Mauro Tracco
Há 70 anos, a cidade basca de
Guernica foi vítima do primeiro grande bombardeio moderno. A destruição,
orquestrada pelos nazistas, serviu de ensaio para os horrores da Segunda Guerra.
Tradicionalmente,
a semana em Guernica começava com uma feira livre. Naquela segunda-feira, 26 de
abril de 1937, agricultores dos arredores da pequena cidade basca vendiam os
frutos de seu trabalho na praça principal. Às 16h30, um único badalar do sino
da igreja anunciou a incursão aérea. Dez minutos depois, vieram as bombas.
Guernica ficou arrasada – e o mundo foi apresentado ao poder dos ataques aéreos
sistemáticos, que se tornariam comuns poucos anos mais tarde, durante a Segunda
Guerra Mundial.
Na época do
bombardeio, a Espanha vivia a Guerra Civil. Após um fracassado golpe militar
contra o governo do socialista Francisco Largo Caballero, em 1936, as tropas do
general Francisco Franco não desistiram de tomar o poder. Divididos, os
espanhóis passaram a se enfrentar em diversos pontos do país. Os combatentes
leais ao governo de esquerda, chamados de republicanos, contavam com o apoio da
União Soviética. Já as forças de Franco, os nacionalistas, tiveram a ajuda da
Itália fascista de Benito Mussolini e da Alemanha nazista de Adolf Hitler.
Desde o
início, Franco havia tentado conquistar Madri. Em abril de 1937, a capital
ainda não havia caído e o general decidiu optar por um alvo mais fácil: o norte
espanhol. As regiões de Astúrias e Santander e as províncias do País Basco
estavam em péssima situação militar. Lá, a força aérea dos republicanos era
inexistente. Os céus estavam abertos para as bombas nacionalistas.
Guernica, no
País Basco, era habitada por apenas 6 mil pessoas. Não possuía defesa, nem
qualquer alvo militar, salvo a ponte sobre o rio Mundaca, cuja destruição
poderia dificultar uma retirada do exército basco. Apesar da insignificância
estratégica da cidade, seu centro foi alvo do até então mais violento ataque
aéreo da história. Mas por quê? Nada de mais. Para os nazistas, foi apenas um
teste.
Os
protagonistas do ataque a Guernica foram aviadores alemães, com a ajuda –
muitas vezes desajeitada – de pilotos italianos. Hermann Goering, comandante da
Luftwaffe (a força aérea alemã), revelou em 1946, durante julgamento no
Tribunal de Nuremberg, que Guernica foi um estupendo laboratório para ensaiar
sistemas de bombardeios com projéteis explosivos e incendiários em uma cidade
aberta. O resultado da mórbida experiência se tornou o episódio mais lembrado
da Guerra Civil.
Símbolo de autonomia
Guernica não
foi a primeira vítima da temida Legião Condor, a unidade militar enviada por
Hitler à Espanha. Embora com menos intensidade, as cidades de Durango e Éibar
já haviam sido bombardeadas. Mas, além de ter sido acertada com mais violência,
Guernica tem uma enorme importância simbólica para o povo basco, que vive no
norte da Espanha e no sul da França. A destruição mexeu com os brios desse
milenar grupo étnico. Na Idade Média, Guernica foi a vila onde se reuniam as
Juntas Gerais (espécie de conselho político) de Biscaia, região habitada pelos
bascos. Sob uma árvore do século 14, o Carvalho de Guernica, os monarcas
espanhóis juravam lealdade aos Foros Bascos, um conjunto de leis que regulamentava
os costumes e os direitos desse povo. Isso mantinha vivo o respeito da Espanha
pelos bascos.
A árvore
durou 400 anos. No século 19, após sua morte, outro carvalho foi plantado no
local. Mas, tempos depois, o governo espanhol resolveu deixar de respeitar os
Foros Bascos. Na virada do século 20, o povo basco intensificou seu
nacionalismo, pregando até a separação da Espanha. Em outubro de 1936, no
início da Guerra Civil, o governo republicano fechou um acordo que dava
autonomia ao País Basco (que inclui, além de Biscaia, as províncias de Álava e
Guipúzcoa). Durante todo esse tempo, Guernica se manteve como uma referência
para a região.
“Os alemães
deviam estar cientes dessa importância, mas não acho que isso tenha sido
determinante na escolha de Guernica como alvo. Provavelmente a teriam atacado
de qualquer jeito”, afirma Félix Luengo, diretor do Departamento de História
Contemporânea da Universidade do País Basco. O general Franco, no entanto,
certamente enxergou em Guernica uma boa oportunidade de humilhar o povo basco,
visto como traidor da causa nacionalista. E, no dia do bombardeio, a cidade
abrigava pelo menos mil refugiados, vindos de localidades espanholas que já
tinham sido atacadas pelo exército de Franco.
Roteiro macabro
O
planejamento do bombardeio é atribuído a Wolfram von Richthofen, então chefe do
Estado-Maior das Forças Armadas alemãs (e primo do Barão Vermelho, lendário
piloto da Primeira Guerra). Tudo começou com um único Dornier Do-17, de
fabricação alemã. Ele veio do sul e soltou cerca de uma dúzia de bombas de 50
quilos no centro da cidade. As pessoas que estavam na feira correram para
abrigos, fazendas e bosques. Após completar a missão, o Dornier voltou para a
base. No percurso, cruzou com três Savoia-79 italianos que chegaram a Guernica
instantes depois. A patrulha sobrevoou a cidade por um minuto. Tempo suficiente
para soltar 36 bombas de 50 quilos. Quando se retiraram, os danos causados
ainda eram relativamente pequenos. Apenas alguns prédios haviam sido atingidos,
como o quartel-general dos republicanos e a igreja de San Juan.
