Março de 1964 se esgotara. Os dois sabiam o que acontecia no Brasil: o golpe e a fuga de João (Jango) Goulart. “Jaime, en los ejércitos regulares ni los soldados”, bradou Guevara, comprimindo o amigo num abraço ao mesmo tempo de condolências e solidariedade.
O ex-guerrilheiro cubano, numa ironia amarga, referia-se à ingênua confiança do governo Goulart no seu “esquema militar”.
Jaime, do núcleo do Itamaraty que se fortalecera com Jânio Quadros e Goulart, foi também golpeado e num fugaz momento de glória. A diplomacia do Brasil havia contribuído de modo decisivo para a difusão do principio “trade not aid”, comércio e não ajuda, e a criação da Unctad, onde pontificávamos, no Grupo dos 77, o dos subdesenvolvidos. A Unctad funcionava como extensão da Conferência de Bandung, que foi o embrião do Movimento dos Países Não-Alinhados. Lembro de Sérgio Rouanet, em seu primeiro posto no exterior, em Nova York, me explicando que a saída era ter preços justos no comércio e não ficar dependendo de ajuda, de esmola. Oito anos depois de Genebra, na Unctad no Chile, o sobrevivente Rouanet, queria porque queria desertar da nossa delegação e sentar praça com o presidente socialista chileno Salvador Allende.
Foi uma luta convencê-lo de que era loucura.
Guardo em meu cofre íntimo a honra de ter sido um dos que ajudaram a preservar o nosso filósofo. Em Genebra, em 1964, Jaime chefiava os brasileiros (o sofisticado chanceler Araújo Castro se limitaria a presenciar as formalidades de abertura) e Guevara chefiava os cubanos.
Provavelmente Jaime repetiu com Guevara toda aquela conversa de “militares do povo”, de um “esquema militar” da confiança de Assis Brasil, um dos generais de Jango, tema recorrente nas esquerdas brasileiras na medida em que as tensões se avolumavam. O próprio Jango caiu nessa armadilha, falando diretamente aos sargentos.
Não há nada de que general tenha mais medo do que quebra de hierarquia. Ainda na esteira do golpe, ficou-se sabendo que desde dezembro o alto comando do Exército vinha fazendo mudanças de modo a assegurar fidelidades. “Ni los soldados”, foi a reação de Guevara diante de um Jaime não só amargurado mas também perplexo com a ausência de reação militar ao golpe dos generais. “Foi como se eu descesse no olho do furacão”, me confidenciou mais tarde o ex-ministro Araújo Castro, chamado às pressas de volta ao Brasil e demitido sumariamente. Jaime mandou um pedido de demissão malcriado. Castelo logo faria o seu discurso no Itamaraty, abandonando a “política externa independente” e substituindo-a pela noção de “interdependência”.
Havia dois pólos, era preciso escolher um. O envio de tropas brasileiras à República Dominicana, aderindo à intervenção americana sob a bandeira da OEA, clarificava perfeitamente a escolha do novo regime. Em Washington, o Departamento de Estado exultava. Ficaria livre, imaginava, do bando de “barbudinhos do Itamaraty” que vinha infernizando a diplomacia americana.
Nos primeiros momentos, sim, mas não a um prazo maior. Já em 1969 o então ministro do Exterior, Magalhães Pinto, sempre de olho na presidência, articulou o Consenso de Viña Del Mar, no qual a América Latina buscava uma “identidade própria”.
Quais as utopias que povoavam as cabeças daqueles que, como eu, imaginavam que algo diferente pudesse brotar do “interlúdio” janguista? No plano externo, essa procura da “identidade própria”, de independência e autonomia.
Lutar pela “parlamentarização” da ONU: um membro, um voto. Nessa altura, Cuba já era vista como uma referência “utópica”. Além dos desgastes da Crise dos Mísseis de 1962, as experiências de guerrilha “nas montanhas”, na Venezuela, se encaminhavam para um fracasso total. Só 16 anos mais tarde o fôlego guerrilheiro se recompôs com o triunfo sandinista na Nicarágua.
Pelo que pude observar, “a caminho da forca”, como diria um amigo meu depois de 1964, só as Ligas Camponesas, de Francisco Julião, tinham uma relação “de fato” com o modelo cubano de luta revolucionária.
A meu ver, com base em minha vivência, três grupamentos dominavam o cenário esquerdista pré-64: o “partidão”, isto é, o PC pró-Moscou de Prestes; o PC do B, pró-China, criado em 1962, e a Ação Popular (AP), originada na esquerda católica. Fora disso, havia a UNE, que na época teve entre seus presidentes José Serra, que era de esquerda, e Aldo Arantes, militante do PC do B, ex-deputado federal, hoje com cargo no governo Lula.
Não era fácil circular nesse cenário. O PC do B cultuava a luta armada de estilo chinês. O “partidão” me parecia o mais próximo dos tão falados “militares do povo” e de Jango, talvez imaginando transformá-lo numa espécie de Kerensky, o líder do governo provisório que acabou derrubado pelos bolcheviques na Rússia de 1917. A Ação Popular se movimentava tocada pela “indignação de Deus” contra as injustiças, a teologia da libertação e a “igreja popular” consagrada na conferência episcopal de Medellín. Mas, nas intermináveis assembléias – eu nas de jornalistas, meu amigo Grisoli nas de artistas, e assim por diante – se falava muito em “reformas de base”. Mais do que um programa, era uma palavra de ordem um tanto vaga: reforma agrária, reforma urbana, etc.
De tanto assinar manifestos, acabei processado.
Tinha escrito um livro sobre o assassinato de John Kennedy intitulado A conspiração. Bateu a paranóia: a CIA certamente viria em cima de mim, com a ajuda de seus asseclas nativos que estavam de novo na crista da onda. Numa noite o morro de Santa Teresa, no Rio, onde eu morava, e ainda moro, teve todas as suas saídas bloqueadas. Soldados faziam revistas de casa em casa.
Quando a poeira baixou um pouco, um amigo resumiu a ilusão. Os brasileiros elegeram pouco antes Jânio Quadros, um moralista conservador. Como imaginar que o Brasil estivesse no ponto para uma “revolução”?
Consegui manter-me no cargo de editor internacional do Jornal do Brasil, a duras penas, até dois meses depois.
A cortina baixou.
Anos mais tarde, quando a Biblioteca Johnson, dos Estados Unidos, liberou documentos sobre o golpe de 64 no Brasil, Carlos Lemos, então chefe de redação do Jornal do Brasil, me telefonou por uma razão especial.
“As pessoas te achavam maluco com essa história de CIA. Pois tenho aqui um memorando enviado à Casa Branca dizendo que, no Brasil, um tal de Newton Carlos anda escrevendo que Kennedy foi vítima de uma conspiração”, disse Lemos. Eu podia ser paranóico, mas não era maluco.
Boletim Mundo Ano 12 n° 1
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