”. Com essa linguagem um pouco tortuosa, que fala em céu para evitar a ira da Igreja sem deixar de mencionar o poder da razão, o filósofo se manifestava contra o absolutismo, modelo político daquele período.
Outra artimanha dos editores foi o uso de referências cruzadas. Como toda enciclopédia, a de Diderot e D’Alembert trazia ao fim dos textos sugestões de outros artigos que ampliavam a compreensão sobre o tema em questão. O jogo de referências permitia aos leitores mais atentos decifrar o que pensavam os cabeças do grupo sobre um determinado assunto. Por exemplo, o artigo “Liberdade de pensamento” levava a “Intolerância”. O artigo “Ofício” lembrava os cargos do Estado que eram vendidos pelo rei aos nobres e, no fim, encaminhava o leitor para os textos sobre “Moral”, “Moralidade” e “Ética”.
Sem dúvida, uma das virtudes do grupo foi defender uma nova ordem social em que as classes produtivas estivessem à frente. Fizeram isso nas entrelinhas, acrescentando relatos sobre diversos processos de manufatura e centenas de ilustrações sobre os instrumentos de trabalho dos artesãos. Também elevaram as Artes e as Ciências a um novo patamar, realçando o poder humano de criar e descobrir. Sendo assim, tinham uma boa desculpa para os censores: a Encyclopédie não era um livro de idéias, mas uma obra informativa.
Não se sabe ao certo quantos intelectuais trabalharam para escrever a coleção. Em uma das listas de apresentação dos primeiros livros estão citados 143 nomes, e, entre eles, os principais cientistas, médicos, matemáticos, filósofos e livres pensadores daquele tempo. Mas, pela extensão e duração do trabalho (21 anos!), muitos colaboradores foram sendo trocados ao longo do tempo. Para organizar o trabalho, Diderot e D’Alembert dividiram as áreas do conhecimento que seriam abordadas e, então, convidaram os especialistas para sugerirem em ordem alfabética os artigos que deveriam ser incluídos.
A ousadia permanente desses homens, que se tratavam uns aos outros como iluministas, por muito pouco não os levou à Bastilha, a temida fortaleza-prisão de Paris. Depois daquela primeira crise provocada pelo bispo, viria outra, ainda pior. Em 1759, com sete volumes publicados e 4 mil leitores já tendo pago pelos próximos, os livros foram definitivamente proibidos pelo rei. O papa se somou ao coro dos descontentes: atacou a Encyclopédie e a incluiu no índex de livros proibidos, ameaçando os católicos que a lessem com a excomunhão. A censura, por conta de uma grave crise política, havia recrudescido no país e os enciclopedistas temiam por sua liberdade e por sua integridade física.
No entanto, é justamente nesse momento que se sente o quanto a Europa havia mudado desde os primeiros pesados volumes. Ainda que tivesse contra si o rei, o papa e parte da intelectualidade francesa, a Encyclopédie já dava emprego direto a mil pessoas. Além dos escritores e dos livreiros, desenhistas, impressores e encadernadores dependiam dela para sobreviver. As estimativas são de que um em cada dez parisienses se beneficiava do livro economicamente. “A Encyclopédie tinha dentro de si o gérmen do século seguinte, da Revolução Industrial e da caída do regime aristocrático. Com milhares de empregos em jogo e centenas de libras postas na balança, os fatores econômicos ganharam a partida”, afirma Philipp Blom.

Enfim, o “Z”
Com o sucesso, os financiadores do projeto decidiram que o grupo deveria continuar trabalhando, ainda que quase às escondidas. As autoridades sabiam o que estava ocorrendo – espiões da polícia continuamente rondavam o escritório de Diderot, mas, como os livros não haviam sido publicados, não podiam fazer nada.
Os livreiros, satisfeitos com os ganhos que obtinham, esperavam uma ocasião mais favorável para voltar a imprimir e distribuir o resto da coleção. Ela chegou em 1766, quando Antoine de Sartine assumiu o cargo estatal de diretor de Comércio do Livro. Simpatizante do Iluminismo, Sartine combinou que os livros poderiam ser impressos fora de Paris. Em janeiro de 1766, os jornais anunciavam que o resto da Encyclopédie fora impresso na Suíça e que estava à venda. Parte da publicidade era falsa. Os livros foram fabricados em Paris mesmo, a portas fechadas, com os impressores cumprindo dupla jornada. Mas já não importava, o exaustivo trabalho havia terminado. A partir de 1766, os volumes restantes foram colocados à disposição do público. O último, com os artigos entre “Vénérien” e “Zzuéne”, foi entregue em 1772.
A Revolução Francesa, com seu lema de liberdade, igualdade e fraternidade, estourou 17 anos depois. A princípio, os iluministas identificaram no movimento as idéias progressistas que tanto haviam se esforçado para levar adiante. Mas o caráter violento que a Revolução ganhou com o tempo os mortificou. Partidários do cultivo das virtudes do espírito, os iluministas jamais poderiam perdoar qualquer tipo de totalitarismo.

