Newton Carlos
Ama rebelião de escravos, deflagrada em 1791, derrotou forte contingente do Exército francês e, 13 anos depois, criou a primeira república negra do mundo – o Haiti, primeiro país no continente a abolir a escravidão. Antes de Simon Bolívar, surgiram no Haiti os “jacobinos negros” (versão caribenha dos “radicais” da Revolução Francesa), liderados por Toussaint L’Ouverture, vencedores das tropas de Napoleão Bonaparte.Por que a metrópole tinha olho tão grande no Haiti, onde Napoleão entregou o comando ao marido da sua irmã? Muito açúcar, que produzia mais riquezas do que as Treze Colônias inglesas juntas.
Eram 600 engenhos. Chegaram a cobrir a metade do caixa de Luís XIV. A independência do Haiti foi conseguida por meio de uma forte mas efêmera aliança entre negros e mulatos. Mas um sistema de castas logo surgiu, favorecendo a mulatos mais cultos e com maior poder aquisitivo. Constituiu-se uma oligarquia que dominou o país até 1950, em conivência com interesses estrangeiros. “Ajuda a bancos que queriam fazer negócios sem riscos”, disse o historiador Germán Arciniegas em seu clássico Entre a liberdade e o medo. Foram fuzileiros dos Estados Unidos que treinaram a Guarda Haitiana, embrião do Exército do Haiti. “Um Exército predatório e corrupto” escreveu o jornal Washington Post.
C. R. L. James, intelectual antilhano, de Trinidad, chamou de “um dos grandes épicos de lutas e conquistas revolucionárias” o fato de escravos terem sido capazes de “organizar-se como um povo e derrotar a nação mais poderosa da época”, a França napoleônica.
Mas, exatos duzentos anos depois, o Haiti é devastado por violência política, aids e pobreza.
O pano de fundo histórico é formado pelas velhas pilhagens. A França, com apoio dos Estados Unidos, cobrou 18 bilhões de dólares, a preços de hoje, como compensação pela perda das plantações. No final do século XIX, 80% da renda nacional do Haiti eram para pagar dívidas e juros. Os Estados Unidos ocuparam o Haiti de 1915 a 1934. Treze golpes de Estado desde a independência. Negros, em busca incessante de uma redenção anunciada e nunca consumada, abriram caminho para que um demagogo, François Duvalier (o “Papa Doc”), se elegesse em 1957 e acabasse implantando uma ditadura brutal, com seus “tontons macoutes”, os bichos papões assassinos, e exploração política do vudu, a magia negra. “Deve haver algo pior em alguma parte, mas não sei onde”, comentou um diplomata europeu. A ditadura passou de pai a filho, Jean-Claude Duvalier (o “Baby Doc”), e só apodreceu em 1986.
Com a marca antiga de nação mais pobre do continente, sem dispor sequer de uma “pobreza digna”, tantas vezes prometida, o Haiti comemorou os duzentos anos de existência num clima historicamente familiar. Vale- tudo político, conflitos e sangue nas ruas e o povo, sempre enganado, sem saber que rumo tomar.
A derrubada do ex-presidente Jean Bertrand Aristide, consumada pela intervenção militar franco-americana, representou uma tragédia nacional e o fim de mais uma temporada de fantasias de redenção. “Para as massas haitianas, Aristide representa a volta de sonhos não realizados, de liberdade e dignidade para todos”, disse Lainecc Hurbon, teólogo haitiano, quando Aristide foi eleito pela primeira vez, em 1990.
Na reta final, agora em fevereiro, milícias armadas e não o povo pobre, sustentavam Aristide, que só se deslocava de helicóptero. Buscou refúgio com sua família – casou-se com uma haitiana branca de origem americana – numa residência luxuosa cercada de guarda-costas contratados nos Estados Unidos. A oposição reunida na Convergência Democrática estava repleta de ex-aliados e uma das maiores gangues armadas, viradas contra o palácio, recebeu seus fuzis do próprio palácio. Os ministros caíram fora antes da queda de Aristide, mostrando a classe de gente que cercava o presidente.
Afinal, tombou o próprio Aristide. “Há de brotar de novo, as raízes foram muito bem plantadas”, disse o presidente deposto em sua primeira mensagem no exílio.
A ilusão de uma segunda volta por cima? Com a ambição de passar à história como pai de uma “nova independência”, Aristide no primeiro mandato só ficou em palácio sete meses. Os militares o expulsaram. Reinstalouse em 1994, por meio de intervenção militar dos Estados Unidos, que pretendiam “estabilizar” o Haiti e conter o “boat people”, os haitianos que se jogam no mar em direção às praias americanas. Fala-se nisso de novo.
Aristide é um dos personagens mais fascinantes da história do Haiti. Ordenado padre em 1962, com seus sermões inflamados contra um regime brutal e a miséria do povo, mobilizou contra ele a própria cúpula da Igreja, que não estava disposta a lançar-se numa política de confronto. Conhecedor de línguas mortas e vivas (latim, grego, inglês, espanhol, italiano e o francês herdado da ex-metrópole), foi despachado para o Canadá onde completou seus estudos de psicologia.
Voltou em 1985 e se instalou na paróquia de uma área miserável da capital haitiana, disposto a radicalizar a “mensagem de Deus”.
Tornou-se porta-voz das comunidades da teologia da libertação. O creóle, a língua nativa, foi empregado com habilidade em ataques ao “imperialismo americano”.
Segundo o Aristide daquele tempo, “mais perigoso do que a Aids”. A ditadura afinal esgotou-se em 1986, mas ficou um “duvalierismo” sem os Duvalier. O jovem padre escapou de tentativas de assassinato, ao mesmo tempo em que enfrentava a ira do Vaticano. Era acusado de “incitar ódios, violência e luta de classes”. Foi expulso da ordem dos salesianos. Manifestações nas ruas impediram novo despacho para fora do país.
Aristide perdeu sua paróquia e sua irmandade.
Mas disparou em popularidade e acabou se elegendo presidente em 1990, à frente de uma “lavalás”, uma avalanche, nome de seu movimento. Aos poucos, transfigurou-se num poderoso cacique político, dissolveu o Exército, criou para uso próprio uma polícia nacional, armou milícias, reelegeu-se de modo fraudulento em 2000 e agora caiu.
O ex-padre foi esperança de mudanças democráticas, depois de longa ditadura portadora de misérias.
Não deu curso, no entanto, ao fortalecimento das instituições e congelou a imagem de um presidente onipotente e messiânico. Daí ao recurso às velhas receitas de clientelismo, corrupção e violência foi um pulo.
Os primeiros a se referirem a ele como um “grande ditador” eram encontrados entre os idealistas que conviveram com ele na teologia da libertação, participaram das suas lutas e o ajudaram a subir.
Sede de poder absoluto e incapacidade de negociar honestamente. Mesmo as promessas de uma “pobreza digna” não se sustentaram. Logo se incorporaram aos denunciantes a sociedade civil e os estudantes. O colapso tornou-se inevitável. Embora com manchas na reeleição de 2000, Aristide foi produto da democracia pela primeira vez exercida no Haiti em 1990. A degradação do ex-padre da teologia da libertação representou triste inversão na democracia num país do continente.
Aristide consagrou-se e degradou-se nela.
Boletim Mundo Ano 12 n° 2
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