quinta-feira, 28 de julho de 2011

POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA GIRA NA DIREÇÃO DO TERCEIRO MUNDO

A prioridade concedida à América do Sul (...) não é excludente. A magnitude e a diversidade do a nossa política de “redimensionar a geografia de nossas relações internacionais”, como afirmou viagem à Índia.

Celso Amorim foi ministro das Relações Exteriores (chanceler), pela primeira vez, no governo interino de Itamar Franco (1992-94). Na época, a ONU preparava as celebrações do seu cinqüentenário e abria discussões sobre a reforma do Conselho de Segurança (CS). Amorim aproveitou a ocasião para propor uma ampla reformulação do órgão e, paralelamente, lançou a candidatura brasileira a uma cadeira de membro permanente.
Aquele debate não deu em nada.
Washington favorecia uma reforma limitada à inclusão de Japão e Alemanha entre os membros permanentes, mas não se dispunha a abrir a caixa de Pandora da qual poderia sair um CS com Índia, Brasil e algum país africano. No fim, a hiper-potência optou por conservar a velha composição do órgão, com seus cinco membros permanentes (Estados Unidos, Rússia, Grã-Bretanha, França e China), que reflete os resultados da Segunda Guerra Mundial.
Os chanceler do governo FHC, Luiz Felipe Lampreia e Celso Lafer, continuaram a defender, protocolarmente, a reforma do CS mas congelaram a candidatura brasileira.
O retorno de Amorim à chancelaria, no governo Lula, assinalou a ressurreição do tema. O Brasil hasteou de novo a bandeira da ampliação do CS e atirou-se numa campanha estridente e entusiasmada por um lugar entre os membros  permanentes .
A candidatura brasileira é uma obsessão pessoal do chanceler. Mas, para além disso, tornou-se o eixo organizador da política externa do governo Lula. Em nome dessa prioridade estratégica, o Itamaraty assume os riscos da inconseqüência, pois a ONU não recolocou o tema da reforma do CS na sua agenda oficial, e da impertinência, pois a Argentina, um parceiro estratégico, rejeita explicitamente a pretensão brasileira.
A tradição principal da política externa brasileira, estabelecida pelo Barão do Rio Branco, organiza-se em torno da aliança estratégica com os Estados Unidos e tem por foco a esfera da América do Sul . Lampreia e Lafer, cada um a seu modo, trilharam caminhos inscritos nessa tradição. A parceria com a Argentina, a construção e ampliação do Mercosul e o diálogo prioritário com os Estados Unidos consumiam os esforços do Itamaraty. O resto era periférico, ainda que importante.
O governo Lula tem outra bússola externa. Essa bússola aponta para dois nortes.
O primeiro é a noção de Brasil-Potência, que tem fundas raízes no imaginário nacional mas ganhou contornos contemporâneos com a geopolítica militar e a política externa dos generais-presidentes Garrastazu Médici (1969-74) e Ernesto Geisel (1974-79). O segundo é a noção de Terceiro Mundo, elaborada nas décadas de 50 e 60, sob o influxo da descolonização afro-asiática e do Movimento dos Países Não-Alinhados.
O Brasil -Potência deve ocupar o seu lugar nas relações internacionais. Esse lugar pressupõe a “liderança natural” da América do Sul mas não se circunscreve ao subcontinente. A vocação histórica brasileira, o seu “destino”, é participar das grandes decisões globais.
O Terceiro Mundo, hoje, é o Sul. O conjunto heterogêneo dos países em desenvolvimento tem reivindicações comuns, especialmente nos terrenos do comércio e do combate à pobreza. O Brasil deve assumir uma posição de destaque no diálogo Norte- Sul, recuperando temas e discursos dos tempos da Política Externa Independente (PEI), nos governos Jânio Quadros (1961) e João Goulart (1961-64).
Quadros condecorou o líder cubano Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro do Sul e enviou seu vice, Goulart, em missão comercial à China. Na presidência, Goulart estabeleceu relações diplomáticas entre o Brasil e a União Soviética e o Itamaraty assumiu papel destacado no Grupo dos 77 (uma articulação do Terceiro Mundo) nas conferências das Nações Unidas sobre comércio e desenvolvimento (Unctad).
