Nada disso aconteceu. Em conseqüência, ficou comprometido o prazo de 1º de janeiro de 2005, que a OMC estipulou como data-limite para a conclusão da Rodada do Desenvolvimento (iniciada em 2001 na cidade de Doha, no Catar), que deveria levar a novas regras – mais liberais e equilibradas – para o comércio internacional.
Mais do que isso: o fracasso de Cancun é um golpe profundo na própria credibilidade da OMC, abalada desde o colapso da chamada Rodada do Milênio, na conferência de Seattle (EUA), em 1999.
O impasse foi precipitado pela exigência da União Européia, com apoio do Japão, da Coréia do Sul e da Suíça, de incluir na agenda da rodada quatro temas propostos inicialmente em 1996, em uma reunião em Cingapura: regras sobre investimentos internacionais, políticas sobre concorrência, liberalização de compras governamentais e políticas de facilitação de comércio.
Em Cingapura, tinha sido decidido que esses temas só entrariam na agenda em caso de consenso. Cerca de 70 países da Ásia e África negaram-se a discutir agora esses temas, uma vez que representariam abertura maior de suas economias à concorrência internacional, sem garantias palpáveis de receber vantagens em outras áreas. A União Européia, rompendo o acordo prévio, recusou-se a retirar sua exigência, provocando o fracasso da conferência.
No fundo, os europeus usaram a divergência sobre os “temas de Cingapura” para evitar o confronto em torno da verdadeira questão central da Rodada do Desenvolvimento: os subsídios agrícolas dos países desenvolvidos, que consomem cerca de US$ 300 bilhões anuais e representam mais de seis vezes o dispêndio total dos países ricos em ajuda externa. Torpedeando a liberalização de seu mercado, a União Européia voltou a se insurgir contra a cartilha da economia política liberal de Adam Smith e David Ricardo, que ela não se cansa de pregar aos países em desenvolvimento.
A paralisia da rodada comercial global repercute sobre as negociações da Alca. Cedendo à exigência dos Estados Unidos, e assumindo que o cronograma da Rodada do Desenvolvimento seria cumprido, o Brasil havia concordado em remeter o tema do comércio agrícola para o âmbito da OMC . Agora, o atraso nas negociações globais deixa ao Brasil a triste perspectiva de decidir sobre a Alca sem dispor de qualquer garantia no setor agrícola, que ocupa lugar destacado nas exportações nacionais .
Há duas leituras para o fracasso de Cancun. A primeira é de que o atraso da Rodada do Desenvolvimento proporciona tempo para o reforço do G22, grupo de países em desenvolvimento liderado pelo Brasil e pela Índia, que se consolida como contraponto à coalizão entre União Européia e Estados Unidos. O G22 abrange importantes economias, como as da Argentina, do México e da África do Sul, e ganhou em Cancun a adesão da Turquia.
Os partidários dessa primeira tese enxergam outras hipotéticas vantagens para o Brasil. O freio de mão puxado na OMC atrasaria ainda mais o as negociações da Alca, favorecendo o eventual reforço do Mercosul.
E um Mercosul mais robusto poderia negociar em melhores condições – para o Brasil e seus parceiros – a integração à Alca.
Mas há uma segunda leitura –diametralmente oposta – dos desdobramentos da reunião de Cancun. Analistas liberais avaliam que a paralisia da OMC contribui apenas para a manutenção do protecionismo dos países desenvolvidos nos setores agrícola e de manufaturados tradicionais. Isso significa, por exemplo, o congelamento dos atuais níveis de subsídios à agricultura na Europa Ocidental e a permanência das barreiras que protegem a decadente indústria siderúrgica dos Estados Unidos. Em conseqüência, produtos agrícolas e semimanufaturados dos países em desenvolvimento permaneceriam, em grande medida, barrados nos mercados dos países ricos.
O Banco Mundial, em documento recente, sugere que uma ambiciosa redução de barreiras no comércio global seria capaz de adicionar, anualmente, algo entre US$ 290 bilhões e US$ 520 bilhões à renda mundial – e que bem mais de metade da renda adicionada fluiria para os países em desenvolvimento. Se essas estimativas forem confiáveis, a operação de boicote da União Européia pode custar muito caro para latino-americanos, africanos e asiáticos.
O governo brasileiro, de sua parte, embora criticasse “o verdadeiro adiamento da efetiva discussão dos assuntos” em Cancun, nas palavras do ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, revelou satisfação com o que acredita ser uma importante conquista de tempo. “O pior dos mundos é fazer um acordo desfavorável ao Brasil, porque aí são anos e anos sem chance de melhorar. Disso escapamos. É melhor a falta de acordo que um acordo ruim”, afirmou o ministro ao final do encontro.
A diplomacia comercial brasileira marcou tento significativo ao consolidar o G22.
Inegavelmente, o Brasil emergiu de Cancun como interlocutor de peso nas negociações globais da OMC. Além disso, no palco das Américas, conseguiu algum espaço de manobra aprofundando os entendimentos entre Lula e o presidente argentino, Néstor Kirchner, patrocinando um modesto acordo comercial entre o Peru e o Mercosul e abrindo discussões para um acordo similar com a Colômbia.
Ao mesmo tempo, o governo brasileiro parece rir à toa, inventando versões otimistas para tudo o que, na verdade, golpeia as ambições nacionais. Há pouco, a renúncia brasileira, forçada por Washington, a discutir o comércio agrícola no âmbito da Alca foi apresentada como sábia estratégia de transferência do tema para a esfera supostamente mais favorável da OMC. Agora, quando a União Européia sabota essa discussão na OMC, os ministros sorridentes gabamse de que teriam “ganhado tempo”.
