quarta-feira, 27 de julho de 2011

30 ANOS DEPOIS, CHILE AINDA VIVE À SOMBRA DE PINOCHET

As questões mudaram na volta a Santiago, dezessete anos depois da última viagem. Em 1986, ainda na “era Pinochet”, esse jornalista, com a tarefa de cobrir a viagem do Papa ao Chile, perguntava a si mesmo se seria preso (estava numa lista negra da ditadura chilena) ou se poderia fazer o seu trabalho. Agora, chegava como convidado e logo passou a compartilhar de uma expectativa geral: com o “destape”, ou seja, a volta das liberdades públicas, a passagem dos 30 anos do golpe contra Salvador Allende desandaria em manifestações violentas?
Allende, primeiro socialista eleito presidente na América do Sul, simbolizou a utopia da “revolução pelo voto”. Governou, num mar revolto de crises, entre 1970 e 1973. O sangrento golpe militar de 11 de setembro custou-lhe a vida e inaugurou a ditadura de Augusto Pinochet, que durou dezesseis anos. Nos quatorze anos de “redemocratização pactuada”, produto de acordo de cavalheiros entre militares e políticos, o 11 de setembro sempre foi uma data de pequenas medições de força entre a esquerda e a direita, sem maiores conseqüências institucionais. Agora era diferente. O governo liberara as manifestações e a panela ardia no fogo, destampada. A Universidade do Chile programava atos de reparações a estudantes e professores vítimas da ditadura.
Um seminário tiraria dos porões as misérias feitas com jornais e jornalistas. Os sindicatos programavam reuniões de leituras de nomes de trabalhadores assassinados. As televisões se inundavam de documentários com imagens até agora trancadas a sete chaves, como as do ataque militar ao palácio presidencial de La Moneda e do estádio nacional transformado em prisão política. A voz da cantora Violenta Parra voltara a dar “gracias a la vida”.
Romaria ao túmulo de Allende, reabertura da porta lateral da sede do governo, por onde passou o corpo de Allende no dia fatídico, etc.
Haverá violência? As opiniões se dividiam. Sempre existem os cabeças-quentes e a direita chilena, embora aparentemente recolhida, continua forte e ativa. No fim, o que aconteceu não teve conteúdo político de maior importância. Os personagens centrais cumpriram o seu papel, de acordo com o figurino, com algumas surpresas, como a visibilidade de Augusto Pinochet. E uma nova pergunta: que conseqüências a passagem dos 30 anos do golpe terá na vida do Chile? O pacto da “redemocratização” continua valendo. Embora tenham se recolhido numa cerimônia opaca dentro da Escola Militar, as forças armadas chilenas permanecem sendo um Estado dentro do Estado.
Já se esgotaram dois mandatos presidenciais de seis anos, um terceiro está em curso e, do ponto de vista institucional, o Chile não alterou em nada o legado de Pinochet. O “padre benemérito de la pátria”, título ainda vigente conferido em 1998 a Pinochet pelo Exército chileno, quando ele deixou o comando da arma e se tornou senador vitalício, controlou pessoalmente a redação de uma “constituição” que enquadrasse o Chile redemocratizado.
A instituição de parlamentares biônicos, inclusive com representação militar, serviu para impedir a alteração da carta herdada da ditadura. O Chile da “concertación por la democracia” é regido constitucionalmente pelas regras estabelecidas na “era Pinochet”. O que isso significa? Pinochet deixou a presidência em 1989 mas, por força da “constituição” redigida pelos seus bacharéis, sob supervisão dele próprio, o presidente escolhido pelo povo não tinha como remove-lo do comando do Exército, no qual ficou até 1998. Na prática, uma dualidade de poderes.
A democracia chilena é a única na qual o presidente não é o comandante-em-chefe das forças armadas. Os ex-presidentes Patricio Aylwin (1990-94) e Eduardo Frei (1994-2000) não puderam, e o atual presidente Ricardo Lagos não pode trocar os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica. Os chefes militares têm mandatos e, quando concluídos, o presidente é obrigado a escolher substitutos entre os cinco oficiais-generais mais antigos. É quase impossível promover uma renovação militar, como a que Néstor Kirchner fez na Argentina com uma só tacada.
Como “garantidoras da ordem constitucional” as forças armadas do Chile podem convocar o Conselho de Segurança Nacional sempre que acharem que algo está errado. Com os votos das três armas e dos “carabineros”, os militares têm maioria no conselho. As promoções são decididas internamente, pelo alto comando de cada arma.
O presidente não apita. Para que não falte dinheiro, Pinochet deixou estabelecido que os cofres militares recebem, obrigatoriamente, 10% do valor das exportações de cobre.
Um registro para a história
Ano 1970, proximidade da decisão do Congresso chileno sobre se Allende, majoritário nas eleições presidenciais, mas sem maioria absoluta, seria ou não o escolhido. “En este país no pasa nada”, resmungava num bar, ao meu lado, o mais bem dotado repórter político do Chile na época, Hernandez Parker. “Doutor, telefone para o senhor”, avisou o garçom.
Naquele canto de mundo, os chilenos só não se sentiam imunes a terremotos. Mas Hernandez voltou à mesa de cara lívida. “Atiraram no general Schneider”, balbuciou incrédulo. Era o ato inicial da montagem de um primeiro golpe contra Allende. Seria colocado fora de combate um militar legalista no comando do Exército. A intenção, parece, era seqüestrá-lo e retirá-lo de cena até a decisão do Congresso, naquele momento ainda incerta, mas as armas fornecidas pela CIA caíram em mãos inexperientes.
A comoção ajudou Allende, o enterro de Schneider transformou-se em manifestação de solidariedade latino-americana ao socialista e o Congresso aclamou-o presidente, num belo espetáculo.
Os golpistas retomariam o fôlego ao longo dos anos, insuflados e ajudados pelo Comitê 40, no qual sentavam uns poucos sob a chefia de Henry Kissinger e Richard Nixon. Reencontrei Hernandez uma semana depois do “el once”, o 11 de setembro de 1973.
O Chile foi fechado, jornalistas se aglomeraram na parte andina da Argentina à espera de autorização de entrada, um tenso  marca-passos de sete dias.
Um repórter respeitado, estrela de uma revista democrata-cristã, a Ercillia, perambulava por necrotérios à procura de um filho quando afinal cheguei a Santiago. Acompanhei-o. Pular de um necrotério a outro era a atividade mais intensa numa cidade coberta por um manto de morte. Os corpos já se expunham a identificações. No enterro do poeta Pablo Neruda, a primeira manifestação pública contra o golpe,  predominavam feições duras de velhos militantes do Partido Comunista, e não fogosos socialistas que tanto trabalho deram a Allende. Onde estariam os brasileiros? Só consegui encontrar a mulher de um deles. Foi-se “Perro” Olivares, jornalista e allendista de primeira hora, acima de tudo um divertido gozador.
O pessoal da Democracia Cristã (DC), do ex-presidente Frei (1964-70), mais desconversava do que conversava, sem conseguir esconder um  certo  alivio. Em breve, imaginavam, os militares convocariam eleições e eles voltariam ao poder. Lembro que o diretor de Ercillia, Emilio Fillipi, irritado com minhas náuseas, explodiu num inacreditável “esto es uma ditablanda, non uma dictadura”. Não foi difícil descobrir: a DC, ou uma parte dela, a dos adeptos de Frei, era linha auxiliar do golpe. Anos depois, Frei morreu amargurado com seu “erro de cálculo”.

Boletim Mundo Ano 11 n°6

Nenhum comentário:

Postar um comentário