quinta-feira, 28 de julho de 2011

11 DE MARÇO DE MADRI ASSINALA O FRACASSO DA “GUERRA AO TERROR”

Minha promessa  é um compromisso”. Foi assim que, no dia 18 de março, uma semana após os atentados que deixaram mais de duas centenas de mortos em Madri, José Luis Zapatero, primeiro-ministro eleito da Espanha, rejeitou o pedido de John Kerry para que as tropas espanholas permanecessem no Iraque. Zapatero já tinha respondido de modo similar a um pedido idêntico formulado por George Bush: até junho, as forças espanholas desligam-se da coalizão de ocupação do Iraque. Assim, a Doutrina Bush sofria sua primeira derrota eleitoral na Europa.
Os atentados de 11 de março em Madri mudaram o rumo das eleições espanholas. O primeiro-ministro conservador José María Aznar temeu o desfecho logo que eclodiram as explosões assassinas da Al-Qaeda – e lançou uma ofensiva de contra-informação destinada a enganar a opinião pública. Aznar responsabilizou o ETA, procurando criar um cenário eleitoral favorável à sua política de dura repressão contra o terrorismo basco. Ocultou os indícios e, depois, as evidências que apontavam para a Al- Qaeda. A mídia, vergonhosamente, repercutiu a farsa governamental .
Mas a farsa não conseguiu se sustentar até as eleições de 14 de março. A negativa formal do ETA, as mensagens da Al-Qaeda assumindo a autoria e todo um conjunto de evidências difundiram-se entre a opinião pública.
Na véspera das eleições, manifestações de rua diante das sedes do governista Partido Popular exigiam a verdade.
E, nas urnas, os eleitores condenaram, ao mesmo tempo, a manipulação de Aznar e a sua política de alinhamento à Doutrina Bush. A reviravolta deu a vitória ao Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) e seu candidato, Zapatero, que prometera na campanha eleitoral retirar as forças espanholas do Iraque.
A invasão do Iraque, em 2003, dividiu a Europa.
A “velha Europa”, na denominação jocosa do secretário da Defesa americano Donald Rumsfeld, sob a liderança da França e da Alemanha, rejeitou o pedido de Washington de autorização da ONU para a operação militar. A “nova Europa” – essencialmente, Grã- Bretanha, Espanha, Itália e Polônia – engajou-se na coalizão americana, desafiando a opinião pública que se manifestava contra a guerra. Depois da queda de Bagdá e da captura de Saddam Hussein, evidenciou-se que o argumento central da Casa Branca para justificar a invasão – a ameaça das armas de destruição em massa – não passava de uma fraude. A notícia abalou a coalizão, mas não a destruiu. A reviravolta espanhola pode destruí-la.
França e Alemanha recuperaram a iniciativa diplomática.
Colocaram em marcha um processo de discussão de uma política unificada européia contra o terror.
Em linha diametralmente oposta à Doutrina Bush, definiram que o combate ao terror baseia-se no “estado de direito”, ou seja, no respeito à democracia e às liberdades.
Distinguindo-se de Washington, reafirmaram que o terror fundamentalista nutre-se da ocupação do Iraque e da intransigência de Israel na Palestina. Em síntese, ofereceram uma alternativa estratégica à “guerra ao terror” desenhada pelos neoconservadores republicanos dos Estados Unidos.
A Espanha é a primeira peça a cair no jogo de dominó da “nova Europa”. Na Itália, pipocaram manifestações públicas pela retirada das forças militares do país no Iraque. Na Grã-Bretanha, a posição de Tony Blair voltou a parecer vulnerável. Os Estados Unidos, temendo o isolamento, procuram uma saída capaz de envolver a ONU na estabilização do Iraque. Toda a política internacional começou a se descongelar. Mas a chave da porta não está na Europa – está nos Estados Unidos. As repercussões do 11 de março de Madri na campanha eleitoral americana podem selar o destino da candidatura de Bush à reeleição e da própria Doutrina Bush.
O 11 de março foi interpretado pela Casa Branca como prova de que a “guerra ao terror” deve ser aprofundada. Bush pediu a unidade da Europa em torno da liderança americana e praticamente acusou Zapatero de traição. Mas a outra interpretação do 11 de março parece influenciar uma parcela crescente dos eleitores nos Estados Unidos. As pesquisas de opinião sugerem que praticamente metade dos americanos avalia os atentados de Madri como prova do fracasso da “guerra ao terror” de Bush. É uma avaliação razoável: afinal, dois anos e meio depois do 11 de setembro de 2001 e um ano depois da queda de Bagdá, o mundo ficou muito mais inseguro.

E A MÍDIA EMBARCOU...
A mídia espanhola – tevês e jornais – embarcou alegremente na operação de manipulação de informações deflagrada pelo governo do primeiro-ministro José María Aznar logo depois dos atentados de 11 de março em Madri. E não foram só os órgãos alinhados com o Partido Popular, de Aznar.
A agência de notícias EFE, por exemplo, conhecida por suas posições independentes, insistiu na autoria do ETA ao longo de toda a quinta-feira, o 11 de março. Continuou na mesma linha mesmo após o partido Herri Batasuna, aliado político do ETA, haver negado a participação do grupo. Os noticiários eletrônicos dos principais diários nacionais – El País e El Mundo – seguiram trajetória idêntica. Na sexta-feira e até mesmo no sábado, desafiando evidências contundentes, a mídia ainda apresentava o ETA como hipótese principal, deixando a “hipótese” Al-Qaeda em plano secundário. No domingo, dia da eleição, a farsa foi apenas amenizada: as duas “hipóteses” dividiam o noticiário.
Mais grave ainda foi o comportamento da TVE, maior grupo de rádio e TV do país, emissora pública mantida por uma mistura de fundos estatais e publicidade. Ao longo de toda a quinta-feira, os repórteres da TVE começavam suas matérias com: “Os atentados cometidos pela ETA”. Um jornalista, inclusive, começou dessa forma a sua reportagem ao entrar ao vivo, exatamente depois da coletiva em que o Herri Batasuna negou a responsabilidade do ETA. Nenhum espaço sequer para a dúvida. Na sexta-feira à noite, a TVE alterou subitamente a sua programação para exibir um antigo documentário sobre o ETA. Manipulação pouca é bobagem.
Depois das eleições, quando tudo terminou, o diário El País, que tem (ou tinha) a fama de um dos melhores do mundo, dedicou uma página a se justificar. Chamou Aznar de mentiroso e informou que o primeiro-ministro, pessoalmente, havia telefonado na quinta-feira para o diretor de redação assegurando que o ETA era o responsável. O jornal esqueceu de explicar por que não publicou isso na sexta-feira.
Também esqueceu  do primeiro princípio do jornalismo: desconfiar do governo.

Boletim Mundo Ano 12 n° 2

VOLTANDO PARA CASA

O Censo 2000 confirmou o arrefecimento das migrações inter-regionais.E também registrou o crescimento das migrações de retorno direcionadas para o Nordeste.

Regina Araújo
O Brasil sempre foi um país de grandes deslocamentos populacionais. Antes ainda da independência, no século XVIII, quando a economia açucareira apresentava sinais de estagnação e se iniciava a febre de metais preciosos na região das Minas Gerais, o nordeste da América portuguesa transformou-se em área de repulsão populacional. Bem mais tarde, com o declínio das atividades mineradoras, nordestinos e mineiros iriam se deslocar para as regiões de expansão cafeeira do oeste paulista. Quase simultaneamente, na segunda metade do século XIX, o trabalho de extração da borracha nas seringueiras amazônicas surgia como uma alternativa de sobrevivência para contingentes importantes da população nordestina, expulsos de sua região de origem pela estagnação da produção e do consumo.
Em meados do século XX, a atividade industrial passou a comandar a economia, articulando as diversas regiões produtivas às necessidades da Região Sudeste.
O rápido processo de urbanização que acompanhou o arranque industrial foi alimentado pelo fluxo de trabalhadores agrícolas de todas as partes do Brasil – em especial da Região Nordeste – na direção das grandes cidades do Sudeste. Um pouco mais tarde, a modernização da agricultura e a concentração fundiária no Centro- Sul  geraram fluxos migratórios para as fronteiras agrícolas do país: primeiro, no Centro-Oeste e, em seguida, na Amazônia.
Mas, ao que tudo indica, o Brasil está parando.
Os últimos censos demográficos revelaram redução significativa dos movimentos migratórios, principalmente aqueles que envolvem mudanças de domicílio entre os estados da federação. Na década de 60, o número de indivíduos recenseados em um estado diferente daquele em que nasceram apresentou crescimento anual de 4,2%; na década de 70, o crescimento médio anual foi de 3,3%, baixando para 1,6% entre 1980 e 1991 e permanecendo neste último patamar até o fim da década de 1990. O esgotamento da oferta de empregos nos centros industriais e a concentração fundiária nas antigas fronteiras agrícolas agem, em conjunto, para produzir um assentamento demográfico inédito na história do país: cada vez mais, a busca de oportunidades de terra e trabalho se realiza dentro dos limites dos estados de origem da população.
Ainda que o fluxo de migrantes entre os estados brasileiros tenha diminuído sensivelmente nas últimas décadas, suas marcas ainda estão presentes nas pirâmides etárias de muitos estados brasileiros. Esses gráficos narram, na linguagem fria dos números, a história dos fluxos migratórios do pós-guerra.
O caso de Rondônia é exemplar. O estado funcionou como um grande pólo de atração de migrantes nas décadas de 1970 e 1980, quando diversos projetos de colonização agrícola foram implementados  ao longo da BR-364, a rodovia Brasília-Acre. Em 1991, cerca de 62% da população do estado era constituída por migrantes, a maior parte dos quais vindos do Paraná, de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul. No ano 2000, a população não-natural representava 52% do total – e era constituída principalmente por adultos, em especial na faixa dos 30 aos 40 anos. A parte inferior da pirâmide registra a redução e interrupção do fluxo migratório: cerca de 80% dos naturais de Rondônia têm menos de 20 anos e seus pais, na maioria dos casos, nasceram em outros estados .
O Paraná narra história parecida com a de Rondônia, mas cronologicamente anterior. No ano 2000, a maior parte da população migrante paranaense já tinha mais de 50 anos de idade. Nesse caso, as mais importantes correntes migratórias aconteceram entre as décadas de 40 e 50, quando as terras agrícolas do norte do estado foram ocupadas pela cultura de café. A concentração fundiária e o avanço irresistível da soja, entre o final da década de 60 e a década de 80, bloquearam o fluxo de entradas e promoveram migrações de saída. Entre as centenas de milhares de paranaenses que deixaram sua terra natal nessa época, muitos são pais das crianças e jovens de Rondônia registrados nos dois últimos censos.
O Censo 2000 mostra que apenas três estados da federação – Amapá, Amazonas e Roraima – apresentaram crescimento superior a 40% da população de não-naturais depois de 1991. Isso significa que estes estados continuam a receber fluxos migratórios importantes, pelo menos relativamente ao tamanho de suas populações. A grande maioria desses migrantes partiu de cidades do Pará e do Maranhão e se estabeleceu nos centros urbanos locais, em processo acelerado de crescimento.
O Maranhão, em particular, ocupa o pólo oposto: enquanto ocorre forte evasão populacional, a população de não-naturais cresceu apenas 0,8% no último período inter-censitário.
A Região Nordeste traz uma novidade significativa.
Embora o Nordeste continue a comportar-se como área de expulsão de populacional, o ritmo da evasão retrocedeu sensivelmente e – aí está o ponto – entre 1995 e 2000 intensificou-se o fluxo migratório direcionado para as cidades da região. O Censo 2000 seguiu as pistas desse fluxo e elas sugerem que os migrantes são, em sua maioria, nordestinos que retornaram para a sua região de origem depois de viverem por muitos anos no Sudeste.
Essa história também tem forte conteúdo etário.
O saldo migratório negativo concentra-se nos grupo de 20 a 24 anos de idade: são trabalhadores que buscam oportunidades de emprego nas outras regiões do país. O saldo migratório positivo concentra-se nos grupos de 25 a 34 anos e de 7 a 15 anos: são adultos que constituíram família e retornam, junto com seus filhos, para sua região de origem. Moral da história: parcela crescente dos migrantes do Brasil contemporâneo está, na verdade, apenas voltando para casa.

