Páscoa! Oba, feriado. As festas são, historicamente, uma interrupção do tempo de trabalho e, mais do que um descanso, uma quebra da rotina. Elas são importantíssimas para a manutenção das relações sociais pois são eventos através dos quais a coletividade reconhece valores comuns e fatos marcantes no seu processo de formação. Desde as origens das civilizações houve a preocupação em controlar esse tempo – e essa foi uma das funções primordiais dos calendários.
Ao comemorarmos a Páscoa, encerrando a Quaresma que começa na quarta-feira de cinzas após o Carnaval, estamos marcando o nosso tempo com base no calendário cristão usado em todo o Ocidente – e nem imaginamos o fascinante processo que o trouxe até nós.Um calendário não é um objeto que possa ser modificado de um dia para outro, exatamente por ser um elemento de identidade cultural formado na longa duração.
A definição desse nosso calendário, de suas festas, do fato dele ser aceito em metade do planeta, confunde- se com a própria história da Igreja, que por sua vez confunde-se com a história do Ocidente.
O cristianismo foi, nas suas origens, uma seita ligada a certos valores éticos e morais provenientes das sociedades urbanizadas do oriente helenístico. Por isso, a longa desagregação do Império Romano do Ocidente, marcada pela progressiva ruralização que se estendeu pela Alta Idade Média, tornou o contato dos missionários cristãos com as áreas rurais européias mais tardio e lento, especialmente com a chegada dos povos germanos. Para os “bárbaros”, que ainda não tinham escrita e estavam passando do estágio semi-nômade para sedentário, as divindades da natureza continuavam a marcar e a traduzir todos os grandes momentos da vida.
Em contraste, certas idéias do cristianismo eram por demais abstratas: uma virgem que é mãe; um filho que é também o pai, além do espírito santo; etc.
A nova aristocracia medieval buscou apoio na Igreja para estabilizar o seu poder usando o clero (alfabetizado) na administração do reino e como seus aliados e defensores junto às populações romanizadas a fim de que aceitassem os novos senhores. Tudo isso, em troca da conversão dos pagãos.
A atuação missionária da Igreja seguia as orientações de Santo Agostinho, um de seus mais importantes teólogos, que recomendava fazer a conversão dos “bárbaros” através da identificação entre elementos das duas culturas, até apagar o sentido original de costumes e crenças originais.
Por exemplo: construir uma capela onde havia uma árvore sagrada ou identificar ao diabo um deus pagão.
Incorporar uma festa e seus objetos e alterar o seu significado também se encaixa nesse método de persuasão. Assim, as mais importantes festas cristãs eram, na origem, pagãs. E foi assim que se criou o calendário cristão. A Páscoa associava-se ao equinócio de primavera do hemisfério norte; o Natal, ao solstício de inverno; Finados era a festa dos mortos; Carnaval era a Saturnália, festa da inversão da ordem em Roma; além de inúmeras festas menores que correspondem a variações locais.
Os resultados foram ambíguos. Ao mesmo tempo que essa estratégia cristianizava os pagãos, permitia que o paganismo persistisse ou aflorasse de tempos em tempos sob uma roupagem cristã, como aconteceria no século XII, época do chamado renascimento pagão. No Brasil é clássico o encontro entre cristianismo e divindades africanas.
Agora, celebramos a Páscoa pensando em ovos de chocolate e coelhinhos, outros sentidos que se agregaram à festa com o passar do tempo. Mas a definição temporal da Páscoa foi um tema muito importante para a Igreja, na medida em que esse evento ocupa o lugar principal na mística cristã.
Na história da Páscoa, Cristo é crucificado na sexta-feira e ressuscita no domingo provando ser o Messias cujo sangue limpou os pecados da humanidade.
Mas, a princípio, quando celebrava a última ceia com os apóstolos, Jesus estava seguindo a tradição judaica do Pessach, festa da passagem, que comemorava a fuga do Egito guiada por Moisés e agradecia e ofertava os frutos da terra. Posteriormente, quando os cristãos tentaram estabelecer em que ano aqueles fatos haviam ocorrido, a primeira dificuldade encontrada estava no fato do calendário judaico ser lunar, enquanto o calendário utilizado no Império Romano era solar. Não havendo como determinar o dia do ocorrido com precisão, a única coisa certa é que a crucificação fora num domingo.
Enquanto a Igreja discutia, as pessoas continuavam a seguir o velho calendário, cujo ano iniciava-se em março, no equinócio de primavera, tempo de começar os novos plantios e retomar as alegrias da vida depois dos rigores do inverno. A festa simbolizava a vida através da ressurreição das sementes. Para os pagãos, romanos ou “bárbaros”, esses fenômenos deviam-se às divindades que eram então invocadas e cultuadas, sendo que em certas culturas era comum ocorrerem orgias rituais. Significativamente, para os cristãos essa tornou-se a época da Quaresma, período de recolhimento, de jejuns e abstinências, em oposição à liberdade carnal pagã, devidamente confinada aos dias de Carnaval.
Após muitos cálculos, em 325, o Concílio de Nicéia decidiu que a “Páscoa é o domingo que segue o décimo quarto dia da lua que chega a tal idade a 21 de março ou imediatamente depois” (21 de março é o equinócio). Traduzindo: a Páscoa ocorrerá na lua nova após a primeira lua cheia após o equinócio de primavera. Feito esse cálculo, o Carnaval é fixado quarenta dias antes.
O estranho e complicado cálculo resultou dos esforços da Igreja para conseguir conciliar as diferentes referências culturais de que dispunha. No fim das contas, temos um duplo paradoxo: um calendário solar cuja data mais importante é definida pelo calendário lunar e uma festa cristã que bebe no judaísmo e no paganismo.
DAS PROCISSÕES À ESCOLA DE SAMBA
Se as comemorações da Páscoa trazem em sua origem a cristianização de festas pagãs, também o ponto alto do carnaval brasileiro, por sua vez, deve algumas de suas características a um hábito religioso cristão: as procissões. No romance “Memórias de um Sargento de Milícias”, folhetim publicado como livro em 1854, Manuel Antonio de Almeida descreve um dia de procissão no Rio de Janeiro do século XIX, dia de “grande festa, de lufa-lufa, de movimento e de agitação”.A multidão saía pelas ruas, organizada em várias sessões, cada uma com roupas e cantos próprios. A descrição se detém em uma delas: “Queremos falar de um grande rancho chamado das Baianas, que caminhava adiante da procissão, atraindo mais ou tanto como os santos, os andores os emblemas sagrados, os olhares dos devotos; era formado esse rancho por um grande número de negras vestidas à moda da província da Bahia, donde lhe vinha o nome, e que dançavam nos intervalos do Deo- Gratias uma dança lá a seu capricho”.
Décadas mais tarde, a “ala das baianas” continuaria a desfilar, com seus rodopios e belos trajes brancos, mas agora nas passarelas do samba, em pleno carnaval.
Boletim Mundo Ano 12 n° 1
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