Há dois séculos, o país era responsável por 75% da produção mundial de açúcar. Como foi possível a colônia mais rica da América tornar-se um dos países mais pobres do mundo?
Em janeiro, o Haiti completou 200 anos de independência. Porém, até agora, não houve tempo ou motivo para comemorações. Em fevereiro, a capital, Porto Príncipe, foi cercada e saqueada por bandos armados, e o país chegou à beira da guerra civil. Nos primeiros dias de março, o presidente Jean-Bertrand Aristide renunciou. Ele foi mais um na longa lista de governantes que não terminaram seus mandatos em dois séculos de história.Uma história que, no entanto, começou de forma promissora. No fim do século 18, o Haiti era uma das colônias mais ricas da América. Sob controle francês, batizada, a pequena ilha de Saint Domingue no Caribe era responsável pela produção de 75% do açúcar comercializado no mundo. A prosperidade econômica era garantida pelas plantações em grandes propriedades e pela exploração do trabalho escravo. Mas esse modelo estava com os dias contados.
Em 1791, inspirados na independência dos Estados Unidos (1776) e na Revolução Francesa (1789), os haitianos levantaram-se contra a discriminação entre homens livres, mulatos, negros e brancos. O movimento começou com distúrbios provocados por mulatos livres que exigiam equiparação de direitos com os brancos. Dos americanos, o movimento herdou o anti-colonialismo e a prática militar. Os cerca de 800 haitianos que participaram da guerra contra os ingleses e receberam treinamento militar nos Estados Unidos estavam entre os líderes do movimento. Dos franceses, vieram os ideais de igualdade e de direitos universais. Em poucos meses, a revolta chegou ao interior: os escravos abandonaram as fazendas, queimaram as plantações e mataram donos de terras e comerciantes. A situação ficou incontrolável quando as principais cidades foram ocupadas. Em 1793, com o caos instalado e o país paralisado, os franceses aboliram a escravatura e Touissant Louverture, um ex-escravo, líder do movimento de libertação, assumiu o poder.
A retirada dos colonizadores e o momento de instabilidade deram a deixa para que os ingleses, que ocupavam a vizinha Jamaica, tentassem invadir a ilha. Diante da ameaça britânica, haitianos e franceses fizeram uma trégua e repeliram os invasores. Mas nem bem a Union Jack (a venerada bandeira dos britânicos) sumiu no horizonte, os espanhóis chegaram para tentar dominar o território. Novamente, os ex-escravos armaram- se para lutar contra os estrangeiros. Os espanhóis não só foram derrotados como cederam sua parte da ilha, a porção leste, para a França, em 1795.
Mas a cooperação durou pouco. Em 1802, Napoleão Bonaparte enviou tropas para destituir Louverture. Depois de meses de combates, o líder haitiano aceitou um armistício, mas foi traído e acabou preso e deportado para a França, onde morreu dois anos depois. A ameaça de retorno aos grilhões levou os ex-escravos a reagruparem-se. Dessa vez, os franceses foram derrotados e retiraram-se para a parte leste da ilha, onde permaneceriam até 1809. Finalmente, em janeiro de 1804, o país foi declarado independente e ganhou o nome de Haiti, dado pelos antigos habitantes, os índios arauaquis. Nascia a primeira nação negra livre da história, fruto da única revolta de escravos que deu certo.
Dos 23 governantes do Haiti que se seguiram até 1915, 19 foram destituídos ou assassinados. Depois de anos de guerra, as plantações e as cidades estavam destruídas. Os trabalhadores com alguma especiliazação haviam fugido do país. O comércio deixou de existir. Não havia moeda. Temerosos de que a rebelião de escravos se espalhasse continente afora, as potências européias e os Estados Unidos não reconheceram a independência da nova nação. E pior: interromperam todas as relações comerciais. O bloqueio estrangulou a economia e esfacelou o poder político. O primeiro presidente, Jean-Jacques Dessalines durou pouco mais de um ano e foi assassinado. Em seu lugar assumiu Christophe Henry, que convocou uma assembléia constituinte, em 1806, na qual defendia que os ex-escravos voltassem às plantações de cana. Outra vez o país se dividiu, Henry e suas tropas fugiram para o norte. Lá, ele se proclamou rei Henry I, construiu palácios e instalou uma corte composta de quatro príncipes, oito duques, 22 condes, 37 barões e 14 cavaleiros. A aventura durou até 1920 quando, no meio de uma grave crise financeira, greves e fome, Henry se matou com um tiro. Seu efêmero reino foi incorporado à República do Haiti. Mas a situação política não melhorou muito e o país passou por guerras civis e golpes de Estado, numa incrível média de um a cada seis meses.
