Usando um hotel de luxo como abrigo, Paul Rusesabagina
conseguiu salvar 1268 vidas num dos piores genocídios da história. Hoje, após
inspirar o filme Hotel Ruanda, ele alerta: a tragédia pode se repetir.
Ao abrir a porta de casa na manhã de 7 de abril de 1994,
Paul Rusesabagina viu homens correndo pelas ruas de Kigali, a capital de
Ruanda, empunhando facões lavados em sangue. Caído no quintal ao lado, com o
rosto numa poça vermelha, estava Rukujuju, amigo de seu filho, cercado pelos
corpos dos familiares. Rastejando, sobreviventes pediam ajuda. Rusesabagina,
aterrorizado, fechou a porta. Ele sabia que, se tentasse socorrer os feridos,
acabaria como eles. Era o início do genocídio mais intenso da história – nunca
tantos foram liquidados tão rápido. Tudo começou após a morte do presidente
Juvenal Habyarimana, cujo avião fora abatido por um míssil na noite de 6 de
abril. O líder pertencia à etnia hutu e teria sido vítima de rebeldes de outro
grupo étnico, os tutsis. Sob a influência de mensagens de ódio transmitidas
pelo rádio, os hutus deram início ao genocídio tutsi. Em 100 dias, mais de 800
mil pessoas morreram.
Rusesabagina era gerente em uma rede de hotéis e conseguiu
chegar a um deles, o luxuoso Mille Collines, em 12 de abril. Com a mulher e os
dois filhos, ficou confinado durante 76 dias e deu abrigo a centenas de
refugiados. No total, salvou 1268 pessoas – é como se tivesse pausado a
carnificina por quatro horas. Para garantir a sobrevivência dos hóspedes,
manteve relações cordiais com os líderes do genocídio, história que ficou
famosa em 2004, ao ser contada no filme Hotel Ruanda.
Desde 1996, Rusesabagina vive exilado com a família na
Bélgica. Tem uma transportadora e preside a Hotel Rwanda Rusesabagina
Foundation, organização que auxilia sobreviventes do genocídio – em 2005,
ganhou a Medalha Presidencial da Liberdade, um dos maiores prêmios concedidos
pelo governo americano. Ele conversou com História por telefone, de Bruxelas.
Atualmente, prefere analisar os motivos e conseqüências do genocídio a
relembrar a barbárie que presenciou.
O senhor nasceu em 1954. Como era para uma criança viver num
país dividido em dois grupos étnicos?
Paul Rusesabagina – Eu fui um garoto com muita sorte, pois
nasci em uma família miscigenada. Meu pai era hutu e minha mãe, tutsi. Por isso
sou hutu, porque em Ruanda a etnia é passada de pai para filho. Meu pai era um
homem muito correto e gentil, que nunca se importou com essa divisão étnica.
Ele sempre dizia aos filhos: “Ouçam, crianças, não se deve escolher um amigo
pela etnia, e sim por ser uma pessoa do bem”. Eu tive a sorte receber uma boa educação,
mas a maioria das outras crianças viveu em lares preconceituosos, tornando-se
hutus e tutsis extremistas.
Qual é a origem do ódio entre hutus e tutsis?
Esses são os principais grupos étnicos que vivem em Ruanda,
mas é uma questão controversa se essa divisão é meramente política e
artificial. Nós falamos a mesma língua, compartilhamos as mesmas crenças, as
mesmas tradições e, na maioria dos casos, temos a mesma aparência. Antes de os
colonizadores chegarem, no século 19, os tutsis já eram os mais ricos e
controlavam o país. Os hutus eram os mais pobres e escravos dos tutsis. Em
1885, ano da Conferência de Berlim, em que as nações européias que
reivindicavam partes da África tomaram posse das terras, a região onde está
Ruanda ficou sob o domínio dos alemães. Mas, quando eles perderam a Primeira
Guerra, o comando foi transferido para a Bélgica. Para tirar o máximo proveito
de Ruanda, levando o mínimo possível de homens para lá, os belgas elegeram os
tutsis como “gerentes” de seu domínio. Daí para a frente, a separação racial
tornou-se explícita. Cientistas foram enviados para comprovar a supremacia dos
tutsis – que seriam mais altos, mais bonitos e mais inteligentes que os hutus.