Aventuras na História n° 051

Feriado civil

Fred Linardi

Demorou para o homem ter um dia de folga que não fosse religioso.
Não é de hoje que dedicamos certos dias do calendário a homenagens. Na Roma antiga, já havia feriados religiosos como os conhecemos hoje. Divindades como Vênus eram celebradas em procissões e jogos de gladiadores. Romanos importantes, próximos ao império, também ofereciam festas particulares nesses dias, convidando pessoas do seu círculo de amizade para um banquete – que normalmente terminava em orgia. “No entanto, isso era uma manifestação às divindades, especialmente a deuses como Dionísio, que simbolizavam um desregramento”, explica Pedro Paulo Funari, historiador da Unicamp que mantém um blog semanal sobre curiosidades da Roma antiga no site de História.
Na Antiguidade, havia apenas os feriados religiosos para quebrar a rotina da sociedade. Mesmo os dias que honravam imperadores (somente depois de mortos) eram baseados no divino. Só em 1789 surgiu o primeiro feriado civil. O dia 14 de julho, data da queda da Bastilha, que marcou o início da Revolução Francesa, é comemorado desde então como dia nacional do país. Mas os feriados laicos só ganharam força 100 anos depois, devido às sucessivas lutas operárias e à solidificação da classe média. A Revolução Industrial, durante um século, obrigara homens, mulheres e crianças a passar até 16 horas trabalhando por baixos salários, sem folgas e fins de semana. As sucessivas rebeliões ocorridas em diversos países no fim do século 19 acabaram por originar o Dia do Trabalhador, comemorado em muitos paí­ses no 1º de maio, dia em que, em 1886, a cidade de Chicago, nos Estados Unidos, parou por causa de uma greve geral.
O Brasil, que tem 12 feriados nacionais, é palco de rixas e picuinhas entre os estados acerca do ócio de seus habitantes. Há paulistas que dizem que no Rio há mais dias de folga, enquanto a Bahia é alvo nacional desse tipo de provocação. Todos os três têm, na verdade, apenas um feriado estadual. O estado que tem mais datas comemorativas é o Acre, com quatro.

Aventuras na História n° 051

Machu Picchu, Última Hora e estátuas gregas

De volta para casa

Parece que a briga entre o governo peruano e a Universidade de Yale, nos Estados Unidos, ganhou uma trégua. A instituição americana concordou que sua coleção de artefatos retirados de Machu Picchu e Cuzco quase um século atrás (em uma missão de exploração) são realmente propriedade do Peru. A maior parte desse acervo deverá ser devolvida ao país de origem. A universidade e o Peru já brigavam judicialmente há anos. As peças deverão ser as estrelas de uma exposição financiada pelos antigos rivais que rodará o mundo em 2008.
Jornal online

Em comemoração aos 200 anos da imprensa brasileira – que chegou ao país com as naus da família real, saída de Portugal em 1808 –, o jornal Última Hora, que circulou de 1951 a 1971, terá seu arquivo todo digitalizado. Fundada pelo jornalista Samuel Wainer, a publicação era inovadora (foi ela que popularizou o uso de cores, fotos e ilustrações, por exemplo) e contou com colunistas como Nélson Rodrigues e Rubem Braga. A digitalização, uma parceria formada entre a empresa AMD e o Arquivo Público do Estado de São Paulo.
Clássico em cores