Boletim Mundo Ano 12 n° 2

“DEVE HAVER ALGO PIOR EM ALGUMA PARTE, MAS NÃO SEI ONDE

Há duzentos anos, a revolução dos “jacobinos negros” derrotou a França napoleônica e aboliu a escravidão. Hoje, o Haiti amarga o fim das esperanças na “segunda independência” prometida por Aristide.
Newton Carlos
Ama rebelião de escravos, deflagrada em 1791, derrotou forte contingente do Exército francês e, 13 anos depois, criou a primeira república negra do mundo – o Haiti, primeiro país no continente a abolir a escravidão. Antes de Simon Bolívar, surgiram no Haiti os “jacobinos negros” (versão caribenha dos “radicais” da Revolução Francesa), liderados por Toussaint L’Ouverture, vencedores das tropas de Napoleão Bonaparte.
Por que a metrópole tinha olho tão grande no Haiti, onde Napoleão entregou o comando ao marido da sua irmã? Muito açúcar, que produzia mais riquezas do que as Treze Colônias inglesas juntas.
Eram 600 engenhos. Chegaram a cobrir a metade do caixa de Luís XIV. A independência do Haiti foi conseguida por meio de uma forte mas efêmera aliança entre negros e mulatos. Mas um sistema de castas logo surgiu, favorecendo a mulatos mais cultos e com maior poder aquisitivo. Constituiu-se uma oligarquia que dominou o país até 1950, em conivência com interesses estrangeiros. “Ajuda a bancos que queriam fazer negócios sem riscos”, disse o historiador Germán Arciniegas em seu clássico Entre a liberdade e o medo. Foram fuzileiros dos Estados Unidos que treinaram a Guarda Haitiana, embrião do Exército do Haiti. “Um Exército predatório e corrupto” escreveu o jornal Washington Post.
C. R. L. James, intelectual antilhano, de Trinidad, chamou de “um dos grandes épicos de lutas e conquistas revolucionárias” o fato de escravos terem sido capazes de “organizar-se como um povo e derrotar a nação mais poderosa da época”, a França napoleônica.
Mas, exatos duzentos anos depois, o Haiti é devastado por violência política, aids e pobreza.
O pano de fundo histórico é formado pelas velhas pilhagens. A França, com apoio dos Estados Unidos, cobrou 18 bilhões de dólares, a preços de hoje, como compensação pela perda das plantações. No final do século XIX, 80% da renda nacional do Haiti eram para pagar dívidas e juros. Os Estados Unidos ocuparam o Haiti de 1915 a 1934. Treze golpes de Estado desde a independência. Negros, em busca incessante de uma redenção anunciada e nunca consumada, abriram caminho para que um demagogo, François Duvalier (o “Papa Doc”), se elegesse em 1957 e acabasse implantando uma ditadura brutal, com seus “tontons macoutes”, os bichos papões assassinos, e exploração política do vudu, a magia negra. “Deve haver algo pior em alguma parte, mas não sei onde”, comentou um diplomata europeu. A ditadura passou de pai a filho, Jean-Claude Duvalier (o “Baby Doc”), e só apodreceu em 1986.
Com a marca antiga de nação mais pobre do continente, sem dispor sequer de uma “pobreza digna”, tantas vezes prometida, o Haiti comemorou os duzentos anos de existência num clima historicamente familiar. Vale- tudo político, conflitos e sangue nas ruas e o povo, sempre enganado, sem saber que rumo tomar.
A derrubada do ex-presidente Jean Bertrand Aristide, consumada pela intervenção militar franco-americana, representou uma tragédia nacional e o fim de mais uma temporada de fantasias de redenção. “Para as massas haitianas, Aristide representa a volta de sonhos não realizados, de liberdade e dignidade para todos”, disse Lainecc Hurbon, teólogo haitiano, quando Aristide foi eleito pela primeira vez, em 1990.
Na reta final, agora em fevereiro, milícias armadas e não o povo pobre, sustentavam Aristide, que só se deslocava de helicóptero. Buscou refúgio com sua família – casou-se com uma haitiana branca de origem americana – numa residência luxuosa cercada de guarda-costas contratados nos Estados Unidos. A oposição reunida na Convergência Democrática estava repleta de ex-aliados e uma das  maiores gangues armadas, viradas contra o palácio, recebeu seus fuzis do próprio palácio. Os ministros caíram fora antes da queda de Aristide, mostrando a classe de gente que cercava o presidente.
Afinal, tombou o próprio Aristide. “Há de brotar de novo, as raízes foram muito bem plantadas”, disse o presidente deposto em sua primeira mensagem no exílio.
A ilusão de uma segunda volta por cima? Com a ambição de passar à história como pai de uma “nova independência”, Aristide no primeiro mandato só ficou em palácio sete meses. Os militares o expulsaram. Reinstalouse em 1994, por meio de intervenção militar dos Estados Unidos, que pretendiam “estabilizar” o Haiti e conter o “boat people”, os haitianos que se jogam no mar em direção às praias americanas. Fala-se nisso de novo.
Aristide é um dos personagens mais fascinantes da história do Haiti. Ordenado padre em 1962, com seus sermões inflamados contra um regime brutal e a miséria do povo, mobilizou contra ele a própria cúpula da Igreja, que não estava disposta a lançar-se numa política de confronto. Conhecedor de línguas mortas e vivas (latim, grego, inglês, espanhol, italiano e o francês herdado da ex-metrópole), foi despachado para o Canadá onde completou seus estudos de psicologia.
Voltou em 1985 e se instalou na paróquia de uma área miserável da capital haitiana, disposto a radicalizar a “mensagem de Deus”.
Tornou-se porta-voz das comunidades da teologia da libertação. O creóle, a língua nativa, foi empregado com habilidade em ataques ao “imperialismo americano”.
Segundo o Aristide daquele tempo, “mais perigoso do que a Aids”. A ditadura afinal esgotou-se em 1986, mas ficou um “duvalierismo” sem os Duvalier. O jovem padre escapou de tentativas de assassinato, ao mesmo tempo em que enfrentava a ira do Vaticano. Era acusado de “incitar ódios, violência e luta de classes”. Foi expulso da ordem dos salesianos. Manifestações nas ruas impediram novo despacho para fora do país.
Aristide perdeu sua paróquia e sua irmandade.
Mas disparou em popularidade e acabou se elegendo presidente em 1990, à frente de uma “lavalás”, uma avalanche, nome de seu movimento. Aos poucos, transfigurou-se num poderoso cacique político, dissolveu o Exército, criou para uso próprio uma polícia nacional, armou milícias, reelegeu-se de modo fraudulento em 2000 e agora caiu.
O ex-padre foi esperança de mudanças democráticas, depois de longa ditadura portadora de misérias.
Não deu curso, no entanto, ao fortalecimento das instituições e congelou a imagem de um presidente onipotente e messiânico. Daí ao recurso às velhas receitas de clientelismo, corrupção e violência foi um pulo.
Os primeiros a se referirem a ele como um “grande ditador” eram encontrados entre os idealistas que conviveram com ele na teologia da libertação, participaram das suas lutas e o ajudaram a subir.
Sede de poder absoluto e incapacidade de negociar honestamente. Mesmo as promessas de uma “pobreza digna” não se sustentaram. Logo se incorporaram aos denunciantes a sociedade civil e os estudantes. O colapso tornou-se inevitável. Embora com manchas na reeleição de 2000, Aristide foi produto da democracia pela primeira vez exercida no Haiti em 1990. A degradação do ex-padre da teologia da libertação representou triste inversão na democracia num país do continente.
Aristide consagrou-se e degradou-se nela.

