Essas crises se distinguem em quase tudo. Na Venezuela, a polarização política entre o governo de Hugo Chávez e a oposição começa a degradar-se em violência e não existe saída institucional à vista. Na vizinha Colômbia, a “solução militar” do governo de Álvaro Uribe para a guerrilha das Farc aprofunda a espiral da guerra interna. Na Bolívia, a ruptura das promessas que acompanharam a formação do governo interino de Carlos Mesa pode provocar um novo levante popular.
As distintas crises nacionais têm um traço comum: as três, de um modo ou de outro, relacionam-se com as políticas de Washington para a América Latina. Essas políticas, elaboradas pelos neoconservadores republicanos, retomam e atualizam os dogmas dos tempos do Big Stick, procurando alinhar os Estados da região às estratégias e aos interesses definidos na Casa Branca
A VENEZUELA COMO ALVO
“Todas as assinaturas devem ser respeitadas”, declarou um representante oficial do Departamento de Estado dos Estados Unidos. Do que ele falava? Das assinaturas coletadas pela oposição venezuelana pedindo a convocação de um referendo popular para decidir sobre a interrupção do mandato do presidente Hugo Chávez. Essas assinaturas percorrem um tortuoso caminho de escrutínio judicial, pois o governo colocou boa parte delas sob suspeição.Qual seria a reação de Washington se qualquer governo estrangeiro, em 2000, ousasse pronunciar-se pela recontagem geral dos votos da contestada eleição que conduziu George Bush à Casa Branca? Chávez, no seu feitio, retrucou irado dizendo que os Estados Unidos interferem em assuntos internos venezuelanos, financiam diretamente a oposição e articulam um golpe de Estado.
No calor da hora, ameaçou cortar as exportações de petróleo para os Estados Unidos, que representam cerca de 13% das importações petrolíferas americanas. Depois, baixou um pouco o tom, certamente avaliando a forte dependência de seu país das divisas obtidas com as vendas de petróleo.
A “revolução bolivariana” iniciada por Chávez em 1999 surtiu efeitos econômicos desastrosos. Sob as suas políticas nacionalistas e populistas, o PIB do país retrocedeu nada menos que 18%, nos últimos quatro anos. De modo geral, a pobreza aumentou. Mas o presidente retém taxas de aprovação entre 30% e 40%, concentradas na população mais pobre. A desmoralização dos partidos de oposição, elitistas e corruptos, é parte da explicação. Outra parte encontra-se nos programas sociais chavistas, impulsionados pelas rendas do petróleo e direcionados para as massas de subempregados e desempregados de Caracas e alguns outros importantes centros urbanos.
A polarização política na Venezuela desenvolve-se em terreno perigoso. De um lado, os partidos tradicionais virtualmente desmancharam-se antes da chegada de Chávez ao poder e hoje atuam sob o guarda- chuva da principal confederação empresarial, que tem o apoio de alguns importantes sindicatos. De outro, o Movimento Bolivariano do presidente não constituiu verdadeiros partidos políticos, apoiando-se na oficialidade média do Exército e em movimentos populares ligados ao aparato estatal. É a receita para a violência.
Tudo se complica com a obsessão americana de derrubar o governo venezuelano.
Entre os responsáveis pela política externa de Bush, fala-se num “eixo do mal” latino-americano organizado por Chávez e Fidel Castro. É bobagem, mas se sustenta na retórica anti-americanista do venezuelano.
Em abril de 2002, Washington apressou- se em apoiar um golpe de Estado contra Chávez, que acabou fracassando.
Entre os assessores mais extremistas de Bush, circulam idéias sobre uma intervenção militar direta na Venezuela. Mas os reveses no Iraque e a perda de credibilidade mais geral da Doutrina Bush não estimulam aventuras. Agora, a aposta é no caos institucional, que poderia abrir caminho para outra aventura golpista.
GUERRA SEM FIM NA COLÔMBIA
Álvaro Uribe gaba-se do aparente sucesso de sua estratégia contra a guerrilha esquerdista das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), os grupos paramilitares de extrema-direita e os barões das drogas. Foram mais de 700 prisões nesse ano e, em 2003, os assassinatos políticos recuaram 22% e os seqüestros, 27%. Parece excelente, quando se ignoram os números brutos: apenas em janeiro e fevereiro, as vítimas fatais da violência política foram quase 3.300.Uribe elegeu-se em 2002 criticando a estratégia de negociações com os grupos guerrilheiros conduzida por seu antecessor.
