Lira Neto
Ousado na literatura e
conservador na política, José de Alencar não gosta de falar sobre si mesmo. Um
mês antes de morrer, ele recebeu nosso repórter para uma áspera e breve
conversa.
Bem que me avisaram que ele era um sujeito de poucos amigos.
Mas quando me dirigi ao número 50 da rua Guanabara, no Rio de Janeiro, tinha
sinceras esperanças de colher, da boca do próprio José de Alencar, informações
inéditas para o livro que estava escrevendo sobre ele. Dona Georgiana, esposa
do grande escritor romântico brasileiro, já me advertira que o marido não
estava muito à vontade com essa história de ser retratado em uma biografia.
Mesmo assim, insisti em bater-lhe à porta, naquela tarde de novembro de 1877. O
autor de O Guarani sequer convidou-me a entrar: recebeu-me no jardim de casa,
vestindo negro da cabeça aos pés. Durante alguns segundos, hesitei antes de lhe
estender a mão, amedrontado pela conhecida tuberculose que o consumia há meses.
Alencar encarou toda a entrevista como uma ferrenha contenda. Morreria um mês
depois, aos 49 anos, sem ver meu livro publicado – o que certamente me poupou
de ser, novamente, vítima de sua virulência.
O senhor é filho de um padre. Mesmo depois de violar o voto
de castidade, seu pai continuou exercendo o sacerdócio. Esse estigma contribuiu
para que o senhor fosse uma criança tímida, que encontrou nos livros o refúgio
contra os que zombavam dessa nódoa familiar?
José de Alencar – Meu rapaz, advirto-lhe desde já que a vida
privada carece da penumbra e do recato. Posso assegurar, apesar disso, que não
receio de modo algum que a devassem. Não encontrarão nela nada que me desonre.
Não admito, porém, que se lancem palavras vãs contra um dos mais nobres
caráteres que este país já produziu: meu pai, o grande senador Alencar.
Apenas queria saber o quanto essa circunstância familiar
contribuiu para a formação de sua personalidade...
Realmente, há na existência dos escritores fatos comuns, do
viver cotidiano, que todavia exercem uma influência notável em seu futuro e
imprimem em suas obras o cunho individual. Mas não é esse o caso. Deixemos de
bisbilhotices biográficas. Passemos logo à próxima pergunta.
O senhor nasceu em uma família de revolucionários. Não
considera uma espécie de traição histórica sua militância no Partido
Conservador?
De fato, tive como berço o mais puro liberalismo brasileiro.
Minha infância política, também é verdade, foi liberal. O sentimento não mudou,
mas a razão se esclareceu. Outrora, liberdade para mim era a eletricidade da
multidão. Hoje considero a verdadeira liberdade a felicidade calma e tranquila
do povo. Pensando bem, considero-me bem mais liberal do que o senhor, que me
recusa o direito de pertencer a um partido porque este não foi o partido de
meus antepassados. Ao contrário do que deve ocorrer com o nobre repórter, não
admito a herança de convicções.
Na tribuna da Câmara dos Deputados, o senhor sempre se
distinguiu por condenar as propostas para a libertação dos escravos. Não acha
que os negros merecem ser livres, iguais àqueles que nasceram com a pele
branca?
Não posso, de modo algum, apoiar uma política que tende a
precipitar uma revolução social. É uma questão de princípios: sou a favor da
evolução, nunca da revolução. Não basta dizer à criatura: “Tu és livre, vai,
percorre os campos como uma besta fera!” Não, meu caro, é preciso esclarecer a
inteligência embotada, elevar a consciência humilhada, para que um dia, no
momento de conceder-lhe a liberdade, possamos dizer: “Vós sois homens, sois
cidadãos!” As reformas são lentas, não são cogumelos, que nascem nas primeiras
águas da chuva.
Muitos acham curioso que, apesar de político conservador, o
senhor seja também um escritor inovador para os padrões da sua época. Como o
deputado José de Alencar convive, no mesmo corpo, com o autor de folhetins e de
comédias teatrais?
Essa suposta contradição é outra bobagem que tem sido usada
com freqüência contra minha pessoa. Procuram pôr luz sobre o escritor para
desqualificar o deputado. Na Câmara, alguns nobres colegas acusam-me de
“conviva das musas”. Não acho que exista um Alencar à parte do outro. Minha
literatura é essencialmente nacionalista, assim como meu desempenho
parlamentar. Nos dois campos, defendo o Brasil. Aquela contradição que o senhor
me atribui é apenas o resultado, não direi de sua ignorância, mas da
precipitação com que me faz suas indagações.
O senhor tem fama de colecionar inimigos. Concorda com os
que lhe atribuem a pecha de “encrenqueiro”?
A inteligência é uma ave altaneira, que plana nas regiões
elevadas do pensamento. Não se abate aos ataques pequeninos que sofro e que
são, se o senhor me permite o que talvez considere uma frase de folhetim,
bicadas de tico-tico. Já se referiram por aí, de forma pejorativa, a tudo o que
me diz respeito: meu nascimento, meus hábitos higiênicos, minhas obras
literárias e até meu físico pouco avantajado. Não sou encrenqueiro, como
imagina o senhor. Apenas revido, com elegância e com estilo, às pedradas que me
são atiradas sem elegância.
Mas...
Sem mais, meu caro. No certame das idéias, onde combatem as
inteligências, assim como nos duelos dos antigos cavalheiros, deve-se manter
certa cortesia, certa moderação nas expressões que mutuamente empregam os
contendores. Se eu tivesse uma organização robusta, seria um homem de ação. Mas
minha organização débil fez-me um homem de idéias. O país precisa de ambos: os
primeiros dirigem o presente, os segundos preparam o futuro. Passe bem, meu
jovem. Tenho mais o que fazer.
Aventuras na História n° 032
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