Boletim Mundo Ano 12 n° 2

GOLPES, GUERRA E INSURREIÇÕES NA AMÉRICA ANDINA

A sombra do colapso político e institucional ameaça  toda a região andino caribenha da América do Sul. Não existe uma “crise regional”, mas a conjunção de crises nacionais.
Essas crises se distinguem em quase tudo. Na Venezuela, a polarização política entre o governo de Hugo Chávez e a oposição começa a degradar-se em violência e não existe saída institucional à vista. Na vizinha Colômbia, a “solução militar” do governo de Álvaro Uribe para a guerrilha das Farc aprofunda a espiral da guerra interna. Na Bolívia, a ruptura das promessas que acompanharam a formação do governo interino de Carlos Mesa pode provocar um novo levante popular.
As distintas crises nacionais têm um traço comum: as três, de um modo ou de outro, relacionam-se com as políticas de Washington para a América Latina. Essas políticas, elaboradas pelos neoconservadores republicanos, retomam e atualizam os dogmas dos tempos do Big Stick, procurando alinhar os Estados da região às estratégias e aos interesses definidos na Casa Branca

A VENEZUELA COMO ALVO
“Todas as assinaturas devem ser respeitadas”, declarou um representante oficial do Departamento de Estado dos Estados Unidos. Do que ele falava? Das assinaturas coletadas pela oposição venezuelana pedindo a convocação de um referendo popular para decidir sobre a interrupção do mandato do presidente Hugo Chávez. Essas assinaturas percorrem um tortuoso caminho de escrutínio judicial, pois o governo colocou boa parte delas sob suspeição.
Qual seria a reação de Washington se qualquer governo estrangeiro, em 2000, ousasse pronunciar-se pela recontagem geral dos votos da contestada eleição que conduziu George Bush à Casa Branca? Chávez, no seu feitio, retrucou irado dizendo que os Estados Unidos interferem em assuntos internos venezuelanos, financiam diretamente a oposição e articulam um golpe de Estado.
No calor da hora, ameaçou cortar as exportações de petróleo para os Estados Unidos, que representam cerca de 13% das importações petrolíferas americanas. Depois, baixou um pouco o tom, certamente avaliando a forte dependência de seu país das divisas obtidas com as vendas de petróleo.
A “revolução bolivariana” iniciada por Chávez em 1999 surtiu efeitos econômicos desastrosos. Sob as suas políticas nacionalistas e populistas, o PIB do país retrocedeu nada menos que 18%, nos últimos quatro anos. De modo geral, a pobreza aumentou. Mas o presidente retém taxas de aprovação entre 30% e 40%, concentradas na população mais pobre. A desmoralização dos partidos de oposição, elitistas e corruptos, é parte da explicação. Outra parte encontra-se nos programas sociais chavistas, impulsionados pelas rendas do petróleo e direcionados para as massas de subempregados e desempregados de Caracas e alguns outros importantes centros urbanos.
A polarização política na Venezuela desenvolve-se em terreno perigoso. De um lado, os partidos tradicionais virtualmente desmancharam-se antes da chegada de Chávez ao poder e hoje atuam sob o guarda- chuva da principal confederação empresarial, que tem o apoio de alguns importantes sindicatos. De outro, o Movimento Bolivariano do presidente não constituiu verdadeiros partidos políticos, apoiando-se na oficialidade média do Exército e em movimentos populares ligados ao aparato estatal. É a receita para a violência.
Tudo se complica com a obsessão americana de derrubar o governo venezuelano.
Entre os responsáveis pela política externa de Bush, fala-se num “eixo do mal” latino-americano organizado por Chávez e Fidel Castro. É bobagem, mas se sustenta na retórica anti-americanista do venezuelano.
Em abril de 2002, Washington apressou- se em apoiar um golpe de Estado contra Chávez, que acabou fracassando.
Entre os assessores mais extremistas de Bush, circulam idéias sobre uma intervenção militar direta na Venezuela. Mas os reveses no Iraque e a perda de credibilidade mais geral da Doutrina Bush não estimulam aventuras. Agora, a aposta é no caos institucional, que poderia abrir caminho para outra aventura golpista.

GUERRA SEM FIM NA COLÔMBIA
Álvaro Uribe gaba-se do aparente sucesso de sua estratégia contra a guerrilha esquerdista das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), os grupos paramilitares de extrema-direita e os barões das drogas. Foram mais de 700 prisões nesse ano e, em 2003, os assassinatos políticos recuaram 22% e os seqüestros, 27%. Parece excelente, quando se ignoram os números brutos: apenas em janeiro e fevereiro, as vítimas fatais da violência política foram quase 3.300.
Uribe elegeu-se em 2002 criticando a estratégia de negociações com os grupos guerrilheiros conduzida por seu antecessor.
Recebeu os votos de um eleitorado farto da violência política protagonizada tanto pelas guerrilhas de esquerda quanto pelos “esquadrões da morte” da direita. Contou, desde o início, com o apoio explícito de Washington: no quadro da “guerra ao terror”, Bush radicalizava o Plano Colômbia, de ajuda financeira e militar, que começou direcionado contra o narcotráfico mas transformou-se em instrumento de combate às guerrilhas de esquerda.
O presidente colombiano não reconhece nenhum conteúdo político na ação das Farc. Qualifica os guerrilheiros, simplesmente, como “terroristas”. Nessa linha, fecha o caminho a qualquer saída diferente da rendição dos guerrilheiros. Não é casual que, há menos de um ano, tenha ignorado solenemente a oferta brasileira de mediação para um processo de negociações e pacificação interna. A Colômbia de Uribe tornou- se um país dependente da ajuda dos Estados Unidos. E, apesar do formidável aparato bélico e policial mobilizado contra as Farc, a vitória militar não parece estar no horizonte.

OUTRO LEVANTE POPULAR NA BOLÍVIA?
Uma nova política para o gás, eleições presidenciais e uma assembléia constituinte até meados de 2004. Foi isso que prometeu o então vice-presidente Carlos Mesa, ao assumir a presidência da Bolívia, após o levante popular que derrubou o governo de Gonzalo Sánchez de Lozada, um magnata da mineração com fortes vínculos em Washington, em outubro do ano passado.
Sánchez de Lozada durou apenas um ano na presidência. A gota d’água que provocou o levante foi o plano de exportação do gás natural para a Califórnia, através de portos chilenos. Atrás do plano do gás e da rivalidade nacional com o Chile, encontram-se os motivos profundos da rebelião: a miséria secular, a recessão provocada pela política econômica ortodoxa e a “guerra às drogas” conduzida em associação com Washington, que destrói as plantações de coca e o modo de vida tradicional dos ameríndios.
A população pobre de El Alto, a imensa favela no topo da montanha, acima de La Paz, desceu rumo à capital e ganhou o apoio da Central Operária Boliviana (COB), à frente dos trabalhadores das minas.
A eles juntaram-se Felipe Quispe, líder dos camponeses ameríndios e Evo Morales, o segundo colocado nas últimas eleições presidenciais e líder dos cocaleros, os aymarás que há séculos cultivam a coca.
O confronto nas ruas perdurou por dias e deixou no mínimo 59 mortos, até a renúncia e fuga do presidente. O representante enviado por Lula, Marco Aurélio Garcia, participou das frenéticas negociações que permitiram a Mesa assumir a presidência.
Mas, tão logo as ruas de La Paz retornaram à calma, Mesa “esqueceu” suas promessas. Agora, ele pretende completar o mandato de Sánchez de Losada ou, no máximo, antecipar as eleições para 2005.
Ele confia na divisão das lideranças populares, pois Evo Morales parece disposto a aguardar que um dia as urnas lhe entreguem o poder. É um jogo de alto risco: a COB e Felipe Quispe ameaçam convocar um novo levante para completar o serviço iniciado em outubro.

KIRCHNER E LULA DIANTE DO FMI
Não é um problema de ideologia, mas de bilhões  de dólares”, disse a senadora Cristina Fernández de Kirchner, primeira- dama argentina, ao anunciar que seu marido, o presidente Nestor Kirchner, havia finalmente concluído um acordo, no dia 10 de março, com o Fundo Monetário Internacional (FMI), após uma conversa telefônica de meia hora com Anne Krueger, diretora- gerente interina da instituição.
O anúncio do acordo provocou alívio nos meios financeiros internacionais, que temiam um calote bilionário e histórico.
Mas não resolveu a grave situação econômica da Argentina.
E, de quebra, gerou muitas indagações sobre a óbvia diferença nas relações que os governos Kirchner e Lula mantêm com o FMI. Enquanto os argentinos lutam, esperneiam e impõem condições, os brasileiros aceitam passivamente as normas do banco.
Como explicar tudo isso?
Em dezembro de 2001, a Argentina decretou moratória da sua dívida com os bancos privados, no valor total de 88 bilhões de dólares. Antes disso, a economia do país tinha sido completamente despedaçada. A crise econômica e social incendiou Buenos Aires, levou dezenas de milhares de desempregados e aposentados às ruas da capital e provocou a renúncia do então presidente Fernando De La Rúa.
Kirchner, eleito em maio de 2003, num quadro de profunda crise política, encarava a difícil tarefa de reconstruir a economia de seu país. No que se refere à dívida externa, adotou a política de honrar os compromissos devidos às instituições financeiras multilaterais, como o FMI, mas manteve a moratória para com os bancos privados.
No dia 9 de março, venceu o prazo para o pagamento da parcela de 3,1 bilhões de dólares, de um total de 21,6 bilhões de dólares devidos ao FMI. Fazendo coro com os bancos credores e o G-7 (Grupo das sete maiores economias do mundo), Anne Krueger tentou impor a Kirchner o encerramento imediato da moratória. Essa era a sua condição para renovar um acordo assinado em setembro de 2003, que permitiu à Argentina re-escalonar a dívida com o FMI.
Foi então que Kirchner reagiu. Disse que seu país não tem como sair da moratória, alegou que 20 dos 36 milhões de argentinos vivem hoje abaixo da linha de pobreza e assegurou que não cortaria gastos sociais para pagar banqueiros. Se o FMI mantivesse essa condição, a Argentina não pagaria os 3,1 bilhões de dólares. No apagar das luzes, foi concluído um acordo: Krueger retirou as exigências, mas Kirchner teve que aceitar a formação de um comitê de bancos que vai negociar a dívida com os credores privados.
Por que Kirchner aceitou o confronto e quase promoveu a ruptura? Ao contrário de Lula, o presidente argentino não tem um passado “esquerdista”. A sua origem política é o Justicialismo, um movimento cujas raízes encontram-se no populismo de direita de Juan Domingo Perón. Assim, há uma curiosa inversão de expectativas: Lula, líder do PT, aceita docilmente a política do FMI, ao passo que o peronista Kirchner ameaça com a ruptura.
Uma parte da explicação já foi dada pela mulher de Kirchner, a senadora Cristina: não se trata de ideologia, mas de dólares. A Argentina, de fato, não tem como pagar, ainda se assim desejasse. Mesmo os 3,1 bilhões enviados ao FMI representam cerca de 25% de suas reservas internacionais.
A economia argentina foi virtualmente destruída pelo colapso do sistema de câmbio fixo peso/dólar. Entre 1998 e 2002, o PIB argentino retrocedeu, em termos reais, mais de 18%. Só em 2001, o pior ano, a queda atingiu quase 11%: algo semelhante ao impacto de uma guerra .
O desastre econômico levou de turbilhão o sistema partidário, transformando em pó a União Cívica Radical (UCR) do ex-presidente De La Rúa e despedaçando o Justicialismo. Um eventual fracasso de Kirchner abriria as portas para uma erupção social incontrolável.
Sob a moratória, o governo Kirchner assistiu a uma expansão de nada menos que 13,7% do PIB em 2003. É verdade que esse crescimento partiu de uma base muito baixa mas, mesmo assim, o PIB retornou a um nível superior ao de 2001. É esse desempenho da economia que sustenta Kirchner. As elites econômicas e políticas não estão dispostas a exigir o fim da moratória, arriscando interromper a expansão. Elas têm mais medo do vulcão social que do FMI.
O panorama argentino está muito distante do brasileiro, cuja economia não foi destruída, ainda que tenha atravessado anos severos de estagnação. O governo Lula não nasceu do vácuo político, em meio à desestabilização social, como aconteceu com Kirchner. Comportando-se como sucessor de Fernando Henrique Cardoso, Lula resolveu adotar uma linha de condução da política econômica baseada na estabilidade monetária e na atração de investimentos externos.
Essa linha impõe, necessariamente, cultivar a credibilidade junto ao FMI e aos bancos credores, mesmo que isso signifique cortar os investimentos sociais.
Lula leva uma vantagem sobre FHC, quando se trata de aplicar essa política econômica: agora, o PT não está na oposição. Mas isso já é uma  outra história.

