George Lucas encerra a
maior saga de todos os tempos. Entenda por que Guerra nas Estrelas virou
religião e mudou o curso da história do cinema.
Quantos anos você tinha em 1977, quando Guerra nas Estrelas
ganhou as telas mundo afora? Já era adulto, adolescente ou ainda nem tinha
nascido? Não importa. Independente da sua idade, você, como toda a galáxia,
conhece a saga criada pelo diretor americano George Lucas. E, você, assim como
o resto do planeta, sabe – ou pelo menos ouviu falar – o nome dos personagens
dessa odisséia que mudou o curso da história do cinema: Darth Vader, Luke
Skywalker, Obi-Wan Kenobi, princesa Leia, Yoda, C-3PO, R2-D2, Chewbacca... Para
os mais, digamos, exagerados, Guerra nas Estrelas virou até religião.
Literalmente. No último censo dos Estados Unidos, milhares de americanos
declararam ser da religião “jedi”. Na Inglaterra, os “Cavaleiros de Jedi”
ganharam reconhecimento oficial por parte das autoridades desde o censo de
2001. Às vésperas do lançamento mundial de A Vingança dos Sith, até segunda
ordem o último filme da saga, só nos resta perguntar: por que, em nome de
“jedi”?Muito latim já se gastou nas últimas três décadas para explicar o êxito da saga. Mas só uma coisa é certa: o fanatismo em torno de Guerra nas Estrelas não tem explicação única – e muito menos óbvia. O melhor a fazer para entender o fenômeno George Lucas é partir do princípio – bem do princípio, quando o diretor tinha apenas 27 anos e alguns poucos filmes na bagagem (veja quadro na página 40). O primeiro roteiro – 13 páginas, exatamente – foi escrito em 1972. Na época, a história que o nerd californiano começava a rascunhar, ambientada em uma galáxia muito, muito distante e repleta de heróis de matinê, era um corpo estranho em Hollywood. O cinema vivia, então, tempos sisudos. A indústria cinematográfica transformava temas polêmicos em sucessos de bilheteria, motivada pela revolução comportamental dos anos 60 e pela crise de consciência americana gerada pela Guerra do Vietnã.
Gêneros clássicos, como o western, o musical e o filme de gângster, estavam sendo revistos sob um novo código, em filmes como Butch Cassidy, Cabaret, Bonnie & Clyde e O Poderoso Chefão. Temas urbanos, urgentes, repletos de uma nova realidade das ruas americanas, nada idealizada, eram vistos em produções como Um Dia de Cão e Taxi Driver. Discutia-se política, poder e comportamento em sucessos que vão de A Primeira Noite de um Homem a Annie Hall, de Todos os Homens do Presidente a Rede de Intrigas, de Um Estranho no Ninho a Cada um Vive Como Quer. O tipo perturbado, desajustado e rebelde, personificado em astros como Jack Nicholson, Al Pacino, Dustin Hoffman e Robert DeNiro, era o anti-herói preferido de diretores contestadores como Sidney Lumet, Mike Nichols, Milos Forman e Bob Rafelson.
Nesse cenário, a proposta de Lucas parecia – perdoem o trocadilho – coisa de outro planeta. Seu único recurso, então, foi usar a lábia para tentar convencer os executivos das majors, as empresas distribuidoras herdeiras do sistema de estúdio, que vinham dominando o cinema americano desde meados dos anos 10. O argumento era simples: “toda uma geração está crescendo sem ter acesso a nenhum tipo de conto de fadas, um gênero importante para que as crianças possam aprender a distinguir entre bem e mal, entre certo e errado”, repetia. Ao escrever o roteiro, Lucas teve como maior influência o livro O Herói de Mil Faces, de Joseph Campbell, um ensaio sobre os mitos dos mais diferentes povos. “Com Guerra nas Estrelas, eu conscientemente tenho fixado minha idéia sobre recriar mitos e motivos mitológicos clássicos”, afirmou o diretor numa famosa entrevista ao jornalista Bill Moyers, na revista Time.
Só para esclarecer: o herói de Lucas, Campbell, parte do pressuposto de que grandes histórias são sempre baseadas na “jornada do herói”, onde o protagonista, inicialmente vivendo em um “mundo comum”, recebe um “chamado à aventura”. Após uma recusa inicial e quase sempre contando com uma “ajuda superior”, ele parte para uma jornada repleta de provações, tentações e obstáculos, até que retorna, triunfante, como um “senhor de dois mundos”. Guerra nas Estrelas transpunha essa estrutura para um universo atemporal e distante, onde um bando de rebeldes lutava com sabres de luz e naves espaciais contra um poderoso Império do Mal. Sendo que o bando de rebeldes incluía um fazendeiro jeca, uma princesa guerrilheira, um mercenário simpático e seu ajudante peludo, uma espécie de duende sábio, um espadachim da terceira idade e dois robôs atrapalhados, que se valiam da crença numa certa Força espiritual para combater aqueles que dominavam o lado negro dessa mesma Força. “Eu pus a Força para tentar despertar um certo tipo de espiritualidade em pessoas jovens – mais uma convicção em Deus do que uma convicção em qualquer sistema religioso”, disse à revista Time.