Em 1933, as pessoas de Ruanda receberam cartões que as identificavam como sendo
de uma ou de outra etnia. A situação mudou em 1959, quando houve a Revolução
Hutu (três anos após o levante, os belgas deixaram o país).
O que aconteceu com os tutsis após a Revolução Hutu?
Na Revolução, a maioria hutu tomou o poder e começou a matar
os tutsis e tomar suas casas. Cerca de 250 mil tutsis deixaram o país e foram
para Uganda, Burundi, Tanzânia e Congo. Eles organizaram uma força militar
chamada Frente Patriótica de Ruanda, a FPR. Na década de 90, esses rebeldes
atacaram Ruanda e chegaram ao poder em 4 de julho de 1994, com o fim do
genocídio. O atual presidente do país, Paul Kagame, era um dos líderes da FPR.
Havia evidências, em 1994, de que um assassinato em massa
estava para acontecer a qualquer momento?
Os tutsis rebeldes estavam organizando vários ataques em
Ruanda, nas proximidades das fronteiras, matando civis e crianças hutus. Por
outro lado, o governo de Habyarimana estava matando tutsis civis e qualquer
cidadão que fizesse oposição a seu governo. Em outubro de 1993, Melchior Ndadaye,
presidente de Burundi, foi morto por oficiais tutsis. Milhares de pessoas de
Burundi e Ruanda ficaram assustadas e saíram de seus países. Porém, muitas
delas voltaram em novembro do mesmo ano, cinco meses antes de o genocídio
começar. A ONU havia mandado 2500 soldados para Ruanda. Quando vimos aqueles
homens de capacete azul chegando, sentimo-nos muito mais seguros.
E como foi a atuação
dessas forças de paz?
No início de 1994, o líder das tropas da ONU em Ruanda,
Romeo Dallaire, descobriu que um genocídio estava sendo preparado: 1700
soldados da milícia hutu Interahamwe (“aqueles que lutam juntos”, na língua
kinyarwanda) estavam sendo treinados para agir como um pelotão da morte contra
civis e os soldados belgas da ONU, caso houvesse resistência. Além disso, entre
janeirode 1993 e março de 1994, 500 mil facões foram importados por Ruanda.
Dallaire falou com seus superiores em Nova York, mas recebeu a ordem de não
interferir. Quem deu essa resposta foi o então chefe das missões de paz da ONU,
Kofi Annan.
De que modo o rádio ajudou a aumentar a tensão?
A emissora RTLM foi inaugurada em agosto de 1993 e tocava
música congolesa, um ritmo muito alegre. Todos em Ruanda escutavam essa rádio.
As mensagens de ódio começaram timidamente, com algumas piadas. Mas aos poucos
essas idéias foram entrando na consciência da população. Em abril de 1994, os
recados já eram claros, como “matem seus vizinhos”. O que poucos em Ruanda
sabiam é que a rádio estava ligada ao governo e que o principal acionista era o
presidente Habyarimana. Durante o genocídio, a RTLM divulgava os nomes dos
tutsis que deveriam ser mortos e diziam até mesmo onde eles estavam escondidos
ou para onde estavam fugindo.
Por que tanta gente atendeu ao apelo dos extremistas?
Nós temos muitos problemas na África. Um dos mais sérios é a
impunidade. Dos anos 60 em diante, muitas pessoas foram obrigadas a sair do
país, enxotadas por vizinhos que tomaram suas casas e plantações, mas nunca
foram punidos. Além da questão da impunidade, a população do país é muito pobre.
Se você diz a uma pessoa que não tem nada “mate seu vizinho e pegue para você
tudo o que ele tem”, ela o fará. Os locutores diziam coisas como: “Mate um
vizinho e você ficará com o carro dele. Se matar dois vizinhos, ficará com dois
carros”. Os adolescentes de Ruanda eram pobres, não tinham nada a perder e
sabiam que não seriam punidos.
Na sua opinião, qual a principal causa do genocídio?
É simplista dizer que o genocídio foi causado apenas por
ódio tribal. O motivo principal foi a política. Os líderes de Ruanda temiam
perder o poder se o país fosse invadido pelos tutsis rebeldes. Mas o mais
importante é que a população do meu país reconheça que também foi responsável
por todos aqueles assassinatos. De acordo com o que vivi lá, posso dizer que os
responsáveis pela carnificina não foram apenas os colonizadores. Nós,
ruandeses, devemos parar de culpar os outros e começar a culpar a nós mesmos.
