Valério Arcary
As vidas humanas começam, possivelmente, mais de uma vez. A minha própria foi atropelada naquela madrugada de 25 de abril de 1974. Eu tinha 17 anos.Em fevereiro de 1974, o general Antônio de Spínola publicou o livro Portugal e o futuro. Pela primeira vez, uma voz do mais alto comando das Forças Armadas, ex-Comandante-em-Chefe do Exército na Guiné-Bissau, desafiava o principal tabu da ditadura ao admitir publicamente que era impossível uma solução militar para o problema colonial. Spínola propunha que o regime tomasse a iniciativa política de um projeto de descolonização inspirado no modelo britânico do pós-guerra. Para surpresa de todos, o governo de Marcelo Caetano autorizou a publicação do livro: as divisões dentro do bloco de forças de sustentação do regime eram muito maiores do que pareciam.
O livro de Spínola era somente a ponta de um iceberg. Na oficialidade média do Exército e da Marinha já se articulava, clandestinamente, o Movimento das Forças Armadas, o MFA, também conhecido como o Movimento dos Capitães, que liderou o levante de 25 de abril. A repercussão do livro foi imensa, inclusive entre os jovens da minha geração. Naquela época, quem fracassasse nos exames vestibulares iria imediatamente para a tropa, assim que completasse o ensino médio.
Sendo brasileiro, filho de uma funcionária do Itamaraty que trabalhava em Lisboa desde 1966, meu destino estava poupado da guerra africana. Mas eu não poderia ficar indiferente à terrível sina dos que teriam quatro anos de serviço militar pela frente.
Fui assim impelido a participar do movimento estudantil pós-68, sob o regime ditatorial português.
Minha primeira passeata foi quando o ditador espanhol Francisco Franco condenou à morte Garmendia e Otaegui, dois militantes do grupo basco ETA. Em solidariedade, fizemos uma concentração, não mais do que cem secundaristas, na esquina das avenidas Alexandre Herculano e Liberdade, centro de Lisboa, e destruímos à pedrada a imensa vitrine de vidro da loja da Ibéria.
Foi glorioso desafiar as duas ditaduras com as mesmas pedras. Em minutos, fomos cercados pela polícia. Invariavelmente, alguns dos nossos eram presos, para serem soltos no dia seguinte.
Na segunda metade de 1973, os trabalhadores portugueses iniciaram um poderoso movimento de rejeição à ditadura. Multiplicaram-se as greves por aumentos de salários, algumas com vitórias fulminantes.
As classes proprietárias, até a véspera do 25 de abril entrincheiradas na defesa da ditadura, não estavam dispostas a ceder. A queda definitiva do regime aconteceria no próprio dia 25, quando dezenas de milhares de pessoas foram ao encontro dos soldados e oficiais do MFA, liderados por Otelo Saraiva de Carvalho, que, nas ruas, exigiam a renúncia de Marcelo Caetano. Em clima de festa, rodeavam os soldados e oficiais revoltosos.
Muitos, espontaneamente, levavam cravos vermelhos nas mãos. Atiravam as flores aos soldados e enfeitavam os seus antes temidos fuzis. Daí vem o nome: Revolução dos Cravos.
Cai o regime. Começa um período conturbado, de intensa agitação política, em que se sucedem vários governos provisórios sob a presidência de Spínola que, em 27 de julho, reconhecia a independência das colônias africanas. Uma parcela desesperada da extrema-direita tentou um golpe, em 28 de setembro de 1974, e foi derrotada.
Tentaria uma nova quartelada, em 11 de março de 1975. O fracasso estrepitoso precipitou uma radicalização do MFA e das classes trabalhadoras.
A radicalização revolucionária derrubou Spínola.
O IV Governo Provisório, comandado por Vasco Gonçalves, adotava um programa de nacionalização dos bancos e das principais empresas monopolistas, com o objetivo de impedir a fuga de divisas do país. Muitas empresas passaram a ser dirigidas por comissões de trabalhadores.
A aceleração da reforma agrária, sobretudo no Alentejo, levou à formação das Unidades Coletivas de Produção. Embriões de poder popular também germinavam nos bairros, nas escolas, e sobretudo, nos quartéis.
Nesse período foram definidas as condições da independência das colônias africanas. Entre março e julho, parte expressiva da burguesia portuguesa fugiu do país. Começava o “verão quente” de 1975.
O rumo da vida das famílias acompanhava a aceleração dos ritmos da revolução. Semanas depois do fracassado 11 de março, um português que tinha propriedades no Brasil e em Portugal, e que havia recorrido à minha mãe na Embaixada para conseguir a equivalência escolar dos documentos dos filhos, procurou a minha mãe, novamente, para lhe oferecer, por uma pechincha, a sua residência, um sobrado majestoso e vazio em Alvalade. Essa era a sua estratégia para certificar-se de que “os comunistas não a iriam ocupar”. A casa ficava na mesma rua onde morava Marcelo Caetano, antes de fugir. Foi assim que acabei indo morar em uma mansão de três salas, cinco quartos, jardim e garagem, um padrão de residência muito acima do que o salário do Itamaraty poderia alguma vez permitir.
O período da radicalização da revolução, entre a derrota do golpe de 11 de março e o 25 novembro de 1975, teve a intensidade de vários anos para quem o viveu. Milhões de pessoas estavam convencidas que o país estava em transição para algum tipo de socialismo.
Nesses meses, militei pela primeira vez ao lado de trabalhadores, e descobri a força moral da solidariedade, e a intensidade dos instintos de classe que mobilizam para a ação coletiva.
Uma pressão social dessa natureza não era fácil de resistir. Mas, talvez movido por um espírito naturalmente cético, eu não acreditava que aquela transição conduziria de fato ao socialismo. Mantive a dúvida, mesmo após ter participado, em cima de um tanque de guerra, no verão de 75, de uma passeata de mais de cinco mil soldados com o rosto coberto por lenços, como os bandidos dos filmes de cowboys, gritando “os soldados sempre, sempre ao lado do povo” e “viva a revolução socialista”.
No 25 de novembro, o sonho acabou. A ala da oficialidade conservadora das Forças Armadas, liderada pelo general Ramalho Eanes, deu um contra-golpe e assumiu o poder, destruindo a democracia direta nos quartéis. Todas as conquistas sociais ficaram então ameaçadas. Eanes foi eleito presidente da república, em junho de 1976. Na seqüência, em setembro, o líder social- democrata Mário Soares foi eleito primeiro ministro e o MFA foi dissolvido. A Revolução dos Cravos deixava as ruas e entrava nos livros de história.
Boletim Mundo Ano 12 n° 2
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