Boletim Mundo Ano 12 n° 2

OS CRAVOS DE ABRIL FORAM VERMELHOS

Há 30 anos, no 25 de abril, Portugal derrubava a ditadura salazarista e flertava, por alguns meses, com a revolução socialista.

Valério Arcary
As vidas humanas começam, possivelmente, mais de uma vez. A minha própria foi atropelada naquela madrugada de 25 de abril de 1974. Eu tinha 17 anos.
Em fevereiro de 1974, o general Antônio de Spínola publicou o livro Portugal e o futuro. Pela primeira vez, uma voz do mais alto comando das Forças Armadas, ex-Comandante-em-Chefe do Exército na Guiné-Bissau, desafiava o principal tabu da ditadura ao admitir publicamente que era impossível uma solução militar para o problema colonial. Spínola propunha que o regime tomasse a iniciativa política de um projeto de descolonização inspirado no modelo britânico do pós-guerra. Para surpresa de todos,  o governo de Marcelo Caetano autorizou a publicação do livro: as divisões dentro do bloco de forças de sustentação do regime eram muito maiores do que pareciam.
O livro de Spínola era somente a ponta de um iceberg. Na oficialidade média do Exército e da Marinha já se articulava, clandestinamente, o Movimento das Forças Armadas, o MFA, também conhecido como o Movimento dos Capitães, que liderou o levante de 25 de abril. A repercussão do livro foi imensa, inclusive entre os jovens da minha geração. Naquela época, quem fracassasse nos exames vestibulares iria imediatamente para a tropa, assim que completasse o ensino médio.
Sendo brasileiro, filho de uma funcionária do Itamaraty que trabalhava em Lisboa desde 1966, meu destino estava poupado da guerra africana. Mas eu não poderia ficar indiferente à terrível sina dos que teriam quatro anos de serviço militar pela frente.
Fui assim impelido a participar do movimento estudantil pós-68, sob o regime ditatorial português.
Minha primeira passeata foi quando o ditador espanhol Francisco Franco condenou à morte Garmendia e Otaegui, dois militantes do grupo basco ETA. Em solidariedade, fizemos uma concentração, não mais do que cem secundaristas, na esquina das avenidas Alexandre Herculano e Liberdade, centro de Lisboa, e destruímos à pedrada a imensa vitrine de vidro da loja da Ibéria.
Foi glorioso desafiar as duas ditaduras com as mesmas pedras. Em minutos, fomos cercados pela polícia. Invariavelmente, alguns dos nossos eram presos, para serem soltos no dia seguinte.
Na segunda metade de 1973, os trabalhadores portugueses iniciaram um poderoso movimento de rejeição à ditadura. Multiplicaram-se as greves por aumentos de salários, algumas com vitórias fulminantes.
As classes proprietárias, até a véspera do 25 de abril entrincheiradas na defesa da ditadura, não estavam dispostas a ceder. A queda definitiva do regime aconteceria no próprio dia 25, quando dezenas de milhares de pessoas foram ao encontro dos soldados e oficiais do MFA, liderados por Otelo Saraiva de Carvalho, que,  nas ruas, exigiam a renúncia de Marcelo Caetano. Em clima de festa, rodeavam os soldados e oficiais revoltosos.
Muitos, espontaneamente, levavam cravos vermelhos nas mãos. Atiravam as flores aos soldados e enfeitavam os seus antes temidos fuzis. Daí vem o nome: Revolução dos Cravos.
Cai o regime. Começa um período conturbado, de intensa agitação política, em que se sucedem vários governos provisórios sob a presidência de Spínola que, em 27 de julho, reconhecia a independência das colônias africanas. Uma parcela desesperada da extrema-direita tentou um golpe, em 28 de setembro de 1974, e foi derrotada.
Tentaria uma nova quartelada, em 11 de março de 1975. O fracasso estrepitoso precipitou uma radicalização do MFA e das classes trabalhadoras.
A radicalização revolucionária derrubou Spínola.
O IV Governo Provisório, comandado por Vasco Gonçalves, adotava um programa de nacionalização dos bancos e das principais empresas monopolistas, com o objetivo de impedir a fuga de divisas do país. Muitas empresas passaram a ser dirigidas por comissões de trabalhadores.
A aceleração da reforma agrária, sobretudo no Alentejo, levou à formação das Unidades Coletivas de Produção. Embriões de poder popular também germinavam nos bairros, nas escolas, e sobretudo, nos quartéis.
Nesse período foram definidas as condições da independência das colônias africanas. Entre março e julho, parte expressiva da burguesia portuguesa fugiu do país. Começava o “verão quente” de 1975.
O rumo da vida das famílias acompanhava a aceleração dos ritmos da revolução. Semanas depois do fracassado 11 de março, um português que tinha propriedades no Brasil e em Portugal, e que havia recorrido à minha mãe na Embaixada para conseguir a equivalência escolar dos documentos dos filhos, procurou a minha mãe, novamente, para lhe oferecer, por uma pechincha, a sua residência, um sobrado majestoso e vazio em Alvalade. Essa era a sua estratégia para certificar-se de que “os comunistas não a iriam ocupar”. A casa ficava na mesma rua onde morava Marcelo Caetano, antes de fugir. Foi assim que acabei indo morar em uma mansão de três salas, cinco quartos, jardim e garagem, um padrão de residência muito acima do que o salário do Itamaraty poderia alguma vez permitir.
O período da radicalização da revolução, entre a derrota do golpe de 11 de março e o 25 novembro  de 1975, teve a intensidade de vários anos para quem o viveu. Milhões de pessoas estavam convencidas que o país estava em transição para algum tipo de socialismo.
Nesses meses, militei pela primeira vez ao lado de trabalhadores, e descobri a força moral da solidariedade, e a intensidade dos instintos de classe que mobilizam para a ação coletiva.
Uma pressão social dessa natureza não era fácil de resistir. Mas, talvez movido por um espírito naturalmente cético, eu não acreditava que aquela transição conduziria de fato ao socialismo. Mantive a dúvida, mesmo após ter participado, em cima de um tanque de guerra, no verão de 75, de uma passeata de mais de cinco mil soldados com o rosto coberto por lenços, como os bandidos dos filmes de cowboys, gritando “os soldados sempre, sempre ao lado do povo” e “viva a revolução socialista”.
No 25 de novembro, o sonho acabou. A ala da oficialidade conservadora das Forças Armadas, liderada pelo general Ramalho Eanes, deu um contra-golpe e assumiu o poder, destruindo a democracia direta nos quartéis. Todas as conquistas sociais ficaram então ameaçadas. Eanes foi eleito presidente da república, em junho de 1976. Na seqüência, em setembro, o líder social- democrata Mário Soares foi eleito primeiro ministro e o MFA foi dissolvido. A Revolução dos Cravos deixava as ruas e entrava nos livros de história.

Boletim Mundo Ano 12 n° 2

EXPANSÃO AMEAÇA MINAR A COESÃO DA ALIANÇA

O bloco europeu nasceu como aliança estratégica entre a França e a Alemanha. Agora, quando passa a agrupar 25 Estados-membros, arrisca perder sua relevância geopolítica.

Aparentemente, a União Européia (UE) encontra-se no seu zênite. Em maio, integra dez novos Estados-membros e passa a recobrir quase toda a Europa, desde o Atlântico até as fronteiras ocidentais da Comunidade de Estados Independentes (CEI). A Europa dos Quinze transfigura-se em Europa dos 25. Os novos membros são quatro países do antigo bloco soviético (Polônia, Hungria, República Tcheca e Eslováquia), uma república da antiga Iugoslávia (Eslovênia), os Estados Bálticos que pertenceram à União Soviética (Estônia, Letônia e Lituânia) e dois Estados insulares do Mediterrâneo (Malta e Chipre).
Três países do sudeste europeu – Romênia, Bulgária e Turquia – não foram admitidos dessa vez, mas figuram como candidatos oficiais à integração.
As festas protocolares, contudo, não são capazes de ocultar os sentimentos de perplexidade e desorientação gerados pela nova rodada de expansão. No terreno da economia, a “nova” UE exibe uma extensa e populosa periferia que, na hipótese mais otimista, contrastará durante décadas com o núcleo próspero do bloco europeu. No terreno da geopolítica, a meta da política externa comum parece cada vez mais distante e a liderança tradicional, exercida por franceses e alemães, diluiu-se num complexo  quebra-cabeças de interesses nacionais.
A Europa dos Quinze exibia uma descontinuidade  econômica principal, que distinguia os países e regiões da Europa mediterrânea. Em comparação com o elevado PIB per capita e a poderosa base industrial dos demais, a porção mediterrânea do bloco apresentava-se pobre e dependente das atividades agropecuárias.
Grécia, Portugal, algumas regiões da Espanha e a Itália meridional funcionam como receptoras de ajuda estrutural do bloco europeu.
O alargamento da UE aprofunda as desigualdades econômicas internas, pois os países da Europa centro- oriental – com a solitária exceção da Eslovênia – apresentam níveis de renda significativamente inferiores aos da própria Europa mediterrânea. Além disso, o conjunto de países em processo de integração à União Européia é bastante heterogêneo, do ponto de vista do PIB per capita. No extremo inferior, onde se encontram a Polônia e os Estados Bálticos, os níveis de renda atingem, no máximo, um terço daqueles vigentes no núcleo rico do bloco .
A incorporação dos novos membros, em particular a populosa Polônia, tende a provocar uma crise no orçamento da UE, em virtude da pressão por um substancial aumento na ajuda estrutural e nos subsídios agrícolas. Além disso, os países da Europa centro- oriental podem se tornar uma fonte de fluxos migratórios destinados ao núcleo rico do bloco.
O panorama geopolítico é ainda mais complexo.
Todo o projeto de integração européia surgiu, na moldura da Guerra Fria, para romper a velha lógica da rivalidade franco-alemã. A aliança estratégica entre os dois países tornou-se a locomotiva do trem europeu – e isso não foi modificado pelo tardio ingresso britânico na antiga Comunidade Européia.
O Tratado de Maastricht, de 1991, que deflagrou a união monetária, serviu como instrumento para reafirmar a aliança franco-alemã, no momento da dissolução do bloco soviético e da reunificação da Alemanha.
O euro exprimia o projeto de uma “união cada vez mais profunda” e da substituição dos interesses nacionais conflitantes pelo interesse comum da  Europa .
Mas a expansão da UE tende a diluir o poder de liderança de franceses e alemães, ampliando o espaço para divergências de orientação estratégica. Quando, há um ano, a França e a Alemanha desafiaram a decisão americana de invadir o Iraque, uma profunda fissura ameaçou partir o bloco europeu. Além da Grã-Bretanha, da Espanha e da Itália, Washington recebeu o apoio de poloneses, tchecos e húngaros. O secretário da Defesa de Bush, Donald Rumsfeld, colocou o dedo na ferida ao referir-se à divisão entre a “nova Europa” – ou seja, os países alinhados aos Estados Unidos – e a “velha Europa” impulsionada pelo “motor” franco-alemão.
A França, em especial, sempre enxergou o bloco europeu como meio para a projeção da sua influência, na Europa e no mundo. Hoje, quando a expansão ameaça essa estratégia, circulam em Paris idéias sobre a necessidade de um “núcleo duro” da UE, capaz de formular e aplicar uma política externa comum imune às vontades de Londres e às objeções dos países periféricos do bloco. Menos é mais, comenta-se à boca pequena na capital francesa.

