João Pedro Stedile
A organização da produção agrícola e a forma como se estrutura a utilização da terra são fundamentais em qualquer sociedade. A produção agrícola não pode ser equiparada a qualquer outro processo produtivo, pois ela assegura que a humanidade terá à sua disposição os alimentos que garantem a sobrevivência e a reprodução da espécie. Não se trata, portanto, da produção de uma mercadoria qualquer, mas de um bem absolutamente essencial.A forma como se organiza a propriedade da terra, que é um bem da natureza, é muito importante para determinar as relações de produção e sociais. A natureza democrática ou não de qualquer sociedade começa pelas regras de acesso da população aos bens da natureza, e, em especial, à terra e à água.
Nos primeiros quatro séculos de nossa história, os colonizadores, já integrados ao mercado capitalista internacional, impuseram ao nosso país o modelo agroexportador. Foram aqui organizadas unidades de produção de tipo plantation. Esse modelo entrou em crise com a independência, a fuga dos escravos e a redução do mercado externo. Em 1930, a incipiente burguesia industrial brasileira, liderada por Getúlio Vargas, assumiu o comando político do país, e adotou um modelo de industrialização dependente do capital externo.
Manteve-se, no país, um setor controlado pela oligarquia rural exportadora (café, cana, algodão, e mais tarde laranja e soja), mas a lógica de organização da produção se subordinou aos interesses da indústria.
Nesse quadro nasceu a agroindústria nacional, como um setor que passou a produzir insumos industriais para a agricultura, fundamentalmente as máquinas e ferramentas agrícolas, os adubos químicos e os agrotóxicos. E também surgiram as agroindústrias de alimentos, que passaram a processar as matérias-primas produzidas pelos agricultores. Nos anos 90, as vitórias eleitorais de Fernando Collor de Mello e depois de Fernando Henrique Cardoso consolidaram o modelo chamado neoliberal, que radicalizou a subordinação de nossa economia ao capital financeiro internacional. A própria indústria foi destronada de seu poder hegemônico, e deu lugar aos bancos.
Esse modelo chegou também à agricultura, subordinando-a a essa mesma lógica. O Estado, o chamado setor público agrícola, foi sendo deslocado da agricultura, para permitir que o “mercado” – isto é, as corporações capitalistas – ordenassem o processo de organização de nossa agricultura. Como resultado, as grandes empresas transnacionais (Bunge, Cargill, Monsanto, Dupont) passaram a controlar o comércio agrícola, em especial de grãos. Houve também uma desnacionalização das agroindústrias brasileiras. A maioria delas, ou pelo menos as maiores, foram compradas pelas transnacionais. Das grandes, só sobrou a Sadia.
Em alguns casos, como no setor de laticínios e derivados, todo mercado brasileiro é oligopolizado por três transnacionais: Nestlé, Parmalat e Danone. No item achocolatados, o monopólio da Nestlé é quase total.
O setor público agrícola foi sucateado. O Estado perdeu o seu poder de influência na fixação dos preços agrícolas, no controle dos estoques, no volume de crédito rural, na assistência técnica estatal, e na pesquisa agropecuária. Houve uma concentração e controle privado do setor de pesquisa, em especial das sementes.
As transnacionais usam as sementes transgênicas, das quais detêm a patente, e querem impor o seu uso à nossa agricultura, assim ampliando os seus lucros e controle.
As conseqüências econômicas e sociais desse processo foram um desastre. A produção aumentou, mas não de maneira uniforme. De uma tabela de mais de 30 produtos controlados pelo IBGE e CONAB, cresceram a área plantada e a produção apenas do milho, da soja, da cana e da laranja. Em todos os outros casos, a área e a produção estão estagnadas há dez anos.
Os que produzem para o mercado externo ganharam muito dinheiro. Aumentou a concentração da propriedade da terra. Segundo dados do governo, os proprietários que possuem fazendas superiores a 2 mil hectares, e que são apenas 26 mil, aumentaram seu patrimônio total de 120 milhões de hectares para 150 milhões de hectares. Do outro lado, 920 mil pequenas propriedades com menos de cem hectares desapareceram.
O nível de emprego na agricultura nunca caiu tanto: cerca de dois milhões de assalariados rurais perderam o trabalho. Assim, mantém-se o cruel mecanismo do êxodo rural.
Hoje, o Brasil vive numa encruzilhada. O povo rejeitou nas urnas o modelo neoliberal e elegeu Luís Inácio Lula da Silva à presidência. Parte das classes dominantes brasileiras, preocupadas com o agravamento da crise social, se juntaram ao governo Lula, para tentar reciclar o modelo, em vez de mudá-lo. Outra parte não quer mudar nada e exige que o novo governo retome o modelo neoliberal e acentue ainda mais o seu caráter dependente, defendendo a adesão do país à Alca e a subordinação à OMC e ao FMI.
Os movimentos sociais do campo e da cidade exigem a mudança do modelo econômico e a construção de um novo modelo agrícola. Em vez de uma produção voltada para a exportação, devemos reorganizar a agricultura priorizando o mercado interno. Há, no Brasil, em torno de 40 milhões de pessoas que passam fome e 60 milhões de subnutridos. É o maior mercado potencial do mundo. Mas, para viabilizar esse mercado interno, é necessário casar o novo modelo agrícola com uma política de distribuição de renda.
A partir dessas três premissas – produção de alimentos, mercado interno e distribuição de renda – será possível estimular um novo tipo de desenvolvimento industrial, baseado na descentralização das indústrias e das agroindústrias, levando-as para o interior e financiando sua instalação na forma de cooperativas. Os agricultores (fornecedores) e os operários de suas instalações seriam os proprietários e se beneficiariam de sua renda.
Precisamos de um modelo que reorganize a utilização das técnicas agrícolas, baseado no aproveitamento dos insumos naturais, que respeite o meio ambiente e produza alimentos mais saudáveis para toda a população.
Para isso, temos que recuperar o papel fundamental do Estado, como gestor de políticas públicas: um Estado que controle os estoques de alimentos, regule preços (para garantir uma renda mínima aos agricultores), administre crédito rural para áreas de investimento em que a sociedade tem interesse, garanta a assistência técnica gratuita aos pequenos e médios agricultores, assuma como interesse social a pesquisa agropecuária.
Trata-se, finalmente, de garantir uma política de soberania alimentar, para que todos os brasileiros se alimentem todos os dias, com fartura e qualidade. Esse novo modelo agrícola deve estar baseado não mais em grandes fazendas improdutivas, mas na agricultura de exploração familiar, e em fazendas médias, de alta produtividade, mas respeitosas do meio ambiente. Em uma palavra, será necessário democratizar a propriedade da terra, o que exige desapropriar as grandes propriedades improdutivas e distribuí-las aos pobres do campo. Essas diretrizes coincidem com os compromissos de campanha do presidente Lula, que estão descritas no documento “Por uma vida digna no campo”. Resta-nos acreditar que os compromissos eram verdadeiros.
Boletim Mundo Ano 11 n° 6
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