A ditadura militar rompeu com a PEI, rejeitando as suas ressonâncias “esquerdistas”.
Mas, ao contrário do que reza a lenda, o giro não resultou no alinhamento automático com Washington. Sob Médici, o Brasil recusou-se a assinar o Tratado de Não- Proliferação Nuclear (TNP). Sob Geisel, confrontou os Estados Unidos assinando o Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, que procurava dotar o país de capacidades estratégicas independentes.
A política externa de Lula atualiza essas linhas de força, adaptando-as ao pós- Guerra Fria e à globalização. As críticas, claras e constantes, à ocupação americana do Iraque refletem uma tentativa de combater a unipolaridade no cenário mundial. A formação do Grupo dos Três (G-3, ou IBAS: Índia, Brasil e África do Sul) destina-se a criar um ponto de referência político para o Sul, além de reforçar a campanha pela reforma do CS. O G-20, uma articulação de países em desenvolvimento nas negociações da Organização Mundial de Comércio (OMC), tem como inspiração óbvia o velho Grupo dos 77.
A diplomacia presidencial desempenha funções cruciais na política externa do governo Lula. O presidente visitou Cuba, onde confraternizou com Fidel Castro, percorreu a África Subsaariana, estreitando relações com a África do Sul, e aventurou-se pelos países árabes, numa turnê cujo ponto alto foi a recepção oferecida pelo ditador líbio Muammar Kadafi. As viagens emitiram sinais de autonomia, provocando alguma irritação em Washington. Mas, pragmaticamente, evitaram um choque frontal:
Lula não discursou na Praça da Revolução, em Havana, e rodeou a Palestina, para não se encontrar com Yasser Arafat Na moldura da política externa de Lula, o foco deslocou-se da América do Sul para o Terceiro Mundo. Apesar das juras oficiais, repetidas como um mantra, o Mercosul perdeu o lugar prioritário que ocupava no governo FHC.
É verdade que a bandeira da integração sul-americana tremula alta no mastro de Amorim e que Lula desdobrou-se em visitas aos países vizinhos. Também é verdade que o Brasil organizou um Grupo de Amigos da Venezuela, tentando estabilizar o governo de Hugo Chávez, enviou um emissário para mediar a crise institucional boliviana no final de 2003 e sugeriu hospedar negociações de paz entre o governo colombiano e a guerrilha das Farc. Mas o impulso rumo à integração multilateral da América do Sul – que alcançou o zênite na Conferência de Brasília promovida por FHC em 2000 – parece ter se esgotado.
Atrás das dificuldades na América do Sul está a América do Norte e, em particular, o dragão da Alca. De um lado, esse desafio divide o governo Lula. De outro, separa o Brasil da maior parte dos países sul-americanos.
No PT – mesmo no atual PT, manietado pelo Palácio do Planalto – a Alca é quase um tabu.
No Itamaraty reorganizado por Amorim, o segundo posto hierárquico, a Secretaria-Geral, é ocupado por Samuel Pinheiro Guimarães, um crítico feroz – embora, nos últimos tempos, silencioso – da Alca.
Por outro lado, os ministros da Fazenda, Antonio Palocci, da Agricultura, Roberto Rodrigues, e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Luiz Fernando Furlan, defendem mais ou menos abertamente a área hemisférica de livre comércio.
A estratégia do Brasil nas negociações da Alca reflete as divisões internas mas, sobretudo, o compromisso geopolítico assumido por Lula na sua visita a George Bush, em 2003. Na ocasião, o presidente assinou uma declaração que reafirma a disposição de concluir o tratado hemisférico até o final de 2004. Depois disso, os negociadores brasileiros procuraram bloquear a costura de um acordo ambicioso, abrangendo investimentos externos, intercâmbio de serviços, compras governamentais e patentes.
Mas Washington reagiu agressivamente, firmando acordos bilaterais e ameaçando isolar o Brasil e a Argentina.
Lula e Amorim apostam alto na nova política externa brasileira. Se ganharem, quebram a banca. Se perderem, o Brasil quebra a cara.