No início do século 20, a realidade internacional era outra. Com a construção do Canal do Panamá, em 1914, e a independência de praticamente todas as colônias européias, a geopolítica local se alterara e os americanos, a maior potência da América, passaram a olhar seus vizinhos com outros olhos. Era a época da chamada doutrina Monroe (“a América para os americanos”), que pretendia defender o continente dos interesses europeus. A Primeira Guerra Mundial foi o estopim para que, em 1915, os Estados Unidos invadissem o Haiti. “As principais razões eram prevenir uma ação militar dos alemães e proteger os investimentos americanos no país”, afirma David Geggus, professor de história na Universidade da Flórida e autor de vários livros sobre o Haiti.
Bicho papão
Durante os 19 anos de ocupação, os americanos dominaram a incipiente economia e o governo haitianos. Os investimentos americanos possibilitaram várias obras de infra-estrutura no país. O controle político ficou a cargo de uma elite urbana formada, em sua maioria, por mestiços. Em contraste, a população negra viu voltar práticas escravocratas como a lei que obrigava o trabalho forçado na construção de estradas. Essa turma permaneceu no poder até 1957, quando o médico François Duvalier foi eleito prometendo recolocar os negros no controle político e econômico. No ano seguinte, uma tentativa de golpe fez com que Duvalier iniciasse um governo marcado pelo terror. Conhecido como Papa Doc, ele criou um grupo paramilitar cujos integrantes eram chamados de tontons macoutes (algo parecido como “bichos-papões”), que durante seu governo foram responsáveis pela morte de mais de 2 mil haitianos, tortura e perseguição de outras centenas.
Em 1964, Duvalier declarou-se presidente perpétuo. A máquina de propaganda de seu governo promoveu o culto à sua imagem, elevando-o ao posto de divindade. Adepto do vodu, Papa Doc tornou-se um ferrenho repressor do clero católico, que fazia oposição ao regime. Assim como fazia com as patentes do Exército, era ele quem indicava os bispos e, por isso, foi excomungado pelo Vaticano. Mas a linha dura o manteve o presidente no poder até sua morte, em 1971, apesar de várias tentativas de golpe de Estado. “Ele permaneceu no poder por um lado devido ao terror e, por outro, porque recebia apoio da crescente classe média baixa negra, que há muito se ressentia da elite mestiça. Também porque neutralizou instituições como o Exército e a Igreja”, diz Geggus.
Jean-Claude, seu filho, assumiu após a morte do pai, aos 19 anos. Baby Doc, como era chamado, diminuiu o isolamento que o país enfrentava. O turismo, que antes era uma dos principais meios de entrada de divisas no país, passou a ser incentivado e o governo americano voltou a conceder ajuda financeira que havia cortado no fim da década de 60. Mas os tontons macoutes continuavam em ação. Na década de 80, formavam um exército de 15 mil pessoas. A repressão, dessa vez, não adiantou. Em 1986, o descontentamento popular fez com que Jean-Claude fugisse para a França.
A voz do povo
Uma junta de civis e militares substituiu o ditador e eleições foram marcadas para o ano seguinte. Mas atentados durante o pleito e suspeitas de fraude colocaram o governo sob suspeita. Somente em dezembro de 1990 foi realizada a primeira eleição livre para presidente da história do Haiti. O vencedor foi Jean-Bertrand Aristide, um ex-padre católico associado às ideologias de esquerda. As reformas implantadas pelo novo governo não uniram o país e, oito meses depois de assumir, o presidente foi deposto por um golpe militar. Aristide fugiu e o governo americano impôs um embargo econômico que sufocou ainda mais a economia do país. Nessa época, ficaram famosas as imagens dos haitianos lançando-se ao mar em bóias, câmeras de ar e balsas, protagonizando tentativas desesperadas de chegar à costa americana para escapar da miséria.