O FRANCO COMO ILUSÃO COLETIVA
O Monoprix, popular loja de departamentos em Paris, exibe todos os seus preços em duas moedas: o euro e o franco. Não está sozinho. Na França, essa é a regra, seguida pela maior parte do comércio e até mesmo por serviços públicos. Para exprimir os preços em francos, todos usam a última taxa de câmbio franco/euro, de 1999.
O problema é que a França não tem duas moedas, mas apenas uma – o euro. O franco deixou de existir, primeiro como unidade monetária e, depois, como meio físico de troca. Há tempo, as antigas cédulas e moedas denominadas em francos foram retiradas de circulação. Mas o país inteiro faz contas na linguagem morta do franco. A França está isolada, ao menos quanto a isso. Nos outros 11 países da Zona do Euro, quase nenhum estabelecimento exibe preços nas antigas moedas nacionais.
A moeda desempenhou papéis cruciais na formação das nações. No plano econômico, configurou os mercados nacionais, funcionando como instrumento para a supressão das barreiras comerciais internas  e como “gramática” da linguagem dos preços. No plano simbólico, junto com a língua, o hino, a bandeira e o mapa, ajudou a construir as identidades nacionais. Na Inglaterra dos tempos vitorianos, uma época de liberalismo triunfante, dizia-se que o governo tinha apenas as funções de proteger as fronteiras nacionais, a ordem política interna e a “santidade da moeda”.
O experimento histórico da União Européia é fruto da crise do Estado Nação na Europa, precipitada pela Segunda Guerra Mundial. No fundo, o euro é um elemento dessa crise. Não é trivial que, anos depois da introdução do euro, os franceses insistam em pensar, calcular e falar na linguagem do franco.
Essa ilusão coletiva revela a força e a permanência da identidade nacional no país que, com a Revolução Francesa, inventou o Estado- Nação  contemporâneo.

Boletim Mundo Ano 12 n° 2

MALVINAS, UMA DAS ÚLTIMAS JÓIAS DA COROA

Nelson Bacic Olic

Situada entre 51º e 53º de latitude sul, cerca de 500 km da costa meridional da Argentina, as Ilhas Malvinas (para os argentinos) ou Falklands (para os britânicos), têm uma das menores e mais remotas capitais do mundo: Port Stanley. A soberania britânica sobre esse arquipélago do Atlântico Sul remonta ao início do século XIX. Atualmente, o território é um dos resquícios de um conjunto de pontos estratégicos marítimos (ilhas, estreitos e canais) que, no passado, sustentaram a hegemonia da Grã-Bretanha nos oceanos.
Antes de 1982, quando ocorreu a guerra entre britânicos e argentinos pela posse das ilhas, os nomes Malvinas, Falklands e Port Stanley eram virtualmente desconhecidos pela maioria das pessoas do mundo.
Formado por cerca de 700 ilhas, o arquipélago tem como destaques as duas maiores: Malvina Oeste, quase desabitada, e Malvina Leste, onde se situa a capital.
Cheguei às Malvinas num magnífico dia do verão austral. Não sei se os locais dizem isso a todos os turistas mas, segundo eles, dias semelhantes àquele 20 de janeiro, só acontecem duas ou três vezes a cada ano. Um vento constante, bem forte e relativamente frio para os padrões brasileiros, nos acompanhou durante todo o dia.
Chamou-me a atenção, quando ainda estava no navio que entrava no porto, a coloração dominantemente vermelha dos telhados das casas e a pequenez do núcleo de Port Stanley, cujos limites urbanos eram claramente perceptíveis. Também observei a ausência quase completa de árvores na ilha, que resulta das condições de solo e da relativa escassez de chuvas. A vegetação dominante é de arbustos. Chama-se, como nas savanas e estepes semi-áridas, bush – sem nenhuma alusão ao atual ocupante da Casa Branca.
Port Stanley é a única cidade das Malvinas. As outras implantações humanas que aparecem em mapas das ilhas nada mais são que sedes de fazendas, dedicadas tradicionalmente à criação de ovelhas. Calcula-se que existam pelo menos 170 mil ovelhas espalhadas no arquipélago.
Não faz muito tempo, esta era a base da economia local. Atualmente, as licenças para pesca comercial, nas águas piscosas das plataformas em torno das ilhas, representam a maior fonte de renda. Outras atividades promissoras são exploração de gás natural e o turismo.
Segundo o censo de 2001, Stanley possuía 1989 habitantes e concentrava cerca de 85% dos moradores do arquipélago. Isso, sem contar o pessoal militar britânico: o número exato é segredo, mas estima-se que pelo menos 1,5 mil militares estejam presentes nas ilhas, para evitar nova tentativa de ocupação por parte dos argentinos. Por motivos de segurança, algumas áreas são interditadas à visitação.
Mais de 90% dos kelpers, como são chamados os habitantes das ilhas, têm origem britânica. Há cerca de uma dezena de argentinos em Port Stanley, aparentemente bem integrados à comunidade. Há – surpresa! – uma brasileira: Tereza, carioca que, numa viagem às Malvinas, apaixonou-se por um kelper e acabou trocando Ipanema por essas ilhotas que flertam com a Antártida.
Os habitantes de Port Stanley se gabam de sua qualidade de vida, da virtual inexistência de criminalidade, de suas estufas floridas (quase todas as casas têm uma delas). Afirmam, apoiados pelo Guiness Book, que as Malvinas possuem o maior índice per capita de jipes land rovers do mundo. A moeda local é o Falkland Pound, que mantém paridade com a libra britânica.
Monumentos às guerras funcionam como atrações turísticas. Há um memorial em homenagem à Batalha das Falklands, entre forças navais britânicas e alemãs, em dezembro de 1914, no início da Primeira Guerra Mundial. Mais importante é o 1982 Memorial, onde estão gravados os nomes dos 255 militares britânicos que perderam sua vida durante a guerra com os “argies”, como são denominados os argentinos. Em frente a esse monumento, todo o ano, em 14 de junho, é comemorado o Liberation Day, uma data que provoca “fortes emoções e grande orgulho”.
O Britannia House Museum preserva um pouco da história das ilhas. Parte do acervo do museu está ligado ao conflito de 1982. Lá está a reprodução de um bunker, espécie de trincheira usada pelos argentinos.
Encontram-se também livros sobre a guerra: o 74 Days, de John Smith, é um diário feito por um kelper que relata o cotidiano de sua família durante a ocupação.
Os turistas visitam também os campos de batalha no interior da ilha e alguns dos cerca de cem campos minados (devidamente cercados) que, na falta de informações sobre a localização exata das minas, não puderam ser desativados.
No século XIX, os britânicos afirmavam que suas colônias eram as jóias da Coroa. Costumava-se dizer que a Índia era a maior delas. Cinqüenta e sete anos após a independência da Índia, quase só restam as Malvinas.