A TRADIÇÃO DE RIO BRANCO
José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, tornou-se o mais destacado diplomata brasileiro ao conduzir a defesa da posição nacional junto aos governos dos Estados Unidos e da Confederação Suíça nos episódios de arbitramento internacional das questões de limites no Prata e no Amazonas. Rio Branco tornou-se ministro do Exterior em 1902 e chefiou o Itamaraty por uma década, até a sua morte. Ele é conhecido, sobretudo, pela sua “obra de limites”, que resultou na consolidação das fronteiras nacionais. Entretanto, essa é apenas uma parte do seu legado: o rumo da política externa brasileira do século XX foi definido na “era Rio Branco”.
Rio Branco sempre foi monarquista. Essa sua convicção, porém, não refletia uma adesão ideológica a um sistema político particular, mas uma crença profunda na necessidade de preservar a qualquer custo a unidade nacional que ele encarava como ainda precária. Contudo, paradoxalmente, esse produto do Império – um homem ligado à cultura européia, que jamais abandonou o título recebido de D. Pedro II – cortou o cordão umbilical que ligava a política externa brasileira ao Velho Mundo e associou o Brasil à grande potência da América do Norte.
Um dos atos inaugurais da gestão de Rio Branco consistiu na elevação da legação em Washington à categoria de Embaixada, a primeira aberta pelo Estado brasileiro. Para o posto de embaixador nomeou Joaquim Nabuco, que abraçava os princípios do pan-americanismo de forma apaixonada. O Brasil apoiou tacitamente o Corolário Roosevelt, que provocava protestos entre as nações da América do Sul. No auge do intervencionismo americano no Caribe, Rio Branco renovou a proposta, dos primeiros tempos do Império, para uma aliança de defesa bilateral entre o Brasil e os Estados Unidos.
Uma aliança estratégica com a potência da América do Norte era, aos olhos de Rio Branco, uma necessidade inscrita na geopolítica mundial e na evolução das relações econômicas externas do Brasil. A Europa encaminhava-se para a guerra – e essa catástrofe que se desenhava no horizonte implicaria o ocaso das potências do Velho Mundo. O Brasil, gradualmente, desligava-se da órbita econômica britânica e ingressava na esfera de negócios dos Estados Unidos.
A Grã-Bretanha conservou até a década de 30 a posição de maior investidor no estrangeiro mas, bem antes disso, perdeu a supremacia no comércio internacional. Na América Latina, o poderio comercial dos Estados Unidos se manifestou rapidamente – e a antiga hegemonia britânica dissipou-se no alvorecer do século XX. Nas últimas décadas do século XIX, os Estados Unidos tornaram-se o maior mercado para as exportações brasileiras de café e borracha natural. Nas primeiras décadas do século XX, os Estados Unidos substituíram a Grã-Bretanha na condição de principal origem das importações brasileiras. A política externa de Rio Branco acompanhou essa transição.
Joaquim Nabuco, o embaixador em Washington, era um adepto entusiasmado do pan-americanismo. Rio Branco, não. O ministro do Exterior desenvolvia política muito mais sutil, pois a sua finalidade não era atrelar o Brasil à estratégia de Washington mas edificar os alicerces da inserção brasileira no novo cenário internacional. Sob essa perspectiva, a parceria estratégica com os Estados Unidos não era um fim, mas um meio para a projeção da influência brasileira na América do Sul.
Na visão global de Rio Branco, as Américas eram três: Estados Unidos, Hispano-América  e Brasil. Sob a dinâmica do funcionamento do pan-americanismo, sua meta estratégica consistia em consolidar a posição brasileira como elo de ligação entre os Estados Unidos e a Hispano-América. A tática requerida para esse fim implicava evitar o isolamento brasileiro e, mais que isso, aprofundar o papel nacional de pólo geopolítico sul-americano. Já naquela época, o Brasil postulava a condição de “liderança natural” da América do Sul.
A política sul-americana de Rio Branco concentrou seu foco principal sobre o Cone Sul. A orientação brasileira destinava-se a explorar a velha rivalidade entre Argentina e Chile para, sobre essa base, organizar a cooperação política ABC (Argentina, Brasil, Chile). No “triângulo ABC”, o Brasil manobrava entre os dois rivais, exercendo liderança regional e procurando afastá-los da política internacional amazônica. De certa forma, é possível interpretar a cooperação ABC como o embrião geopolítico do projeto do Mercosul.
A tradição de Rio Branco forneceu uma bússola que, apesar de algumas oscilações, orientou a política externa brasileira por todo o século XX. Essa bússola aponta, essencialmente, nas direções da parceria estratégica com os Estados Unidos e do exercício da liderança na América do Sul. Ela também define os limites da influência brasileira nas relações internacionais: tradicionalmente, o Brasil enxergou- se como potência de âmbito puramente regional.
Os desvios em relação à orientação tradicional foram de dois tipos. Os governos Gaspar Dutra (1946-50) e Castello Branco (1964-67) praticaram políticas de alinhamento quase incondicional a Washington. Os governos Jânio Quadros (1961) e João Goulart (1961-64) adotaram postura terceiro-mundista, gerando sérios atritos entre o Brasil e os Estados Unidos.
Boletim Mundo Ano 12 n° 1

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