quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O grande Décio Freitas

Luís Augusto Fischer

Ele revirava o passado procurando soluções para o Brasil.
Morreu esses dias o velho e bom Décio Freitas. Nascido em 1922, em Encantado, interior do Rio Grande do Sul, formou-se em direito, uma das únicas alternativas para o exercício das Humanidades em sua geração, e desenvolveu uma intensa vida de jornalista e pesquisador da história brasileira. Foi filiado ao Partido Comunista quando jovem, no calor da Segunda Guerra, mas saiu dele para permanecer numa zona política de esquerda, ora próximo ao trabalhismo, ora ao socialismo, mantendo porém sempre alertas os sentidos críticos. Por suas relações políticas, andou perto do poder, especialmente nos anos imediatamente anteriores ao golpe de 64, agora quarentão. No governo de Jango, presidiu a importante Fundação Brasil Central, quando privou com Darcy Ribeiro e outras grandes figuras. Foi cassado nas primeiras levas, passando a morar no Uruguai.
Décio Freitas é um daqueles caras de que todo mundo ouviu falar mesmo sem saber. Foi ele quem, nos anos 70, matou a charada em torno de Zumbi dos Palmares, hoje uma tranqüila e unânime referência da história brasileira. Antes de Décio e seu Palmares, a Guerrilha Negra (1971), mal se sabia que Zumbi era um indivíduo. Parecia que “zumbi” era um título, como “comandante”, “general”. E Décio resolveu o enigma com documentos que abriram um novo capítulo nesse tema. É pouco?
Em vários outros livros, sempre freqüentou temas esquecidos, negligenciados ou varridos para baixo do tapete da historiografia, especialmente nos anos medonhos da ditadura. Décio abordou a vida das Missões gaúchas em O Socialismo Missioneiro, publicado em 1975 com uma tese no título. Livro que, diga-se, foi republicado em 1998 com o alteradíssimo título de Missões, Crônica de um Genocídio. Claro: havia morrido a experiência da União Soviética, e a palavra “socialismo” passou a significar coisas muito diversas que as esperançosas e futurosas com que sonhavam os homens de esquerda da geração do autor.
Os dois casos revelam um Décio empenhado em reler o passado com vistas ao presente, na temperatura do ensaio mais do que na da história. Tratava-se de revirar a história para localizar lá elementos com que se pudesse identificar saídas políticas para o povo brasileiro. O quadro em que o primeiro livro foi concebido ilustra bem a situação: exilado no Uruguai, com vários companheiros envolvidos em tentativas de organizar a volta ao Brasil, derrubar os militares e empalmar o poder, com Jango retornando à presidência, Décio participou da trama para escrever um manifesto. Essa obra teria duas partes: uma histórica, sobre os movimentos populares, coordenada por ele mesmo, e outra sobre a conjuntura política, coordenada pelo mais tarde famoso sociólogo Herbert de Sousa, o Betinho.
Frustrou-se a coisa toda, mas Décio fez seu serviço. Foi por essa pesquisa que ele voltou ao Brasil clandestinamente. Viveu na sombra por anos. Seguiram-se outros livros, o mais famoso sendo, talvez, O Maior Crime da Terra, de 1996, reconstituição romanceada de fatos ocorridos na Porto Alegre de 1860, quando um açougueiro assassinou pessoas e, dizem, com a carne delas fez lingüiça. O título era um exagero, como voltou a ser em O Homem que Inventou a Ditadura no Brasil, sobre a trajetória política de Júlio de Castilhos, o principal líder republicano no Rio Grande do Sul. Tinha agora um livro pronto – do qual me passou uma cópia, para leitura e conversas que não tivemos. Versa sobre um pedaço radicalizado da Cabanagem, revolta de 1830 em Belém do Pará. Deve sair antes do fim do ano, provavelmente com o verboso e agressivo título original: A Miserável Revolução das Classes Infames.
Vida cheia de peripécias teve nosso Décio. Em matéria de romances e amores, foi um galanteador; vaidoso, consta que deixou de colaborar para a Folha de S.Paulo quando começou aquela mania de registrar a idade do sujeito após o nome. Intelectual atento, discutia literatura com o mesmo gosto com que diagnosticava os horrores do país. Sujeito de verve irrequieta mesmo aos quase 82 anos, Décio vai fazer falta. Tomara que nós saibamos valorizar sua obra e seu exemplo.

Revista Aventuras na História n° 009

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