Mais uma vez, a agitação política resultou em ocupação estrangeira. Em 1994, o governo militar deixou o poder sob pressão do governo americano. Cerca de 20 mil soldados dos Estados Unidos desembarcaram no país caribenho e Aristide foi reconduzido ao poder. “Mas Aristide não era mais o mesmo e começou a se distanciar de seu eleitorado, as massas. Ele incorporou a mistificação à sua retórica, apresentando-se como a personificação do ‘povo’ haitiano, subliminarmente, como um Jesus Cristo”, afirma Carolyn Fick, professora da Universidade de Concórdia, no Canadá, e autora de dois livros sobre o Haiti.
Na eleição de 1995, o ex-padre transferiu a presidência a seu aliado eleito, René Prevál, sem distúrbios, uma novidade na cena política haitiana. Mas Aristide voltaria à presidência após o pleito de 2000, considerado fraudulento por observadores internacionais. Desde então, a insatisfação só aumentou. “Durante seus dois mandatos na presidência, a situação foi crítica para os haitianos, a economia, o sistema político, tudo deteriorou e nada melhorou. Ele também foi acusado de insistir no embargo contra o Haiti quando exilado em Washington para pressionar os militares que o derrubaram. O que se mostrou ineficiente, enquanto criou mais dificuldades econômicas para o país”, diz ela. O comentário serve de alerta para o governo de transição: se a vida dos haitianos não começar a melhorar, um novo golpe há de surgir.
Dança das cadeiras
Instabilidade marcou a história do país
1492- Cristóvão Colombo é o primeiro europeu a aportar na ilha, batizada de Hispaniola.
1697- A Espanha cede à França a parte oeste da ilha, ocupada por mercadores e piratas franceses.
1777- As duas potências traçam a fronteira que vale até hoje no Tratado de Aranjuez.
1791- Concedida a igualdade entre mulatos e brancos. Os escravos iniciam uma revolta.
1793- Louverture é nomeado general e a escravidão é abolida nas colônias francesas.
1798- Louverture comanda tropas de ex-escravos e expulsa os ingleses da ilha.
1801- O novo país torna-se província autônoma da França e uma Constituição é promulgada.
1802- Napoleão Bonaparte envia uma armada que vence as tropas de Louverture, que se entrega.
1804- Depois de vencer as tropas francesas, os haitianos proclamam a independência.
1806- O país divide-se em duas regiões. Ao norte, C. Henry proclama-se rei.
1820- Santo Domingo, atual República Dominicana, declara-se independente.
1822- Boyer, presidente do Haiti, conquista todo o lado oeste e invade o lado leste.
1915- Durante a Primeira Guerra Mundial, as tropas americanas invadem o país.
1957- François Duvalier, o Papa Doc, é eleito e governa o país com mão de ferro.
1971- Duvalier morre e seu filho, Jean-Claude (o Baby Doc), assume o poder no país.
1986- Jean-Claude foge para a França e o general Henri Namphy assume o governo.
1988- Leslie Manigat é eleito presidente, mas acaba deposto por um golpe militar.
1990- O general Prosper Avril foge do país e Aristide é eleito presidente da República.
1991- O ex-padre Aristide é deposto e uma sangrenta repressão tem início no Haiti.
1994- O presidente eleito retorna ao país sob proteção das Forças Armadas americanas.
1995- René Préval, aliado de Aristide, é eleito presidente e assume o poder.
1997- A abstenção na eleição legislativa é maior que 90% e a votação, anulada.
2000- Aristide é eleito para um mandato até 2006 em um pleito considerado fraudulento.
2004- Jean-Bertand Aristide renuncia e um governo de transição assume o poder.
O Haiti não é aqui
Dois países, uma ilha. O Haiti e a República Dominicana dividem um pedaço de terra no mar do Caribe que entrou para a história, porque ali aportou Cristóvão Colombo, em 1492: a ilha Hispaniola. Em 1697, os espanhóis cederam a parte oeste da ilha aos franceses e permaneceram na costa leste.