Quando pensamos em uma estátua grega, nos vem à mente uma escultura de mármore claro, certo? Pois pensamos errado. Não só nós, mas também os artistas renascentistas, que usavam as obras clássicas como padrão estético a ser seguido. Uma pesquisa alemã mostra que a escultura e a arquitetura da Antiguidade eram pintadas. Acontece que tudo foi perdendo as cores com o passar dos anos. O resultado do estudo está em uma exposição na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, Gods in Color: Painted Sculpture of Classical Antiquity (“Deuses em cores: esculturas pintadas da Antiguidade clássica”).
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Fatos que marcaram novembro

Maria Carolina Cristianini

Dia 6- Idealizado pelo francês Jules Martin para facilitar a locomoção no vale do Anhangabaú, em São Paulo, o viaduto do Chá é inaugurado. Ele recebeu esse nome devido às plantações de chá que existiam no local antes da construção, iniciada em 1888. Devido ao pedágio de 60 réis (3 vinténs) por pessoa para usar a novidade nos cinco primeiros anos, ele foi apelidado de “Viaduto dos Três Vinténs”. Em 1892, em São Paulo.
Dia 7- Começa a Sabinada. O movimento rebelde, que queria a independência da Bahia (ao menos até a maioridade de Pedro II) se restringiu à capital e foi sufocado em março de 1838. Em 1837, em Salvador.

Eu me lembro
Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? (...) Não sentes que os teus planos estão à vista de todos? (...) Ó tempos, ó costumes! (...) À morte, Catilina, é que tu deverias, há muito, ter sido arrastado por ordem do cônsul; contra ti é que se deveria lançar a ruína que tu, desde há muito tempo, tramas contra todos nós.

Trecho do discurso de Cícero
Dia 8- O romano Cícero faz seu primeiro discurso contra Catilina, que fora derrotado por ele nas últimas eleições para cônsul. Catilina preparava uma conspiração para assassinar o rival, mas foi desmascarado. Ele foi morto no ano seguinte. Em 63 a.C., em Roma.

Dia 13- O vulcão Nevado del Ruiz, na Colômbia, entra em erupção e mata cerca de 23 mil pessoas. Quatro cidades na região dos Andes foram atingidas pelas cinzas e pelo gelo derretido, entre elas Armero, que desapareceu após o desastre. Foi a segunda pior erupção em número de mortos desde 1902, quando o monte Pelée, na ilha caribenha de Martinica, matou 29 mil pessoas.
Em 1985, no norte da Colômbia

Eu me lembro
Eu estava dormindo em minha casa, em Armero, junto com meus filhos, e meu marido havia saído com amigos. Naquele dia, acordei com a erupção. Eu dormia no segundo andar e não fui muito atingida pela lava, mas meus dois filhos, que dormiam embaixo, morreram na hora. Não encontrei meu marido e pensei que ele estava morto. Fui viver em Bogotá e só dois anos depois, por obra do destino, encontrei-o na rua. Reconstruí minha vida, tive outros dois filhos, mas ainda sonho com aquele dia de terror.

Flor Ângela Rubiano, vendedora
Dia 14- Ao investigar as reações que ocorriam quando os sangues de mais de uma pessoa se misturavam, o cientista austríaco Karl Landsteiner verifica que existem tipos sanguíneos diferentes entre os seres humanos. Ele os classifica com as letras A, B e C, depois alterada para O. Um quarto tipo de sangue, chamado de AB, foi identificado dois anos depois.

Em 1901, em Viena
Dia 16- Atahualpa, último imperador inca, cai em uma emboscada armada pelos espanhóis. Para não ser queimado vivo, ele aceitou a conversão ao cristianismo. Em agosto do ano seguinte, foi estrangulado.

Em 1532, em Cajamarca, atual Peru
Dia 24- Por complicações de saúde causadas pela aids, o cantor Farokh Bulsara, conhecido como Freddie Mercury, morre na capital britânica. Natural de Zanzibar, uma ilha próxima à costa leste da África, ele foi vocalista e um dos principais compositores do Queen.