Recebeu os votos de um eleitorado farto da violência política protagonizada tanto pelas guerrilhas de esquerda quanto pelos “esquadrões da morte” da direita. Contou, desde o início, com o apoio explícito de Washington: no quadro da “guerra ao terror”, Bush radicalizava o Plano Colômbia, de ajuda financeira e militar, que começou direcionado contra o narcotráfico mas transformou-se em instrumento de combate às guerrilhas de esquerda.
O presidente colombiano não reconhece nenhum conteúdo político na ação das Farc. Qualifica os guerrilheiros, simplesmente, como “terroristas”. Nessa linha, fecha o caminho a qualquer saída diferente da rendição dos guerrilheiros. Não é casual que, há menos de um ano, tenha ignorado solenemente a oferta brasileira de mediação para um processo de negociações e pacificação interna. A Colômbia de Uribe tornou- se um país dependente da ajuda dos Estados Unidos. E, apesar do formidável aparato bélico e policial mobilizado contra as Farc, a vitória militar não parece estar no horizonte.
OUTRO LEVANTE POPULAR NA BOLÍVIA?
Uma nova política para o gás, eleições presidenciais e uma assembléia constituinte até meados de 2004. Foi isso que prometeu o então vice-presidente Carlos Mesa, ao assumir a presidência da Bolívia, após o levante popular que derrubou o governo de Gonzalo Sánchez de Lozada, um magnata da mineração com fortes vínculos em Washington, em outubro do ano passado.Sánchez de Lozada durou apenas um ano na presidência. A gota d’água que provocou o levante foi o plano de exportação do gás natural para a Califórnia, através de portos chilenos. Atrás do plano do gás e da rivalidade nacional com o Chile, encontram-se os motivos profundos da rebelião: a miséria secular, a recessão provocada pela política econômica ortodoxa e a “guerra às drogas” conduzida em associação com Washington, que destrói as plantações de coca e o modo de vida tradicional dos ameríndios.
A população pobre de El Alto, a imensa favela no topo da montanha, acima de La Paz, desceu rumo à capital e ganhou o apoio da Central Operária Boliviana (COB), à frente dos trabalhadores das minas.
A eles juntaram-se Felipe Quispe, líder dos camponeses ameríndios e Evo Morales, o segundo colocado nas últimas eleições presidenciais e líder dos cocaleros, os aymarás que há séculos cultivam a coca.
O confronto nas ruas perdurou por dias e deixou no mínimo 59 mortos, até a renúncia e fuga do presidente. O representante enviado por Lula, Marco Aurélio Garcia, participou das frenéticas negociações que permitiram a Mesa assumir a presidência.
Mas, tão logo as ruas de La Paz retornaram à calma, Mesa “esqueceu” suas promessas. Agora, ele pretende completar o mandato de Sánchez de Losada ou, no máximo, antecipar as eleições para 2005.
Ele confia na divisão das lideranças populares, pois Evo Morales parece disposto a aguardar que um dia as urnas lhe entreguem o poder. É um jogo de alto risco: a COB e Felipe Quispe ameaçam convocar um novo levante para completar o serviço iniciado em outubro.
KIRCHNER E LULA DIANTE DO FMI
Não é um problema de ideologia, mas de bilhões de dólares”, disse a senadora Cristina Fernández de Kirchner, primeira- dama argentina, ao anunciar que seu marido, o presidente Nestor Kirchner, havia finalmente concluído um acordo, no dia 10 de março, com o Fundo Monetário Internacional (FMI), após uma conversa telefônica de meia hora com Anne Krueger, diretora- gerente interina da instituição.O anúncio do acordo provocou alívio nos meios financeiros internacionais, que temiam um calote bilionário e histórico.
Mas não resolveu a grave situação econômica da Argentina.
E, de quebra, gerou muitas indagações sobre a óbvia diferença nas relações que os governos Kirchner e Lula mantêm com o FMI. Enquanto os argentinos lutam, esperneiam e impõem condições, os brasileiros aceitam passivamente as normas do banco.
Como explicar tudo isso?