Como o senhor se sentia sabendo que a vida das pessoas
refugiadas no hotel dependia quase exclusivamente de sua habilidade com as
palavras?
Eu nem sequer tinha tempo para pensar nisso. Eram tantos
problemas para resolver que não dava tempo de pensar se o que fazia estava
certo ou errado. Nossa situação era precária. Não tínhamos água – precisávamos
racionar a água da piscina –, não tínhamos eletricidade, a comida era escassa.
Além disso, eu tinha de entreter os homens da milícia e do exército, conversar
com eles, oferecer cerveja. Sempre tive em mente que nenhum ser humano é
completamente bom ou completamente mau. Então, eu tentava enxergar o lado bom
desses homens e usá-lo da melhor maneira possível para que eles deixassem em
paz as pessoas no meu hotel. Quando eles ameaçavam os hóspedes, eu costumava
dizer a eles: “Sei como você se sente. A guerra faz isso com as pessoas. Tome
uma cerveja, vá para casa, descanse e volte amanhã”. Geralmente eles não
voltavam.
Qual a explicação que o senhor dá para a recusa dos Estados
Unidos em intervir no genocídio?
Há muitas razões. A África é um continente abandonado. Os
africanos estão cada vez mais isolados e esquecidos. Até agora, o mundo
inteiro, incluindo os Estados Unidos, não está levando Ruanda a sério. Cerca de
800 mil pessoas morreram em três meses e o que o mundo disse a respeito? Nada.
Fechou os olhos para Ruanda e abandonou o país. Além disso, não há riquezas
naquela terra, não há petróleo lá. Só havia pessoas se matando.
Quais foram os piores erros que a ONU cometeu em Ruanda?
O pior erro que a ONU cometeu foi nos manter confiantes de
que eles estavam lá, que iriam nos ajudar e que impediriam os assassinatos em
massa. Por conta disso, muitas pessoas que saíram do país com medo do massacre
acabaram voltando. Mas, quando 15 soldados belgas foram mortos no primeiro dia
do genocídio, retiraram as tropas de paz de lá. Com isso, milhares de pessoas
que se amontoaram em igrejas e escolas sob a proteção da ONU foram abandonadas
à própria sorte. Aliás, nesses casos, a ONU até facilitou o trabalho dos
assassinos, concentrando milhares de vítimas no mesmo local.
O que ocorreu depois que o genocídio acabou?
O genocídio acabou em 4 de julho de 1994, quando os tutsis
rebeldes tomaram a capital, Kigali. Os assassinos que escaparam fugiram para o
Congo e, de lá, foram para outros países. Alguns foram pegos em Ruanda pelos
tutsis. Muitos desses morreram e outros estão na prisão. Agora são os tutsis
que estão matando os hutus para se vingar. É o pior problema do país
atualmente.
Você tem medo de que um novo genocídio aconteça em Ruanda?
Se o governo não mudar suas políticas, se nada for feito
para que haja justiça em Ruanda e se os líderes do genocídio não forem punidos,
definitivamente, antes do fim da próxima década, outro massacre acontecerá.
Como eu disse, a matança nunca parou. Nós dizemos em Ruanda que a música ainda
é a mesma, só mudaram os dançarinos.
No filme Hotel Ruanda, todas as cenas são fiéis à realidade?
O roteiro do filme é mais ou menos fiel ao que aconteceu.
Mas alguns detalhes foram modificados. Muitas das cenas, por exemplo, são menos
violentas do que houve na realidade. Também há um pouco de pura ficção. Há uma
cena, por exemplo, que retrata a mim e à minha mulher no telhado do hotel. Isso
nunca aconteceu, pois nós não íamos ao telhado. Também nunca falei para que
minha mulher e meus filhos pulassem de lá, caso o hotel fosse invadido.
Você pretende voltar
a Ruanda?
Minha casa nunca será em outro país a não ser em Ruanda. Só
saí de lá porque quase fui morto. Depois do genocídio, o país estava miserável.
Não havia empregos, ninguém tinha dinheiro para nada. Os tutsis rebeldes que
chegaram ao poder eram os únicos que podiam ter bens. E eles queriam tudo o que
havia sobrado. Eu era gerente de hotel e eles queriam meu emprego, minha casa,
tudo. Em 6 de setembro fez 11 anos que estou na Bélgica. Mas voltar a morar em
Ruanda será sempre meu sonho.
Aventuras na História n° 051
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