Mas, atrás do riso da hiena, há angústia genuína. Entre uma e outra celebração vazia, o ministro Roberto Rodrigues reconheceu que o impasse de Cancun “coloca a OMC em xeque” e um integrante da delegação brasileira admitiu que, face ao impasse nas negociações globais, “vamos ter que nos dedicar mais a acordos bilaterais do que fizemos no passado, para compensar a inexistência de acordos multilaterais”.
Falar é gratuito, fazer são outros quinhentos. A União Européia e os Estados Unidos podem passar bem sem OMC, costurando acordos bilaterais, pois dominam o comércio global e estruturaram poderosos blocos regionais . Não é o caso do Brasil – nem dos demais integrantes do G22.
JOGO BRUTO: A GEOPOLÍTICA DO COMÉRCIO GLOBAL
O comércio mundial está estruturado em torno de três pólos nucleares: Europa Ocidental, América Anglo-Saxônica e Ásia. As correntes comerciais que circulam entre esses pólos perfazem praticamente a metade de todo o intercâmbio inter-regional. América Latina, Europa Oriental e CEI, Oriente Médio e África formam pólos periféricos, com correntes de comércio relativamente modestas e concentradas em apenas um ou dois dos pólos nucleares .A Europa Ocidental, o maior pólo comercial do mundo, mantém correntes significativas com todos os demais pólos. As parcerias dominantes são com a Ásia e a América Anglo-Saxônica, mas registra-se impressionante crescimento do intercâmbio com a Europa Oriental e a CEI. A expressão geopolítica desse fenômeno é o processo de incorporação dos países do leste europeu à União Européia, que está em marcha.
O peso da América Anglo-Saxônica no comércio global reflete as dimensões da economia dos Estados Unidos. A hiper-potência ocupa, individualmente, a primeira posição no comércio mundial e realiza imensos déficits comerciais. Fora dos pólos nucleares, apenas a América Latina mantém intercâmbio de grande porte com os Estados Unidos. O projeto da Alca, impulsionado por Washington, destina-se a ampliar essa corrente de comércio, hoje excessivamente concentrada na parceria com o México.
A Ásia, há apenas duas décadas, só possuía um titã comercial: o Japão, que hoje só fica atrás dos Estados Unidos e da Alemanha no ranking do comércio exterior. A expansão acelerada das economias da China e dos Tigres Asiáticos, bem como o peso do intercâmbio externo nesse processo de modernização industrial, revolucionou o panorama do comércio global. Hoje, a China é o sexto importador mundial e disputa com a França a condição de quarto exportador mundial.
Os pólos periféricos não mantêm nenhuma grande corrente de intercâmbio entre si. A América Latina divide desigualmente seu comércio entre os Estados Unidos e a União Européia. Os exportadores de petróleo do Oriente Médio dependem dos mercados asiáticos e europeus, pois os Estados Unidos se abastece preferencialmente na América Latina. Europa Oriental e CEI, de um lado, e África, de outro, são apêndices comerciais da União Européia. O intercâmbio Sul-Sul continua a representar uma miragem ou, no máximo, um projeto geopolítico em estágio embrionário.
O fosso entre os pólos nucleares e os periféricos torna-se ainda mais patente quando se analisa a participação no comércio total, não só no intercâmbio inter-regional.
A União Européia realiza correntes comerciais praticamente idênticas à soma das correntes da Ásia e América Anglo-Saxônica. Os três pólos nucleares, juntos, controlam cerca de 84% do comércio global.
Nas negociações comerciais multilaterais, os atores decisivos são os Estados Unidos e a União Européia, pois, ao contrário dos países asiáticos, que negociam individualmente, o bloco europeu fala com voz única. Em 1993, no fim da Rodada Uruguai do GATT (o antecessor da OMC), um acordo entre Washington e Bruxelas desbloqueou as negociações, postergando a liberalização agrícola e impondo aos países em desenvolvimento um desenlace amargo. Agora, Brasil e Índia costuram um grupo de países em desenvolvimento – o G22 – capaz de defender posições comuns diante dos gigantes do comércio global.
Na esfera comercial, a União Européia dispõe de mais poder até que os Estados Unidos.
Além de realizar parcela maior do comércio total, os europeus construíram um mercado comum que consome a maior parte das exportações dos países do bloco.
Nada menos que 67% do intercâmbio externo dos países da Europa Ocidental aparece sob a rubrica de comércio intra-regional, contra 48% para a Ásia e 39% para a América Anglo-Saxônica. Os pólos periféricos realizam pequena parcela do seu intercâmbio no interior da própria região: no caso da América Latina, por exemplo, apenas 17% e, no da África, sequer 8%.
Isso significa que, de certo modo, existe uma “Fortaleza Europa”, em condições de confrontar o sistema multilateral de comércio. Não é casual que, com uma arrogância inigualável, o representante comercial de Bruxelas tenha declarado que o Brasil e os países do G22, ao exigir uma drástica redução nos subsídios agrícolas, “entraram em órbita” e que deveriam “voltar à Terra” ou “ficar sem nada”.
A “Fortaleza Europa” pode viver bem sem a OMC, alimentando-se de seu mercado comum e articulando acordos bilaterais com Washington. Os Estados Unidos, com seu imenso mercado interno, também têm peso suficiente para viver de acordos bilaterais, com os europeus, e continentais, como a Alca. É por isso que um colapso do sistema multilateral de comércio atingiria, antes de tudo, os países em desenvolvimento. Principalmente aqueles que dependem de correntes multi- direcionais de comércio. Como o Brasil.
Boletim Mundo Ano 11 n° 6
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