Em dezembro de 2001, a Argentina decretou moratória da sua dívida com os bancos privados, no valor total de 88 bilhões de dólares. Antes disso, a economia do país tinha sido completamente despedaçada. A crise econômica e social incendiou Buenos Aires, levou dezenas de milhares de desempregados e aposentados às ruas da capital e provocou a renúncia do então presidente Fernando De La Rúa.
Kirchner, eleito em maio de 2003, num quadro de profunda crise política, encarava a difícil tarefa de reconstruir a economia de seu país. No que se refere à dívida externa, adotou a política de honrar os compromissos devidos às instituições financeiras multilaterais, como o FMI, mas manteve a moratória para com os bancos privados.
No dia 9 de março, venceu o prazo para o pagamento da parcela de 3,1 bilhões de dólares, de um total de 21,6 bilhões de dólares devidos ao FMI. Fazendo coro com os bancos credores e o G-7 (Grupo das sete maiores economias do mundo), Anne Krueger tentou impor a Kirchner o encerramento imediato da moratória. Essa era a sua condição para renovar um acordo assinado em setembro de 2003, que permitiu à Argentina re-escalonar a dívida com o FMI.
Foi então que Kirchner reagiu. Disse que seu país não tem como sair da moratória, alegou que 20 dos 36 milhões de argentinos vivem hoje abaixo da linha de pobreza e assegurou que não cortaria gastos sociais para pagar banqueiros. Se o FMI mantivesse essa condição, a Argentina não pagaria os 3,1 bilhões de dólares. No apagar das luzes, foi concluído um acordo: Krueger retirou as exigências, mas Kirchner teve que aceitar a formação de um comitê de bancos que vai negociar a dívida com os credores privados.
Por que Kirchner aceitou o confronto e quase promoveu a ruptura? Ao contrário de Lula, o presidente argentino não tem um passado “esquerdista”. A sua origem política é o Justicialismo, um movimento cujas raízes encontram-se no populismo de direita de Juan Domingo Perón. Assim, há uma curiosa inversão de expectativas: Lula, líder do PT, aceita docilmente a política do FMI, ao passo que o peronista Kirchner ameaça com a ruptura.
Uma parte da explicação já foi dada pela mulher de Kirchner, a senadora Cristina: não se trata de ideologia, mas de dólares. A Argentina, de fato, não tem como pagar, ainda se assim desejasse. Mesmo os 3,1 bilhões enviados ao FMI representam cerca de 25% de suas reservas internacionais.
A economia argentina foi virtualmente destruída pelo colapso do sistema de câmbio fixo peso/dólar. Entre 1998 e 2002, o PIB argentino retrocedeu, em termos reais, mais de 18%. Só em 2001, o pior ano, a queda atingiu quase 11%: algo semelhante ao impacto de uma guerra .
O desastre econômico levou de turbilhão o sistema partidário, transformando em pó a União Cívica Radical (UCR) do ex-presidente De La Rúa e despedaçando o Justicialismo. Um eventual fracasso de Kirchner abriria as portas para uma erupção social incontrolável.
Sob a moratória, o governo Kirchner assistiu a uma expansão de nada menos que 13,7% do PIB em 2003. É verdade que esse crescimento partiu de uma base muito baixa mas, mesmo assim, o PIB retornou a um nível superior ao de 2001. É esse desempenho da economia que sustenta Kirchner. As elites econômicas e políticas não estão dispostas a exigir o fim da moratória, arriscando interromper a expansão. Elas têm mais medo do vulcão social que do FMI.
O panorama argentino está muito distante do brasileiro, cuja economia não foi destruída, ainda que tenha atravessado anos severos de estagnação. O governo Lula não nasceu do vácuo político, em meio à desestabilização social, como aconteceu com Kirchner. Comportando-se como sucessor de Fernando Henrique Cardoso, Lula resolveu adotar uma linha de condução da política econômica baseada na estabilidade monetária e na atração de investimentos externos.
Essa linha impõe, necessariamente, cultivar a credibilidade junto ao FMI e aos bancos credores, mesmo que isso signifique cortar os investimentos sociais.
Lula leva uma vantagem sobre FHC, quando se trata de aplicar essa política econômica: agora, o PT não está na oposição. Mas isso já é uma outra história.
Boletim Mundo Ano 12 n° 2
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