Aparentemente, a União Européia (UE) encontra-se no seu zênite. Em maio, integra dez novos Estados-membros e passa a recobrir quase toda a Europa, desde o Atlântico até as fronteiras ocidentais da Comunidade de Estados Independentes (CEI). A Europa dos Quinze transfigura-se em Europa dos 25. Os novos membros são quatro países do antigo bloco soviético (Polônia, Hungria, República Tcheca e Eslováquia), uma república da antiga Iugoslávia (Eslovênia), os Estados Bálticos que pertenceram à União Soviética (Estônia, Letônia e Lituânia) e dois Estados insulares do Mediterrâneo (Malta e Chipre).
Três países do sudeste europeu – Romênia, Bulgária e Turquia – não foram admitidos dessa vez, mas figuram como candidatos oficiais à integração.As festas protocolares, contudo, não são capazes de ocultar os sentimentos de perplexidade e desorientação gerados pela nova rodada de expansão. No terreno da economia, a “nova” UE exibe uma extensa e populosa periferia que, na hipótese mais otimista, contrastará durante décadas com o núcleo próspero do bloco europeu. No terreno da geopolítica, a meta da política externa comum parece cada vez mais distante e a liderança tradicional, exercida por franceses e alemães, diluiu-se num complexo quebra-cabeças de interesses nacionais.
A Europa dos Quinze exibia uma descontinuidade econômica principal, que distinguia os países e regiões da Europa mediterrânea. Em comparação com o elevado PIB per capita e a poderosa base industrial dos demais, a porção mediterrânea do bloco apresentava-se pobre e dependente das atividades agropecuárias.
Grécia, Portugal, algumas regiões da Espanha e a Itália meridional funcionam como receptoras de ajuda estrutural do bloco europeu.
O alargamento da UE aprofunda as desigualdades econômicas internas, pois os países da Europa centro- oriental – com a solitária exceção da Eslovênia – apresentam níveis de renda significativamente inferiores aos da própria Europa mediterrânea. Além disso, o conjunto de países em processo de integração à União Européia é bastante heterogêneo, do ponto de vista do PIB per capita. No extremo inferior, onde se encontram a Polônia e os Estados Bálticos, os níveis de renda atingem, no máximo, um terço daqueles vigentes no núcleo rico do bloco .
A incorporação dos novos membros, em particular a populosa Polônia, tende a provocar uma crise no orçamento da UE, em virtude da pressão por um substancial aumento na ajuda estrutural e nos subsídios agrícolas. Além disso, os países da Europa centro- oriental podem se tornar uma fonte de fluxos migratórios destinados ao núcleo rico do bloco.
O panorama geopolítico é ainda mais complexo.
Todo o projeto de integração européia surgiu, na moldura da Guerra Fria, para romper a velha lógica da rivalidade franco-alemã. A aliança estratégica entre os dois países tornou-se a locomotiva do trem europeu – e isso não foi modificado pelo tardio ingresso britânico na antiga Comunidade Européia.
O Tratado de Maastricht, de 1991, que deflagrou a união monetária, serviu como instrumento para reafirmar a aliança franco-alemã, no momento da dissolução do bloco soviético e da reunificação da Alemanha.
O euro exprimia o projeto de uma “união cada vez mais profunda” e da substituição dos interesses nacionais conflitantes pelo interesse comum da Europa .
Mas a expansão da UE tende a diluir o poder de liderança de franceses e alemães, ampliando o espaço para divergências de orientação estratégica. Quando, há um ano, a França e a Alemanha desafiaram a decisão americana de invadir o Iraque, uma profunda fissura ameaçou partir o bloco europeu. Além da Grã-Bretanha, da Espanha e da Itália, Washington recebeu o apoio de poloneses, tchecos e húngaros. O secretário da Defesa de Bush, Donald Rumsfeld, colocou o dedo na ferida ao referir-se à divisão entre a “nova Europa” – ou seja, os países alinhados aos Estados Unidos – e a “velha Europa” impulsionada pelo “motor” franco-alemão.
A França, em especial, sempre enxergou o bloco europeu como meio para a projeção da sua influência, na Europa e no mundo. Hoje, quando a expansão ameaça essa estratégia, circulam em Paris idéias sobre a necessidade de um “núcleo duro” da UE, capaz de formular e aplicar uma política externa comum imune às vontades de Londres e às objeções dos países periféricos do bloco. Menos é mais, comenta-se à boca pequena na capital francesa.
O FRANCO COMO ILUSÃO COLETIVA
O Monoprix, popular loja de departamentos em Paris, exibe todos os seus preços em duas moedas: o euro e o franco. Não está sozinho. Na França, essa é a regra, seguida pela maior parte do comércio e até mesmo por serviços públicos. Para exprimir os preços em francos, todos usam a última taxa de câmbio franco/euro, de 1999.O problema é que a França não tem duas moedas, mas apenas uma – o euro. O franco deixou de existir, primeiro como unidade monetária e, depois, como meio físico de troca. Há tempo, as antigas cédulas e moedas denominadas em francos foram retiradas de circulação. Mas o país inteiro faz contas na linguagem morta do franco. A França está isolada, ao menos quanto a isso. Nos outros 11 países da Zona do Euro, quase nenhum estabelecimento exibe preços nas antigas moedas nacionais.
A moeda desempenhou papéis cruciais na formação das nações. No plano econômico, configurou os mercados nacionais, funcionando como instrumento para a supressão das barreiras comerciais internas e como “gramática” da linguagem dos preços. No plano simbólico, junto com a língua, o hino, a bandeira e o mapa, ajudou a construir as identidades nacionais. Na Inglaterra dos tempos vitorianos, uma época de liberalismo triunfante, dizia-se que o governo tinha apenas as funções de proteger as fronteiras nacionais, a ordem política interna e a “santidade da moeda”.
O experimento histórico da União Européia é fruto da crise do Estado Nação na Europa, precipitada pela Segunda Guerra Mundial. No fundo, o euro é um elemento dessa crise. Não é trivial que, anos depois da introdução do euro, os franceses insistam em pensar, calcular e falar na linguagem do franco.
Essa ilusão coletiva revela a força e a permanência da identidade nacional no país que, com a Revolução Francesa, inventou o Estado- Nação contemporâneo.
Boletim Mundo Ano 12 n° 2
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