Atualmente, com cerca de dois terços do território, a ex-colônia espanhola tem produto interno bruto cinco vezes maior que o Haiti, herdeiro da metade francesa. Mas nem sempre foi assim. Até o século 18, Santo Domingo (o lado espanhol) era mais pobre e foi quase abandonado. A região virou um país em 1845 com o nome de República Dominicana. Se no Haiti o processo de independência incluiu guerras e conflitos raciais, que arrasaram as plantações e isolaram o país, do outro lado da fronteira, a República Dominicana enfrentou bem menos problemas. O novo país manteve no poder uma elite agrária que passou a negociar com parceiros externos. Na segunda metade do século 19, as abolições de escravos e independências de ex-colônias eram bem vistas pelos Estados Unidos e pela Inglaterra, de quem a República Dominicana passou a receber apoio financeiro.
No século 20, no entanto, a história da República Dominicana foi abalada por dois períodos de ocupação americana (de 1916 a 1924 e de 1965 a 1966) e pela ditadura de Rafael Trujillo (1930-1961). Na década de 70, o país passou por reformas que impulsionaram a economia e trouxeram ganhos na área social. Hoje, é uma democracia estável e sua economia está baseada na exploração de níquel, cana-de-açúcar e turismo. Não que a situação dominicana seja lá uma maravilha. O país sofre desde 1998 com uma séria crise no setor energético. Durante os Jogos Pan-Americanos, realizados em Santo Domingo (a capital do país), em agosto do ano passado, atletas do continente sentiram na pele o que é ficar 20 horas por dia sem luz.
Vodu e política
O vodu, sincretismo religioso entre o catolicismo dos colonizadores franceses e as crenças religiosas dos escravos africanos, surgiu em meados do século 18 no Haiti. Similar ao candomblé, o vodu foi uma das formas encontradas pelos cativos negros, 95% da população na época, de unir coesão cultural e resistência.
A religião desempenhou um papel fundamental nos primeiros anos da revolta que culminou na independência. “O vodu era o meio de conspiração. Apesar das proibições, os escravos viajavam quilômetros para cantar, dançar, praticar seus ritos e conversar; e então, desde a revolução, escutar as novidades políticas e traçar seus planos”, afirma C.L.R. James no clássico Os Jacobinos Negros, publicado em 1938. Para James, os cultos eram desprezados pelos senhores de engenho e os escravos aproveitaram-se disso para se reunir e organizar o movimento. Um dos líderes, Boukman, era um papaloi, ou seja, um alto sacerdote. Ele comandou a queimada de plantações e assassinatos de senhores de engenhos por meio de cerimônias religiosas em várias localidades.
Mas, após a independência, o culto foi suprimido pelos governantes, eles mesmos ex-escravos e líderes da luta anti-colonial. Entre 1815 e 1860, a crença voltou a ser praticada publicamente com a anuência dos novos governantes. Mas, a partir do fim do século 19, a Igreja Católica iniciou uma campanha contra a prática religiosa.
Ela culminou numa caça às bruxas na década de 40, quando os praticantes foram impedidos de realizar seus cultos.
Com o fracasso da perseguição, a Igreja local decidiu tolerar o sincretismo.
Durante o governo de Papa Doc, que era um ardoroso seguidor, o vodu foi usado para cooptação de partidários. Hoje, a prática está intimamente ligada ao movimento camponês, com tendências reformistas. Apesar de ainda ser a crença de 80% dos haitianos, o vodu vem sendo ameaçado pelo rápido crescimento das igrejas pentecostais entre a população urbana.
Saiba mais: Livros
Os Jacobinos Negros, C.L.R. James, Boitempo, 2000 - Relato fluente sobre a revolução haitiana e a escravidão nas Américas.
From Dessalines to Duvalier: Race Colour and National Independence in Haiti, David Nicholls, Rutgers, 1995 - Mostra como os conflitos entre mestiços e negros pontuaram a história do país.
A Turbulent Time: The French Revolution and the Greater Caribbean, David Geggus e outros, Indiana University Press, 2003 - Geggus mostra como os ideais revolucionários franceses influenciaram a revolta haitiana.
Revista Aventuras na História n° 009
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