Boletim Mundo Ano 12 n° 2

IGREJA REINVENTOU A PÁSCOA PARA CRISTIANIZAR A EUROPA

Elaine Senise Barbosa

Páscoa! Oba, feriado. As festas são, historicamente, uma interrupção do tempo de trabalho e, mais do que um descanso, uma quebra da rotina. Elas são importantíssimas para a manutenção das relações sociais pois são eventos através dos quais a coletividade reconhece valores comuns e fatos marcantes no seu processo de formação. Desde as origens das civilizações houve a preocupação em controlar esse tempo – e essa foi uma das funções primordiais dos calendários.
Ao comemorarmos a Páscoa, encerrando a Quaresma que começa na quarta-feira de cinzas após o Carnaval, estamos marcando o nosso tempo com base no calendário cristão usado em todo o Ocidente – e nem imaginamos o fascinante processo que o trouxe até nós.
Um calendário não é um objeto que possa ser modificado de um dia para outro, exatamente por ser um elemento de identidade cultural formado na longa duração.
A definição desse nosso calendário, de suas festas, do fato dele ser aceito em metade do planeta, confunde- se com a própria história da Igreja, que por sua vez confunde-se com a história do Ocidente.
O cristianismo foi, nas suas origens, uma seita ligada a certos valores éticos e morais provenientes das sociedades urbanizadas do oriente helenístico. Por isso, a longa desagregação do Império Romano do Ocidente, marcada pela progressiva ruralização que se estendeu pela Alta Idade Média, tornou o contato dos missionários cristãos com as áreas rurais européias mais tardio e lento,  especialmente com a chegada dos povos germanos. Para os “bárbaros”, que ainda não tinham  escrita e estavam passando do estágio semi-nômade para sedentário, as divindades da natureza continuavam a marcar e a traduzir todos os grandes momentos da vida.
Em contraste, certas idéias do cristianismo eram por demais abstratas: uma virgem que é mãe; um filho que é também o pai, além do espírito santo; etc.
A nova aristocracia medieval buscou apoio na Igreja para estabilizar o seu poder usando o clero (alfabetizado) na administração do reino e como seus aliados e defensores junto às populações romanizadas a fim de que aceitassem os novos senhores. Tudo isso, em troca da conversão dos pagãos.
A atuação missionária da Igreja seguia as orientações de Santo Agostinho, um de seus mais importantes teólogos, que recomendava fazer a conversão dos “bárbaros” através da identificação entre elementos das duas culturas, até apagar o sentido original de costumes e crenças originais.
Por exemplo: construir uma capela onde havia uma árvore sagrada ou identificar ao diabo um deus pagão.
Incorporar uma festa e seus objetos e  alterar o seu significado também se encaixa nesse método de persuasão. Assim, as mais importantes festas cristãs eram, na origem, pagãs. E foi assim que se criou o calendário cristão. A Páscoa associava-se ao equinócio de primavera do hemisfério norte; o Natal, ao solstício de inverno; Finados era a festa dos mortos; Carnaval era a Saturnália, festa da inversão da ordem em Roma; além de inúmeras festas menores que correspondem a variações locais.
Os resultados foram ambíguos. Ao mesmo  tempo que essa estratégia cristianizava os pagãos, permitia que o paganismo persistisse ou aflorasse de tempos em tempos sob uma roupagem cristã, como aconteceria no século XII, época do chamado renascimento pagão. No Brasil é clássico o encontro entre cristianismo e divindades africanas.
Agora, celebramos a Páscoa pensando em ovos de chocolate e coelhinhos, outros sentidos que se agregaram à festa com o passar do tempo. Mas a definição temporal da Páscoa foi um tema muito importante para a Igreja, na medida em que esse evento ocupa o lugar principal na mística cristã.
Na história da Páscoa, Cristo é crucificado na sexta-feira e ressuscita no domingo provando ser o Messias cujo sangue limpou os pecados da humanidade.
Mas, a princípio, quando celebrava a última ceia com os apóstolos, Jesus estava seguindo a tradição judaica do Pessach, festa da passagem, que comemorava a fuga do Egito guiada por Moisés e agradecia e ofertava os frutos da terra. Posteriormente, quando os cristãos tentaram estabelecer em que ano aqueles fatos haviam ocorrido, a primeira dificuldade encontrada estava no fato do calendário judaico ser lunar, enquanto o calendário utilizado no Império Romano era solar. Não havendo como determinar o dia do ocorrido com precisão, a única coisa certa é que a crucificação fora num domingo.
Enquanto a Igreja discutia, as pessoas continuavam a seguir o velho calendário, cujo ano iniciava-se em março, no equinócio de primavera, tempo de começar os novos plantios e retomar as alegrias da vida depois dos rigores do inverno. A festa simbolizava a vida através da ressurreição das sementes. Para os pagãos, romanos ou “bárbaros”, esses fenômenos deviam-se às divindades que  eram então invocadas e cultuadas, sendo que em certas culturas era comum ocorrerem orgias rituais. Significativamente, para os cristãos essa tornou-se a época da Quaresma, período de recolhimento, de jejuns e abstinências, em oposição à liberdade carnal pagã, devidamente confinada aos dias de Carnaval.
Após muitos cálculos, em 325, o Concílio de Nicéia decidiu que a “Páscoa é o domingo que segue o décimo quarto dia da lua que chega a tal idade a 21 de março ou imediatamente depois” (21 de março é o equinócio). Traduzindo: a Páscoa ocorrerá na lua nova após a primeira lua cheia após o equinócio de primavera. Feito esse cálculo, o Carnaval é fixado quarenta dias antes.
O estranho e complicado cálculo resultou dos esforços da Igreja para conseguir conciliar as diferentes referências  culturais de que dispunha. No fim das contas, temos um duplo paradoxo: um calendário solar cuja data mais importante é definida pelo calendário lunar e uma festa cristã que bebe no judaísmo e no paganismo.

 DAS PROCISSÕES À ESCOLA DE SAMBA
Se as comemorações da Páscoa trazem em sua origem a cristianização de festas pagãs, também o ponto alto do carnaval brasileiro, por sua vez, deve algumas de suas características a um hábito religioso cristão: as procissões. No romance “Memórias de um Sargento de Milícias”, folhetim publicado como livro em 1854, Manuel Antonio de Almeida descreve um dia de procissão no Rio de Janeiro do século XIX, dia de “grande festa, de lufa-lufa, de movimento e de agitação”.
A multidão saía pelas ruas, organizada em várias sessões, cada uma com roupas e cantos próprios. A descrição se detém em uma delas: “Queremos falar de um grande rancho chamado das Baianas, que caminhava adiante da procissão, atraindo mais ou tanto como os santos, os andores os emblemas sagrados, os olhares dos devotos; era formado esse rancho por um grande número de negras vestidas à moda da província da Bahia, donde lhe vinha o nome, e que dançavam nos intervalos do Deo- Gratias uma dança lá a seu capricho”.
Décadas mais tarde, a “ala das baianas” continuaria a desfilar, com seus rodopios e belos trajes brancos, mas agora nas passarelas do samba, em pleno carnaval.

Boletim Mundo Ano 12 n° 1

O PROTOCOLO DE KYOTO ESTÁ MORTO

Nelson Bacic Olic

Enchentes no Sertão nordestino (janeiro/fevereiro de 2004); grande parte da Europa com temperaturas ultrapassando as marcas de 40º C (julho/agosto de 2003); as neves do Monte Kilimanjaro,  no Quênia, tema de livros e filmes, prestes a desaparecer; geleiras da Antártida encolhendo.
Evidências científicas indicam que houve um aumento de 0,5º C na temperatura média do planeta desde 1975. As médias térmicas nos últimos 30 anos são as maiores do milênio. Desde 1990, já são sete os anos que figuram entre os mais quentes desde que se fazem registros térmicos sistemáticos. O aquecimento global é uma realidade e já afeta, direta e indiretamente, populações de todos os recantos do planeta.
Duas correntes oferecem explicações distintas para o aquecimento global.
Uma sustenta que o fenômeno é causado fundamentalmente por causas naturais ligadas às oscilações climáticas da história geológica do planeta. A outra, com número crescente de adeptos, sustenta  que a causa principal do fenômeno é antropogênica.
A contribuição das atividades humanas para a emissão de gases causadores do efeito estufa, especialmente o dióxido de carbono, está mais que comprovada.
Se as atividades primárias e os desmatamentos geram importantes quantidades de CO2, sabe-se que cerca de 60% do total das emissões de “gases de estufa” originam-se da queima de combustíveis fósseis, especialmente o petróleo e carvão. O PIB, o patamar de industrialização e a matriz energética explicam o nível das emissões dos países .
Até quatro anos atrás, as previsões indicavam um aumento entre 1º C e 3,5º C nas temperaturas médias globais durante o século XXI. Todavia, novas pesquisas sugerem aumento bem maior: 1,4º C, na hipótese otimista, e 5,6º C, na hipótese pessimista. Entre as conseqüências, encontram-se inundações catastróficas em algumas áreas, secas terríveis  em outras, derretimento sem precedentes das geleiras e uma elevação do nível médio dos oceanos de 0,5 a um metro .
O aquecimento global ingressou na esfera das relações internacionais na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento  (ECO-92) realizada no Rio de Janeiro. Ali, foi assinada por 155 países a Convenção Sobre Mudanças Climáticas Globais, que comprometeu os signatários a registrar, no ano 2000, emissões máximas de “gases de estufa” iguais às de 1990. Entretanto, os compromissos firmados não tinham caráter compulsório.
O não cumprimento dos compromissos de congelamento das emissões, especialmente por parte dos Estados Unidos, e novos registros alarmantes sobre o aquecimento global conduziram a um novo tratado sobre o clima. O Protocolo de Kyoto, firmado em 1997, fixou a meta de redução de 5% sobre os níveis de emissões de 1990, a ser alcançada entre 2008 e 2012. O compromisso de redução compulsória tem metas diferenciadas por países e não abrange os países em desenvolvimento. Além disso, o Protocolo de Kyoto criou um sistema de comércio de créditos de emissões.
Os países com reduções de emissões superiores a 5% podem vender direitos de emissões como títulos financeiros para países incapazes de atingir a meta.
Para que o Protocolo de Kyoto entre legalmente em vigor é preciso que seja ratificado por pelo menos 55 dos países signatários, representando um mínimo de 55% do total das emissões sujeitas a redução compulsória.
Atualmente, isso parece difícil pois os Estados Unidos abandonaram o tratado e a Rússia vacila sobre a ratificação.
A hiper-potência é, de longe, o maior emissor de “gases de estufa” enquanto a Rússia ocupa o terceiro lugar .
A ONU estima que o nível das emissões globais de “gases de estufa” aumentará 10% até 2010. A estimativa indica uma reversão da tendência verificada na década de 1990, quando os países industrializados conseguiram redução de 3% em suas emissões. Contudo, a diminuição das emissões não derivou dos tratados sobre o clima mas, fundamentalmente, da violenta retração econômica experimentada pela União Soviética e pelos países do leste europeu após a desintegração do “império vermelho”.
A União Européia ratificou o Protocolo de Kyoto, anuncia que reduzirá as suas emissões em 8% até 2012 e desenvolve estudos sobre novas tecnologias “redutoras”.
De fato, até agora, só reduziu as emissões em 0,5%. Para complicar, há divergências internas. Grã-Bretanha e Espanha, temendo perder competitividade, solicitam novas discussões a respeito da meta de redução das emissões. Por outro lado, a Noruega, que criou taxas sobre emissões, e a Holanda, que definiu limites anuais de emissões por setores econômicos, parecem caminhar mais tranqüilamente para o cumprimento das metas.
Do outro lado do Atlântico, avolumam-se as vozes que pedem uma atitude mais construtiva de Washington.
Um relatório de especialistas, dirigido ao Pentágono, sinaliza as conseqüências geopolíticas das mudanças climáticas. A conservadora revista Fortune escreveu que “o clima poderá tornar-se a mãe de todas as questões relacionadas com a segurança nacional”, ameaçando a própria estabilidade do país. No Departamento de Energia, circulam esboços de um mega projeto destinado a injetar emissões de CO2 no interior de poços de petróleo desativados, que seriam depois tampados.
Os idealizadores do projeto dão de ombros para as críticas dos grupos ambientalistas e proclamam a possibilidade de estocar nesses “buracos” todas as emissões deste século.
Mesmo na hipótese improvável de que os Estados Unidos adotem medidas severas contra os “gases de estufa”, as emissões globais dificilmente serão reduzidas. Isso porque a expansão econômica de gigantes demográficos com expressiva industrialização – como China, Índia, Indonésia, Brasil e México – implica aumento da demanda energética e da queima de combustíveis fósseis. Temendo pressões pelo congelamento futuro das emissões, a China e a Índia não parecem dispostas a promover a ratificação nacional do Protocolo de Kyoto.

