domingo, 12 de fevereiro de 2012

O homem é inocente!

Reinaldo José Lopes

A catástrofe que acabou com os mamíferos gigantes da América pode não ter sido a chegada de humanos, mas uma mudança radical de seus ambientes.
Faz mais de um século que o primeiro e maior crime ambiental da história foi atribuído a um culpado: nós, Homo sapiens – ou melhor, os primeiros membros da nossa espécie que puseram os pés na América há milhares de anos. Esses pioneiros teriam mandado desta para uma melhor dezenas de gêneros de mamíferos gigantes, criaturas que faziam das grandes planícies do continente um cenário de safári africano – com dentes- de -sabre no lugar dos leões e tatus do tamanho de um Fusca no dos búfalos. No espaço relativamente curto de poucas gerações, os gigantes teriam sido exterminados, e esse holocausto ganhou até um nome sinistro em inglês: overkill.
O exame mais cuidadoso das pistas deixadas por esses bichos e pelos homens que conviveram com eles, no entanto, está ajudando a traçar um quadro bem diferente. No Brasil, por exemplo, o mais provável é que ninguém tenha caçado os gigantes, conhecidos pelo nome coletivo de mega fauna. Mesmo na América do Norte, não mais que três espécies desses animais viraram comida de gente – uma delas, até mesmo, existe ainda hoje. E novas evidências sugerem que, longe de ter sido uma hecatombe geral e quase instantânea, o sumiço dos mega mamíferos foi um processo longo, que se estendeu por vários milhares de anos e de forma diferente em cada espécie.
Mais uma peça desse quebra-cabeça foi adicionada há pouco pelo bioantropólogo Walter Neves e pelo geólogo Luís Beethoven Piló, do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da USP. A dupla datou com precisão restos  fossilizados do temível Smilodon populator, o dente- de- sabre que dominou o cerrado brasileiro durante a Era do Gelo, e verificou que o bicho ainda estava vivo há meros 9,1 mil anos. Isso significa uma convivência de 2 mil anos ou mais com o povo que habitou Lagoa Santa, no centro de Minas Gerais (de onde veio o fóssil do grande felino). Uma preguiça gigante Catonyx cuvieri, também datada pelos dois, é só um pouco mais antiga (9,9 mil anos), mas o cavalo americano Equus neogeus desapareceu há uns 16 mil anos, antes, portanto, que humanos dessem as caras em Lagoa Santa.
“As pessoas tinham a idéia de que essas espécies formavam um conjunto, que desapareceu ao mesmo tempo, mas vemos que não é possível garantir isso”, diz Luís. As escavações recentes em Lagoa Santa têm reforçado, aliás, outro dado intrigante sobre a mega fauna brasileira: não há nenhuma evidência de que os bichos gigantes tenham sido caçados por ali. As pessoas preferiam comida bem mais prosaica, como capivaras e veados, além de recursos vegetais, embora o porquê disso ainda permaneça obscuro, mas já coloca em xeque o mito de “homem caçador”.
A visão dos primeiros americanos como especialistas em apagar grandes mamíferos deve muito ao que se sabe sobre a chamada cultura Clovis (assim chamada por causa do sítio arqueológico de mesmo nome no Novo México, nos Estados Unidos), que passou a dominar a América do Norte há cerca de 11,5 mil anos. Até o fim dos anos 80, acreditava-se que os caçadores Clovis, com sua tecnologia de pontas de lança cuidadosamente trabalhadas, tinham sido os primeiros a entrar no continente, vindos da Sibéria. Para muitos, a bela quantidade de ossos de mamute nos sítios Clovis só podia significar que eles tinham sido os responsáveis pelo fim da mega fauna. “As pessoas acreditavam que os grandes mamíferos da América, por terem evoluído longe dos humanos, eram completamente inocentes quanto ao perigo que representavam”, afirma o arqueólogo Don Grayson, da Universidade de Washington, em Seattle, nos Estados Unidos. Com um continente inteirinho de caça abundante e mansa à disposição, as lanças Clovis teriam varrido a mega fauna do mapa, do Alasca à Patagônia, em poucas centenas de anos.
Mas de lá para cá várias coisas complicaram essa tese. Uma delas é que, no fim das contas, o povo de Clovis não foi o primeiro a ocupar a América – tudo indica que os humanos entraram aqui há mais de 14 mil anos. E, em diversos lugares, eles não parecem ter se especializado em caçar grandes animais, mas adotado uma estratégia “vale-tudo” de sobrevivência, como em Lagoa Santa.
Mesmo assim, Grayson olhou com o máximo cuidado cada um dos sítios Clovis da América do Norte, em busca de sinais de que a matança realmente tinha ocorrido. O resultado foi devastador: dos 76 sítios arqueológicos antes considerados açougues de mega fauna, só havia provas decentes de caça por humanos – ossos diretamente associados a ferramentas, com marcas de corte ou cozimento – em 14 deles. As únicas espécies hoje extintas que eram devoradas nesses lugares eram mamutes e mastodontes – havia também bisões, que andam pelas Grandes Planícies do Canadá e dos Estados Unidos até hoje. Para Grayson, o mais provável é que a mudança climática brusca no fim da Era do Gelo tenha levado os gigantes ao declínio – um por um, em momentos diferentes.