A Universal, que financiara o segundo longa de Lucas, American Graffitti, e a United Artists, distribuidora de grande parte dos filmes mais parrudos de então, desconversaram. Mas Alan Ladd Jr., da Fox, resolveu apostar no garoto e arranjou-lhe 50 mil dólares para desenvolver o projeto. Depois de várias alterações no roteiro – o tratamento original sequer incluía o personagem Darth Vader – Lucas tinha um calhamaço de 200 páginas nas mãos. Teve de cortar. E desenvolveu apenas uma pequena parte de todo o universo que criara, com a esperança de que um primeiro sucesso talvez possibilitasse a continuação da saga. No início de 1977, às vésperas da estréia do que viria a ser conhecido como Guerra nas Estrelas – Episódio IV: Uma Nova Esperança, a incerteza era geral. Os executivos estavam preocupados porque o filme havia estourado em 3 milhões de dólares seu orçamento inicial de 8 milhões, um custo mediano para a época. Filas quilométricas nas portas dos cinemas no dia da estréia, no entanto, derrubaram todos os medos.
Guerra nas Estrelas arrecadou 461 milhões de dólares em solo americano (a segunda maior bilheteria de todos os tempos, perdendo apenas para Titanic, em 1997), e 780 milhões de dólares em todo o mundo (a 13ª maior bilheteria, tendo segurado o primeiro posto até 1996, quando foi batida por Jurassic Park). Uma empresa de médio porte que havia assegurado a produção de bonecos baseados nos personagens do filme não deu conta do recado e teve que vender cupons prometendo a entrega dos brinquedos para meses depois. Com algumas semanas de exibição, fãs caracterizados como personagens do filme começaram a aparecer nas filas dos cinemas, iniciando uma onda de fã-clubes que chega hoje a dezenas de milhares em todo o mundo. Se os mitos sempre foram importantes para a construção da identidade dos povos em diferentes épocas, talvez o fenômeno Guerra nas Estrelas se explique porque, pela primeira vez na história, uma mitologia se construiu numa escala universal de valores e foi explorada em todas as suas possibilidades de consumo de massa. E, isso, empacotado com um novo universo visual, totalmente fascinante para a época.
Depois do filme, a própria indústria cinematográfica nunca mais foi a mesma. Como a história da humanidade, o cinema pode ser dividido em períodos: a Pré-História, com seus filmes de um rolo (máximo de 10 minutos) exibidos em qualquer buraco onde se acumulasse uma platéia ávida por novidades; a Era Clássica, iniciada por Nascimento de uma Nação (1915), de D.W. Griffith, que sintetizou a gramática cinematográfica, e a Era Moderna, inaugurada pelas invencionices do menino-prodígio Orson Welles, em Cidadão Kane (1941). Com a saga Guerra nas Estrelas, teve início o que podemos chamar de Era Contemporânea, com produções repletas de efeitos especiais, ação ininterrupta, continuações, altos orçamentos e com um olho na bilheteria e outro na indústria de licenciamentos e merchandising.
Paradoxalmente, esse fenômeno fortaleceu um sistema que a geração de Lucas se empenhava em derrubar, dando novo fôlego para que as majors alcançassem um domínio e uma lucratividade no mercado mundial nunca vistos. Essas empresas viviam então um impasse mercadológico: tinham perdido o faro para o cinema de entretenimento, gerando uma brecha que possibilitou o surgimento de toda uma geração de cineastas contestadores, que se aproveitaram para impor um novo estilo de fazer filmes. Guerra nas Estrelas deu de bandeja a fórmula para o contra-ataque, mas é injusto culpar o filme por tudo que aconteceu depois. A crise das majors tinha derrubado o preço de suas ações, permitindo sua aquisição, a partir de meados dos anos 70, por grandes conglomerados, com muito dinheiro para ser gasto e centro de decisões difuso, onde fórmulas que permitiam horizontalizar os lucros – como a “inventada” por Guerra nas Estrelas – eram um bálsamo. Mas Lucas jamais colocou os filmes seguintes da série – O Império Contra-Ataca (1980), O Retorno de Jedi (1983), A Ameaça Fantasma (1999) e O Ataque dos Clones (2002), a serviço de um ideário corporativo, fato muito comum nos anos 80, quando filmes como Rambo ou Top Gun eram a clara tradução do espírito belicista da Era Reagan, disfarçados sob o signo de muita ação e efeitos especiais.