Em 1991, em Londres
Eu me lembro

Lembro que, ao receber a notícia, pensei que a aids era uma doença muito maligna que vinha cobrar, anos após eventuais abusos e descuidos da vida artística, com a morte. A perda de Freddie Mercury ajudou o assunto a ser mais discutido e então esses tabus começaram a ser derrubados. Mas a perda foi grande para a música, pois, como vocalista, era ele quem dava personalidade ao Queen. Acredito que Freddie Mercury tenha sido o último grande cantor de uma linhagem de grandes bandas, numa época em que não somente a imagem contava, mas sim o talento do artista.
Edgard Scandurra, guitarrista do Ira!

Dia 27- Durante o Concílio de Clermont, iniciado nove dias antes como resultado do pedido de ajuda militar do imperador bizantino Alexius I contra os muçulmanos turcos, o papa Urbano II faz um discurso incitando os cavaleiros franceses da cidade a recuperarem a Terra Santa. Ele encerrou o discurso com a frase “Deus o quer”. O encontro se tornou a oportunidade para iniciar a Primeira Cruzada. Em 1095, em Clermont, na França
Dia 29- Escoltado por forças britânicas e fugindo da invasão francesa a Portugal, o rei dom João VI embarca com a família em direção ao Brasil, acompanhado por mais de 10 mil pessoas em 36 embarcações. Eles viajaram com arquivos, móveis, pratarias e uma enorme quantia em dinheiro – equivalente à metade das moedas que circulavam no país. A família real chegaria a Salvador, na Bahia, em janeiro do ano seguinte e, de lá, rumaria para o Rio de Janeiro. Dom João VI só retornaria a Portugal em 1821.

Em 1807, em Lisboa.
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Quilombos do século 21

Bruno Vieira Feijó

Descendentes de escravos brigam por terra quase 120 anos após abolição.
A abolição da escravatura no Brasil, em 13 de maio de 1888, não significou o fim das comunidades que reuniam os negros fugidos das senzalas. Pelo contrário. Libertada num país que não era o deles e ainda muito preconceituoso, boa parte dos ex- escravos se amontoou em quilombos – alguns organizados desde o período de opressão, outros formados depois da abolição.
Diversas comunidades descendentes dos quilombos daquela época, batizadas de quilombolas (do cruzamento de canhambora, “escravo fugitivo” em tupi-guarani, com kilombo, “cabana”, em quimbundo, língua africana), hoje lutam com fazendeiros e mineradores não mais pela liberdade, mas por terras onde viver. Um dos conflitos mais conhecidos é o da Restinga da Marambaia, no Rio de Janeiro, antigo entreposto do tráfico negreiro. O lugar é disputado com a Marinha, que mantém por lá uma base naval que serve de centro de treinamento de militares.
Ano passado, outro entrevero virou notícia. Na época, 300 moradores de quilombolas do Pará bloquearam uma estrada de acesso a um canteiro de obras da Companhia Vale do Rio Doce, na região de Moju. Eles se rebelaram porque a empresa não teria entregado uma série de projetos prometidos à população para compensar os prejuízos ambientais causados pela construção de uma tubulação para o escoamento de bauxita.
Especialistas em causas negras apontam a lentidão do governo em reconhecer o direito à terra dos remanescentes de quilombos como a maior causa dos conflitos atuais. “Os direitos dos índios são reconhecidos desde a época colonial. Mas os das quilombolas apareceram pela primeira vez apenas na Constituição de 1988”, diz Lúcia Andrade, coordenadora-executiva da Comissão Pró-Índio de São Paulo, organização que trabalha na defesa do direito territorial das comunidades indígenas e negras no Brasil. “O Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) só começou a se preparar para a questão recentemente, com a contratação de antropólogos”, afirma Lúcia.
Do lado do governo, o desafio é grande. Os grupos se organizaram de modos diferentes ao longo do tempo, passando por fugas, ocupação de terras livres e isoladas, doações, recebimento de terras como pagamento de serviços prestados ao Estado, heranças e até pela simples permanência nas grandes propriedades nas quais seus parentes trabalhavam. Como se não bastasse, eles abrigam também índios e mestiços. Além disso, entre as comunidades há as que têm realmente origem escrava e outras que são apenas formadas por negros excluídos que se aglutinaram em núcleos. Se fossem reunidas todas as áreas que se auto- intitulam quilombolas, elas formariam um território do tamanho da Itália ou do estado de São Paulo – são mais de 30 milhões de hectares habitados por uma população estimada em 2,5 milhões de pessoas. Elas estão espalhadas por mais de 800 municípios em todos os estados, à exceção do Acre e de Roraima.