Boletim Mundo Ano 12 n° 1

BRASIL QUER FORTALECER A MULTIPOLARIDADE INTERNACIONAL

Em entrevista exclusiva a Mundo, o ministro das Relações Exteriores Celso Amorim defende reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas e esclarece as novas orientações da diplomacia nacional .
O Brasil defende uma reforma no Conselho de Segurança da ONU. Quais são as propostas específicas do Brasil para essa reforma?
Celso Amorim – O Brasil sustenta que a legitimidade e credibilidade do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) aumentarão se sua composição for mais representativa da realidade contemporânea, em particular no que se refere à participação de países em desenvolvimento.
Consideramos que a ampliação do número de membros do CSNU deve ocorrer tanto na categoria de membros permanentes, como na de não-permanentes, envolvendo – em ambas – maior presença de países em desenvolvimento. Pode-se falar da existência de uma certa convergência em torno da idéia de um Conselho de 24 a 26 membros, com cinco ou seis novos membros permanentes e um número comparável de não-permanentes.
Paralelamente à proposta de reforma no Conselho de Segurança da ONU, o Brasil faz campanha para se tornar membro permanente.
Alguns críticos dizem que a campanha é um gesto voltado apenas para o público interno, pois o tema não está na agenda de discussões da ONU. A Argentina manifestou-se contrária à pretensão brasileira. Como o sr. enxerga  essas críticas e posicionamentos?
Celso Amorim – A reforma do sistema de segurança coletiva das Nações Unidas vem recebendo atenção especial  do Secretário-Geral, Kofi Annan, que convocou um painel de notáveis para discutir o tema. Os membros do painel deverão apresentar um relatório antes do início da próxima Assembléia Geral das Nações Unidas. O assunto, que já se encontra na agenda formal da ONU há mais de dez anos, transformou-se em tema central para toda Chancelaria interessada em paz e segurança internacional.
A aspiração brasileira a um assento permanente baseia-se na convicção de que a presença de grandes países em desenvolvimento, com influência em suas respectivas regiões, contribui para que o Conselho de Segurança se torne um órgão mais legítimo e eficaz. A articulação de nossa postulação, no plano externo, encontra ambiente internacional propício, como comprova o número expressivo de apoios ao Brasil, entre os quais oito países sul-americanos, além de três dos cinco atuais membros permanentes do Conselho de Segurança.
Entre as novas iniciativas da política externa do Brasil destacou-se a criação do G-3. Qual é a vocação desse grupo?
Celso Amorim – O G-3 ou IBAS (Índia, Brasil e África do Sul), como também é conhecido, foi concebido para aprofundar as relações entre três grandes democracias de regiões em desenvolvimento, com influência regional e até mesmo mundial. Na Declaração de Brasília, de 6 de junho de 2003, os três países comprometeram- se a aprimorar a coordenação política sobre uma ampla gama de temas que incluem a reforma da ONU, paz e segurança internacional, temas sociais, questões ambientais e assuntos comerciais, entre outros.
Também se estabeleceu o objetivo de desenvolver a cooperação trilateral em esferas como transporte, desenvolvimento urbano e agricultura.
O Brasil desempenhou papel decisivo para articular, no quadro da OMC, o G-20. Mas os países ricos parecem mais dispostos a romper de uma vez a Rodada de Doha, que a reduzir substancialmente os subsídios agrícolas. O sistema multilateral de comércio está ameaçado pela intransigência dos EUA e da União Européia. O que fazer face a essa situação?
Celso Amorim – Os impasses da reunião de Cancún, em setembro de 2003, geraram algumas previsões sombrias sobre a Rodada de Doha. De nosso ponto de vista, embora a Conferência não tenha produzido resultados, ela foi palco de um processo diplomático a ser valorizado em si, com a emergência do G-20 e a preservação do nível de ambição da Rodada no seu tema central – que é o agrícola.
No final do ano, as presenças do Diretor-Geral da OMC, Supachai Panitchpakdi, e do Comissário da União Européia para Comércio, Pascal Lamy, na reunião do G-20 em Brasília contribuíram para consolidar o papel do grupo como interlocutor indispensável sobre agricultura. Em carta enviada a todos os membros da OMC, o Representante para Comércio norte-americano, Robert Zoellick, sugere que as discussões se concentrem em algumas questões básicas, especialmente no tema central do acesso a mercados em agricultura, bens e serviços.
O Governo brasileiro está comprometido com um sistema multilateral de comércio livre e aberto, baseado no princípio da reciprocidade. O sucesso da Rodada de Doha é fundamental para aperfeiçoar as regras que hoje regem as transações comerciais globais, garantindo a países como o Brasil maior participação no comércio internacional. Estamos empenhados na retomada das negociações da agenda de Doha.
Há uma mudança de ênfases e prioridades na política externa brasileira. No governo FHC, o foco era a América do Sul. No governo Lula, é o Sul (o antigo Terceiro Mundo) e a América do Sul aparece como uma dimensão desse conjunto maior. É uma retomada das linhas seguidas pela Política Externa Independente do início da década de 1960?
Celso Amorim – A pergunta não reflete com precisão a evolução da política externa brasileira. Se a América do Sul já constituía o foco de nossa diplomacia, ela passou a merecer uma atenção ainda maior, com a criação, no Itamaraty, de uma Subsecretaria dedicada exclusivamente a assuntos sul-americanos e uma multiplicação de contatos em nível Presidencial e Ministerial entre o Brasil e seus vizinhos.
Hoje vivemos na América do Sul uma interação característica de processos de integração avançados, como se observa na União Européia. A conclusão de um acordo CAN-Mercosul criou as bases para uma aproximação comercial efetiva, que poderá evoluir no sentido de uma “Comunidade Sul-Americana de Nações”, na expressão do Presidente Toledo, do Peru. Ao mesmo tempo, temos trabalhado, junto aos Governos da região, pela solução pacífica de crises, como a enfrentada pela Bolívia no segundo semestre de 2003.
A prioridade concedida à América do Sul, contudo, não é excludente. A magnitude e a diversidade dos interesses do Brasil orientam a nossa política de “redimensionar a geografia de nossas relações internacionais”, como afirmou o Presidente Lula, em recente viagem à Índia.
A independência da política externa do Governo Lula deriva de uma avaliação circunstanciada das possibilidades de inserção ativa e altiva do Brasil no cenário internacional com vistas à superação de nossas vulnerabilidades sociais. Como reconhecido pelo Presidente Chirac e outras lideranças mundiais, o Brasil tem logrado mudar a agenda internacional, fortalecendo a multi- polaridade.
A disposição anunciada pelos governos dos EUA e do Brasil é de ter, até o fim do ano, um acordo definitivo sobre a Alca. No Brasil, há um forte movimento por um plebiscito ou referendo popular sobre esse acordo. Mas o sr. posicionou-se contra essa proposta. Por que o futuro acordo não deve ser submetido a plebiscito ou referendo?
Celso Amorim – As negociações para a formação de uma área de livre comércio nas Américas vêm sendo conduzidas com extremo cuidado pelo Governo brasileiro.
Felizmente, o debate sobre o assunto chegou à população, que se tem manifestado, pelos canais pertinentes, a favor ou contra os diferentes aspectos da complexa negociação.
Entendemos que o caminho percorrido para a formação de uma posição brasileira atende a todos os requisitos do exercício democrático, com a presença de representantes dos mais diversos segmentos da sociedade nesse processo de reflexão e atuação. Existem formas de consulta e acompanhamento, sobretudo pelo Congresso Nacional, que estão sendo postas em prática e fortalecem a atuação do Executivo, conferindo grande legitimidade a todo o processo negociador. Ademais, é preciso assinalar que o acordo eventualmente alcançado e firmado deverá ser submetido à aprovação final do Legislativo, que representa, pelo voto depositado em seus integrantes, as aspirações e interesses da sociedade brasileira.

Boletim Mundo Ano 12 n° 1

POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA GIRA NA DIREÇÃO DO TERCEIRO MUNDO

A prioridade concedida à América do Sul (...) não é excludente. A magnitude e a diversidade do a nossa política de “redimensionar a geografia de nossas relações internacionais”, como afirmou viagem à Índia.