Uma pista de como essa modificação pode ter afetado um dos animais extintos é o estranho e rápido encolhimento dos cavalos que habitavam o Alasca, flagrada por Dale Guthrie, do Instituto de Biologia Ártica desse estado americano. No espaço de poucos milênios, os bichos perderam 12% de seu tamanho, até ir definitivamente para a cova por volta de 12,5mil anos atrás.
O detalhe é que o estrago já estava feito antes dos primeiros registros de ocupação humana no Alasca, mas parece ter seguido de perto a mudança climática e ambiental: “A transição ecológica não foi gradual. Uma mudança dramática na vegetação ocorreu por volta de 13 mil anos atrás”, diz Guthrie. Até então, a área fora uma gigantesca estepe, cheia da grama que é o sonho de qualquer eqüino, mas os cavalos tiveram de enfrentar o aparecimento de florestas e arbustos, plantas para as quais não estavam adaptados. A redução de tamanho pode ter sido uma resposta evolutiva à falta de comida, ou uma mera conseqüência dela, mas o resultado final não podia ser outro: a extinção.
Para outros pesquisadores, um fenômeno parecido acabou com os gigantes brasileiros, que eram animais de ambiente aberto, ao que tudo indica. “O truque é a chuva”, resume o biólogo Mario de Vivo, do Museu de Zoologia da USP. Com o fim da Era do Gelo, a umidade que estava retida na forma de gelo nas calotas polares voltou a cair com força renovada na forma de chuva, transformando o imenso cerrado que então cobria até a Amazônia em áreas de vegetação mais alta e densa. “Os animais que pastavam”, diz Mario, “ficaram sem grama. Os cortadores, que se alimentavam de folhas de árvores esparsas, como as preguiças gigantes, não tinham mais espaço para se mover e, com isso, a maior parte dos carnívoros ficou sem suas presas e também entrou em declínio.”
Por mais sentido que a coisa pareça fazer,  os defensores da tese da matança (overkill, em inglês) não estão nem um pouco convencidos. Muitos argumentam, por exemplo, que não há mais traços da caça da mega fauna apenas porque uma destruição suficientemente rápida dos bichos tenderia a não deixar muitos vestígios, já que as condições de preservação dos ossos – a céu aberto, na maior parte dos casos – não seriam ideais. E que os mamíferos gigantes tinham sobrevivido a uma coleção de mudanças climáticas antes – por que “escolher” justo a que coincidiu com a chegada dos seres humanos para se extinguir? É isso que os advogados de defesa dos primeiros americanos vão ter de explicar, em detalhes, daqui para frente. “No fim das contas, cada espécie teve sua própria história única”, avalia Guthrie.
Dente- de- sabre
Nome científico: Smilodon populator
Região de origem: Lagoa Santa (Minas Gerais)
Os felinos conhecidos coletivamente como dentes- de- sabre formavam um grupo diversificado, mas o maior deles foi mesmo o S. populator do cerrado brasileiro, com cerca de 400 quilos e 1,2 metro de altura.
Toxodonte
Nome científico: Toxodon platensis
Região de origem: Desde o Nordeste brasileiro até Uruguai e Argentina.
Pense num hipopótamo com pêlo e você tem uma boa imagem do que eram os toxodontes. Herbívoros semi-aquáticos, eles evoluíram no isolamento de milhões de anos da América do Sul.
Gliptodonte
Nome científico: Doedicurus clavicaudatus
Região de origem: Argentina
Esse parente gigante dos tatus, com 4 metros de comprimento e 1,5 metro de altura, era um verdadeiro tanque em termos de armadura corporal, com uma sólida carapaça e uma cauda que mais parecia uma maça medieval, cheia de espinhos córneos.
Macrauquênia
Nome científico: Macrauchenia patachonica
Região de origem: Argentina
Esse bicho esquisitíssimo lembra vagamente um lhama com tromba, mas na verdade pertence ao grupo dos litopternos, animais de casco que evoluíram isolados na América do Sul, quando o continente ainda era uma ilha. Provavelmente comia folhas de árvores.
Preguiça gigante
Nome científico: Megatherium americanum
Região de origem: Rio Grande do Sul
Ao contrário de seus pequenos parentes modernos, a preguiça gigante ou megatério era um bicho de solo, podendo chegar a 7 metros de comprimento. É possível que ela fosse bípede por parte do tempo, agarrando aos troncos das árvores de cujas folhas e ramos se  alimentava.
Cavalo americano
Nome científico: Equus neogeus
Região de origem: Lagoa Santa (Brasil)
Essa espécie de cavalo provavelmente se parecia bem mais com um pônei de hoje: robusto, troncudo e resistente. Além dos ambientes abertos do Brasil Central, eram muito comuns na Argentina e no Uruguai  atuais.
Mastodonte
Nome científico: Haplomastodon waringi
Região de origem: Bahia, Rio Grande do Norte
Quase todo o Norte e Nordeste do Brasil eram habitados por mastodontes, cujas dimensões eram bastante parecidas com as de um elefante indiano moderno. A dentição do bicho, no entanto, era bastante distinta, denunciando sua evolução em separado.
Paleolhama
Nome científico: Palaeolama niedae
Região de origem: Serra da Capivara (Piauí)
Parentes ligeiramente maiores dos lhamas modernos eram comuns no interior do Brasil durante a Era do Gelo, o que sugere, para alguns pesquisadores, um ambiente sensivelmente mais frio e seco que o de hoje.

 Revista Aventuras na História n° 010

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