As vésperas do lançamento mundial de A Vingança dos Sith, Lucas lidera uma outra revolução, talvez inaugurando uma nova era: a Era Digital, cujo marco inicial é justamente o episódio anterior, O Ataque dos Clones, rodado em sistema HDTV (vídeo digital de alta definição) sem qualquer utilização de película cinematográfica. Produzido a um custo de 115 milhões de dólares e com um número recorde de 2300 planos contendo, cada um, pelo menos um efeito especial, A Vingança dos Sith revelará finalmente como o jovem Anakin Skywalker se transformou no vilão Darth Vader e mostrará o nascimento de seus filhos, os futuros heróis Luke e Leia. A produção trará também todo um exército de Wookiees – a raça do carismático assistente de Han Solo, Chewbacca – para alegria dos fãs, além do ansiosamente esperado duelo de sabres entre Anakin e Obi-Wan Kenobi.
O bem contra o mal
Velhos mitos ganham
roupa nova e viram os deuses e os diabos dos jovens.Yoda
É a voz da sabedoria. Ele representa o mestre supremo das artes que caracterizam um jedi: controle total do corpo e da mente. Um buda de outra galáxia.
Luke Skywalker
Guerreiro corajoso, que vive um dilema: empunhar a espada do bem ou se bandear para o lado do pai, o vilão Darth Vader. Versão moderna de Aquiles, o guerreiro da Ilíada.
Obi-Wan Kenobi
Mestre de duas gerações de skywalkers. Ele tem uma vida tumultuada, repleta de lutas intermináveis pela justiça. É inspirado nos samurais.
Palpatine
O senhor das forças negativas. Ele atravessa a saga promovendo a discórdia e a morte. Foi inspirado em Nosferatu, o vampiro.
Stormtrooper
Os stormtroopers formam o grosso das forças do Império em toda a galáxia. São o braço armado do mal.
Darth Vader
É o maior representante do “lado escuro da Força”. Quem é ele na mitologia? Saturno, o Deus romano que devorou os próprios filhos.
Super-herói ou vilão?
Com Guerra nas Estrelas,George Lucas inventou o merchandising e o licenciamento no cinema.
Parte de uma geração egressa das escolas de cinema nos anos 1960, George Lucas vivia um momento crucial em sua carreira quando começou a escrever Guerra nas Estrelas. Após o fracasso da ficção científica THX 1138, ele se preparava para lançar um filme de baixo orçamento, American Graffitti, feito sob a desconfiança dos estúdios e a bênção de seu ex-sócio Francis Ford Coppola, que se estabelecia como novo menino-prodígio com o sucesso de O Poderoso Chefão. Lucas sabia que um novo fracasso poderia enterrar suas pretensões como diretor de cinema, aliás nada modestas: ele fazia parte de uma turma que, assumidamente, pretendia “transformar o sistema por dentro”. Ou seja, instaurar um novo equilíbrio no jogo de poder entre as majors e os realizadores independentes. Contrariando as expectativas, American Graffitti, que mostrava uma noite na vida de um grupo de adolescentes na cidade natal do diretor, fez um baita sucesso. Tendo custado 770 mil dólares, faturou cinco indicações ao Oscar e 115 milhões de dólares só nas bilheterias americanas. O sucesso deu a “Força” que Lucas precisava para buscar financiamento para seu novo projeto. Quando Guerra nas Estrelas explodiu, o cineasta tinha dado um nó nos executivos da Fox: ao negociar seu contrato, topara um salário de “apenas” 150 mil dólares e uma participação nos lucros reduzida a 40% em troca de manter 100% dos direitos de merchandising do filme. Com isso, Lucas lucrou mais de 3 bilhões de dólares com a venda de brinquedos, camisetas, games, bonés, pôsteres e outros produtos ilustrados pelos personagens da saga. E, desde então, direitos de merchandising se tornaram a parte mais importante dos contratos na grande indústria. Os detratores de Lucas o acusam de ser uma espécie de Darth Vader: alguém que se rendeu ao lado negro da “Força”, salvou o Império Galáctico do cinema hegemônico, infantilizou as platéias e atirou aqueles cineastas preocupados em realizar um cinema voltado para audiências adultas em uma resistência tão patética quanto a do pequeno grupo que se junta em torno do capiau Luke Skywalker com a missão de destruir a Estrela da Morte. Seus defensores (tirando os mais fanáticos, para quem Lucas tem poderes superiores ao próprio Mestre Yoda) contra-atacam: compará-lo a Vader seria o equivalente a comparar os Beatles aos Malvados Azuis (os vilões de “Yellow Submarine”) e dizer que eles infantilizaram a música, só porque souberam faturar em cima de faro mercadológico. Afinal de contas, como bem demonstram as artimanhas políticas em O Ataque dos Clones e a redenção final de Vader em O Retorno de Jedi, a linha entre Bem e Mal não é assim tão clara. A meta de “transformar o sistema por dentro” se cumpre por vias tortas: Lucas é hoje um cineasta totalmente independente.
Aventuras na História
n° 022
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