Celso Amorim foi ministro das Relações Exteriores (chanceler), pela primeira vez, no governo interino de Itamar Franco (1992-94). Na época, a ONU preparava as celebrações do seu cinqüentenário e abria discussões sobre a reforma do Conselho de Segurança (CS). Amorim aproveitou a ocasião para propor uma ampla reformulação do órgão e, paralelamente, lançou a candidatura brasileira a uma cadeira de membro permanente.
Aquele debate não deu em nada.
Washington favorecia uma reforma limitada à inclusão de Japão e Alemanha entre os membros permanentes, mas não se dispunha a abrir a caixa de Pandora da qual poderia sair um CS com Índia, Brasil e algum país africano. No fim, a hiper-potência optou por conservar a velha composição do órgão, com seus cinco membros permanentes (Estados Unidos, Rússia, Grã-Bretanha, França e China), que reflete os resultados da Segunda Guerra Mundial.
Os chanceler do governo FHC, Luiz Felipe Lampreia e Celso Lafer, continuaram a defender, protocolarmente, a reforma do CS mas congelaram a candidatura brasileira.
O retorno de Amorim à chancelaria, no governo Lula, assinalou a ressurreição do tema. O Brasil hasteou de novo a bandeira da ampliação do CS e atirou-se numa campanha estridente e entusiasmada por um lugar entre os membros  permanentes .
A candidatura brasileira é uma obsessão pessoal do chanceler. Mas, para além disso, tornou-se o eixo organizador da política externa do governo Lula. Em nome dessa prioridade estratégica, o Itamaraty assume os riscos da inconseqüência, pois a ONU não recolocou o tema da reforma do CS na sua agenda oficial, e da impertinência, pois a Argentina, um parceiro estratégico, rejeita explicitamente a pretensão brasileira.
A tradição principal da política externa brasileira, estabelecida pelo Barão do Rio Branco, organiza-se em torno da aliança estratégica com os Estados Unidos e tem por foco a esfera da América do Sul . Lampreia e Lafer, cada um a seu modo, trilharam caminhos inscritos nessa tradição. A parceria com a Argentina, a construção e ampliação do Mercosul e o diálogo prioritário com os Estados Unidos consumiam os esforços do Itamaraty. O resto era periférico, ainda que importante.
O governo Lula tem outra bússola externa. Essa bússola aponta para dois nortes.
O primeiro é a noção de Brasil-Potência, que tem fundas raízes no imaginário nacional mas ganhou contornos contemporâneos com a geopolítica militar e a política externa dos generais-presidentes Garrastazu Médici (1969-74) e Ernesto Geisel (1974-79). O segundo é a noção de Terceiro Mundo, elaborada nas décadas de 50 e 60, sob o influxo da descolonização afro-asiática e do Movimento dos Países Não-Alinhados.
O Brasil -Potência deve ocupar o seu lugar nas relações internacionais. Esse lugar pressupõe a “liderança natural” da América do Sul mas não se circunscreve ao subcontinente. A vocação histórica brasileira, o seu “destino”, é participar das grandes decisões globais.
O Terceiro Mundo, hoje, é o Sul. O conjunto heterogêneo dos países em desenvolvimento tem reivindicações comuns, especialmente nos terrenos do comércio e do combate à pobreza. O Brasil deve assumir uma posição de destaque no diálogo Norte- Sul, recuperando temas e discursos dos tempos da Política Externa Independente (PEI), nos governos Jânio Quadros (1961) e João Goulart (1961-64).
Quadros condecorou o líder cubano Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro do Sul e enviou seu vice, Goulart, em missão comercial à China. Na presidência, Goulart estabeleceu relações diplomáticas entre o Brasil e a União Soviética e o Itamaraty assumiu papel destacado no Grupo dos 77 (uma articulação do Terceiro Mundo) nas conferências das Nações Unidas sobre comércio e desenvolvimento (Unctad).
A ditadura militar rompeu com a PEI, rejeitando as suas ressonâncias “esquerdistas”.
Mas, ao contrário do que reza a lenda, o giro não resultou no alinhamento automático com Washington. Sob Médici, o Brasil recusou-se a assinar o Tratado de Não- Proliferação Nuclear (TNP). Sob Geisel, confrontou os Estados Unidos assinando o Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, que procurava dotar o país de capacidades estratégicas independentes.
A política externa de Lula atualiza essas linhas de força, adaptando-as ao pós- Guerra Fria e à globalização. As críticas, claras e constantes, à ocupação americana do Iraque refletem uma tentativa de combater a unipolaridade no cenário mundial. A formação do Grupo dos Três (G-3, ou IBAS: Índia, Brasil e África do Sul) destina-se a criar um ponto de referência político para o Sul, além de reforçar a campanha pela reforma do CS. O G-20, uma articulação de países em desenvolvimento nas negociações da Organização Mundial de Comércio (OMC), tem como inspiração óbvia o velho Grupo dos 77.
A diplomacia presidencial desempenha funções cruciais na política externa do governo Lula. O presidente visitou Cuba, onde confraternizou com Fidel Castro, percorreu a África Subsaariana, estreitando relações com a África do Sul, e aventurou-se pelos países árabes, numa turnê cujo ponto alto foi a recepção oferecida pelo ditador líbio Muammar Kadafi. As viagens emitiram sinais de autonomia, provocando alguma irritação em Washington. Mas, pragmaticamente, evitaram um choque frontal:
Lula não discursou na Praça da Revolução, em Havana, e rodeou a Palestina, para não se encontrar com Yasser Arafat Na moldura da política externa de Lula, o foco deslocou-se da América do Sul para o Terceiro Mundo. Apesar das juras oficiais, repetidas como um mantra, o Mercosul perdeu o lugar prioritário que ocupava no governo FHC.
É verdade que a bandeira da integração sul-americana tremula alta no mastro de Amorim e que Lula desdobrou-se em visitas aos países vizinhos. Também é verdade que o Brasil organizou um Grupo de Amigos da Venezuela, tentando estabilizar o governo de Hugo Chávez, enviou um emissário para mediar a crise institucional boliviana no final de 2003 e sugeriu hospedar negociações de paz entre o governo colombiano e a guerrilha das Farc. Mas o impulso rumo à integração multilateral da América do Sul – que alcançou o zênite na Conferência de Brasília promovida por FHC em 2000 – parece ter se esgotado.
Atrás das dificuldades na América do Sul está a América do Norte e, em particular, o dragão da Alca. De um lado, esse desafio divide o governo Lula. De outro, separa o Brasil da maior parte dos países sul-americanos.
No PT – mesmo no atual PT, manietado pelo Palácio do Planalto – a Alca é quase um tabu.
No Itamaraty reorganizado por Amorim, o segundo posto hierárquico, a Secretaria-Geral, é ocupado por Samuel Pinheiro Guimarães, um crítico feroz – embora, nos últimos tempos, silencioso – da Alca.
Por outro lado, os ministros da Fazenda, Antonio Palocci, da Agricultura, Roberto Rodrigues, e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Luiz Fernando Furlan, defendem mais ou menos abertamente a área hemisférica de livre comércio.
A estratégia do Brasil nas negociações da Alca reflete as divisões internas mas, sobretudo, o compromisso geopolítico assumido por Lula na sua visita a George Bush, em 2003. Na ocasião, o presidente assinou uma declaração que reafirma a disposição de concluir o tratado hemisférico até o final de 2004. Depois disso, os negociadores brasileiros procuraram bloquear a costura de um acordo ambicioso, abrangendo investimentos externos, intercâmbio de serviços, compras governamentais e patentes.
Mas Washington reagiu agressivamente, firmando acordos bilaterais e ameaçando isolar o Brasil e a Argentina.
Lula e Amorim apostam alto na nova política externa brasileira. Se ganharem, quebram a banca. Se perderem, o Brasil quebra a cara.

A TRADIÇÃO DE RIO BRANCO
José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, tornou-se o mais destacado diplomata brasileiro ao conduzir a defesa da posição nacional junto aos governos dos Estados Unidos e da Confederação Suíça nos episódios de arbitramento internacional das questões de limites no Prata e no Amazonas. Rio Branco tornou-se ministro do Exterior em 1902 e chefiou o Itamaraty por uma década, até a sua morte. Ele é conhecido, sobretudo, pela sua “obra de limites”, que resultou na consolidação das fronteiras nacionais. Entretanto, essa é apenas uma parte do seu legado: o rumo da política externa brasileira do século XX foi definido na “era Rio Branco”.
Rio Branco sempre foi monarquista. Essa sua convicção, porém, não refletia uma adesão ideológica a um sistema político particular, mas uma crença profunda na necessidade de preservar a qualquer custo a unidade nacional que ele encarava como ainda precária. Contudo, paradoxalmente, esse produto do Império – um homem ligado à cultura européia, que jamais abandonou o título recebido de D. Pedro II – cortou o cordão umbilical que ligava a política externa brasileira ao Velho Mundo e associou o Brasil à grande potência da América do Norte.
Um dos atos inaugurais da gestão de Rio Branco consistiu na elevação da legação em Washington à categoria de Embaixada, a primeira aberta pelo Estado brasileiro. Para o posto de embaixador nomeou Joaquim Nabuco, que abraçava os princípios do pan-americanismo de forma apaixonada. O Brasil apoiou tacitamente o Corolário Roosevelt, que provocava protestos entre as nações da América do Sul. No auge do intervencionismo americano no Caribe, Rio Branco renovou a proposta, dos primeiros tempos do Império, para uma aliança de defesa bilateral entre o Brasil e os Estados Unidos.
Uma aliança estratégica com a potência da América do Norte era, aos olhos de Rio Branco, uma necessidade inscrita na geopolítica mundial e na evolução das relações econômicas externas do Brasil. A Europa encaminhava-se para a guerra – e essa catástrofe que se desenhava no horizonte implicaria o ocaso das potências do Velho Mundo. O Brasil, gradualmente, desligava-se da órbita econômica britânica e ingressava na esfera de negócios dos Estados Unidos.
A Grã-Bretanha conservou até a década de 30 a posição de maior investidor no estrangeiro mas, bem antes disso, perdeu a supremacia no comércio internacional. Na América Latina, o poderio comercial dos Estados Unidos se manifestou rapidamente – e a antiga hegemonia britânica dissipou-se no alvorecer do século XX. Nas últimas décadas do século XIX, os Estados Unidos tornaram-se o maior mercado para as exportações brasileiras de café e borracha natural. Nas primeiras décadas do século XX, os Estados Unidos substituíram a Grã-Bretanha na condição de principal origem das importações brasileiras. A política externa de Rio Branco acompanhou essa transição.
Joaquim Nabuco, o embaixador em Washington, era um adepto entusiasmado do pan-americanismo. Rio Branco, não. O ministro do Exterior desenvolvia política muito mais sutil, pois a sua finalidade não era atrelar o Brasil à estratégia de Washington mas edificar os alicerces da inserção brasileira no novo cenário internacional. Sob essa perspectiva, a parceria estratégica com os Estados Unidos não era um fim, mas um meio para a projeção da influência brasileira na América do Sul.
Na visão global de Rio Branco, as Américas eram três: Estados Unidos, Hispano-América  e Brasil. Sob a dinâmica do funcionamento do pan-americanismo, sua meta estratégica consistia em consolidar a posição brasileira como elo de ligação entre os Estados Unidos e a Hispano-América. A tática requerida para esse fim implicava evitar o isolamento brasileiro e, mais que isso, aprofundar o papel nacional de pólo geopolítico sul-americano. Já naquela época, o Brasil postulava a condição de “liderança natural” da América do Sul.
A política sul-americana de Rio Branco concentrou seu foco principal sobre o Cone Sul. A orientação brasileira destinava-se a explorar a velha rivalidade entre Argentina e Chile para, sobre essa base, organizar a cooperação política ABC (Argentina, Brasil, Chile). No “triângulo ABC”, o Brasil manobrava entre os dois rivais, exercendo liderança regional e procurando afastá-los da política internacional amazônica. De certa forma, é possível interpretar a cooperação ABC como o embrião geopolítico do projeto do Mercosul.
A tradição de Rio Branco forneceu uma bússola que, apesar de algumas oscilações, orientou a política externa brasileira por todo o século XX. Essa bússola aponta, essencialmente, nas direções da parceria estratégica com os Estados Unidos e do exercício da liderança na América do Sul. Ela também define os limites da influência brasileira nas relações internacionais: tradicionalmente, o Brasil enxergou- se como potência de âmbito puramente regional.
Os desvios em relação à orientação tradicional foram de dois tipos. Os governos Gaspar Dutra (1946-50) e Castello Branco (1964-67) praticaram políticas de alinhamento quase incondicional a Washington. Os governos Jânio Quadros (1961) e João Goulart (1961-64) adotaram postura terceiro-mundista, gerando sérios atritos entre o Brasil e os Estados Unidos.
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