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Como os alemães saqueavam os países que invadiam

Adolf Hitler amava a arte. Mas tinha opiniões duras a respeito dela – achava que a única que valia a pena era a ariana. Mesmo assim, os nazistas não pouparam a arte dos países que invadiam. Centenas de milhares de pinturas e outras peças valiosas foram saqueadas e mandadas para a Alemanha. As obras de que ele não gostava – e que tratava por “arte degenerada” –, simplesmente mandava destruir. Na cruzada, monumentos foram derrubados, bibliotecas acabaram queimadas.

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Shakespeare polêmico

Cláudia de Castro Lima

Teoria de que inglês não era autor de suas obras é reforçada.
Histórias dignas dos enredos de suas peças rondam o nome do dramaturgo inglês William Shakespeare. As mais cabeludas incluem, por exemplo, ele nem ter existido – seria apenas um pseudônimo do filósofo Francis Bacon. A teoria de que Shakespeare teria assinado o trabalho de outro escritor, no entanto, que já foi defendida por gente como Sigmund Freud, estava desacreditada. Até agora.
Em setembro, um grupo formado por 300 atores e professores renomados publicou a “Declaração de dúvida razoável”. Criada por uma certa coalização de Autoria de Shakespeare, organização dedicada a estudar a questão da identidade do autor, o documento pede aos acadêmicos do mundo todo que comecem a pesquisar de forma séria quem é o responsável pela autoria das obras de Shakespeare.
O primeiro passo já foi dado: no fim deste ano terá início um curso pioneiro de mestrado em Artes. Dedicado ao tema da autoria das obras atribuídas ao inglês, ele será ministrado por William Leahy, professor de Inglês da Brunel University, no Reino Unido.

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Trem das Onze: Para lá de Jaçanã

Fred Linardi

Linha imortalizada por Adoniran Barbosa funcionava desde 1894.
Em 1964, o sambista Adoniran Barbosa disse que não podia ficar nem mais um minuto com sua amada. Tudo porque morava em Jaçanã (o que, na verdade, era apenas uma licença poética para a música). Se perdesse o trem das 11, só voltaria para casa na outra manhã – além de provocar uma noite de insônia em sua pobre mãe. Assim, sem querer, imortalizou a linha do Tramway, condutora do tal trem.
O “trem das 11” existiu mesmo, e funcionava desde 1894. Construído apenas para instalar e levar dutos de água da região da serra da Cantareira ao centro de São Paulo, onde a vida urbana já efervescia, ele foi extinto no ano seguinte ao do sucesso musical, em 1965. Ninguém imaginava, na época de sua construção, que aqueles pequenos vagões sobre a bitola de 60 centímetros seriam tão populares.
No início do século 20, a linha passou a ser utilizada pelos paulistanos que queriam fugir da vida urbana para passar aprazíveis tardes na Cantareira. O crescimento da população, no entanto, acabou expandindo bairros até então distantes, como Santana, Jaçanã e Tremembé. E os moradores de lá começaram a usar o trem também para se locomover para o trabalho. A partir de 1940, as bitolas foram expandidas para 1 metro, a fim de adaptar os trilhos ao número de passageiros – em 1945, eram 20 mil por dia. Ao mesmo tempo, ninguém esquecia que a linha tinha seus dias contados desde sua criação, pois tinha sido feita só para o transporte de dutos de água. As vias para carros e ônibus, já na década de 50, expulsaram-na gradativamente da capital.
Os vagões, já ultrapassados no fim dos anos 50, custavam caro: com as passagens baratas e grande parte da despesa subsidiada, o carvão mineral que o movia foi substituído por lenha – isso quando os vagões a diesel já existiam. “O trem começou a ser criticado. A fuligem queimava as roupas dos passageiros e eles eram identificados pelos outros como usuários do trem”, diz Rogério Nunes, produtor de Nos Trilhos do Trem das Onze, em cartaz em novembro no Sesc  Santana, em São Paulo, junto à exposição de fotos que conta a evolução da cidade nos 71 anos de vida da ferrovia. O filme deverá ser exibido em mostras de cinema pelo país no ano que vem.

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