Às 16h45
começou a terceira onda de bombardeios, executada por um Heinkel-111 alemão
escoltado por cinco caças Fiat CR-32 italianos. Às 17h e às 18h, outros dois
Heinkel despejaram sua carga explosiva sobre Guernica. Caso os ataques tivessem
parado por aí, já seria um castigo excessivo para uma cidade que, até então,
havia sido poupada da guerra. Mas o pior ainda estava por vir.
Três
esquadrões de Junkers Ju-52 alemães, carregados com projéteis explosivos de até
250 quilos e bombas incendiárias, chegaram a Guernica escoltados por caças Fiat
e Messerschmitt Bf-109, o orgulho da aviação nazista. Às 18h30, o primeiro
esquadrão de Ju-52 iniciou sua ação. Enquanto a carga dos bombardeiros destruía
e incendiava os prédios de Guernica, os caças metralhavam civis indefesos que
fugiam. Por cerca de três horas, 40 aviões participaram do massacre.
Logo após a
destruição de Guernica, George Steer, correspondente do jornal inglês The
Times, notou que o único alvo estratégico da cidade, a ponte sobre o rio
Mundaca, ainda estava intacto. Steer percebeu que a prioridade dos nazistas não
tinha sido causar danos militares. “O objetivo do bombardeio parece ter sido
desmoralizar a população civil e destruir o berço da raça basca”, escreveu.
Na época, o
número de mortos divulgado passava de 1600. Hoje em dia, é consenso que o
número foi bem menor. Um estudo do historiador espanhol Jesús Salas Larrazábal
identificou nome e sobrenome de apenas 120 mortos. “O número de vítimas fatais
deve ter sido em torno de 200, mas desde o primeiro momento foram difundidos
dados exagerados do total de mortos. Isso multiplicou o impacto da notícia”,
diz o basco Félix Luengo.
O general
Franco certamente não esperava que o ataque despertasse tamanha comoção na
opinião pública internacional. Correspondentes estrangeiros que cobriam a
guerra na Espanha visitaram o local do bombardeio na mesma noite e no começo da
manhã seguinte. Em poucos dias, o mundo começou a ler nos jornais a história do
horror em Guernica. A indignação foi tamanha que franquistas e nazistas
trataram de negar a operação. Em 29 de abril, a imprensa favorável a Franco
chegou ao cúmulo de dizer que a maior parte dos danos a Guernica havia sido
causada por incendiários bascos, para indignar a população e aumentar o
espírito de resistência.
A Guerra
Civil acabou em 1939, com a vitória de Franco. Ele assumiu o poder e, como era
de esperar, suprimiu a autonomia dos bascos. Aliás, durante sua ditadura, dizer
que Guernica tinha sido bombardeada podia até dar cadeia. Em 1967, um jovem
sacerdote da cidade de Navarra foi julgado em Madri pela “calúnia” de ter
escrito que Guernica havia sido destruída pela força aérea nacionalista.
Alguns
estudiosos espanhóis, como Onésimo Diaz, professor de História da Universidade
de Navarra, não discutem a violência do ataque, mas acreditam que não foi isso
que colocou Guernica na história. “Se não fosse pelo quadro homônimo de
Picasso, Guernica não teria tido mais repercussão que outras cidades
bombardeadas”, afirma. Poucos anos depois, o que acontecera naquele 26 de abril
se tornaria tragicamente comum. Em setembro de 1939, o mesmo Von Richthofen
comandou o bombardeio nazista de Varsóvia, na Polônia, no primeiro mês da
Segunda Guerra. Durante o conflito, os dois lados usariam aviões para arrasar
cidades inteiras, matando dezenas de milhares de pessoas por vez. O fim da
Segunda Guerra, aliás, só chegaria em 1945, quando as japonesas Hiroshima e
Nagasaki viraram pó sob bombas atômicas despejadas por aviões americanos.
Após o
bombardeio de Guernica, restou ao povo basco o consolo de ver que o carvalho
plantado no século 19 não tinha sido atingido – foi salvo por estar longe do
centro da cidade. Em 1979, quatro anos após a morte de Franco, a árvore ainda
estava viva para acompanhar o tratado que devolveu a autonomia para o País
Basco. O velho carvalho morreu após uma estiagem em 2003. Mas cedeu seu lugar à
terceira árvore do mesmo tipo – que, impávida, segue a celebrar a autonomia
basca.
Asas da morte
Conheça os
aviões alemães e italianos que participaram do ataque a Guernica.
Dornier
DO-17 E
Com sua
fuselagem estreita, o bombardeiro era conhecido como “lápis voador”. Foi um
deles que soltou as primeiras bombas em Guernica. Serviu os nazistas nos três
primeiros anos da Segunda Guerra.
Comprimento:
16,25 m
Envergadura:
18 m
Peso máximo:
7040 kg
Velocidade
máxima: 355 km/h
Armamento: 4
metralhadoras de 7,9 mm
Carga de
bombas: 750 kg
Fiat CR-32
Bis
Caça
responsável pela escolta dos Junkers em Guernica, foi tão bem-sucedido na
Espanha que a Itália achou desnecessário modernizar sua frota. Na Segunda
Guerra, o CR-32 foi presa fácil para os caças ingleses.
Comprimento:
7,45 m
Envergadura:
9,5 m
Peso máximo:
1865 kg
Velocidade
máxima: 341 km/h
Armamento: 4
metralhadoras (2 de 12,7 mm e 2 de 7,7 mm)
Carga de
bombas: 100 kg
Heinkel
HE-51 B1
Durante a
Guerra Civil, esse caça alemão, usado para metralhar a população de Guernica,
foi inferior aos aviões russos dos republicanos. Por isso, não foi usado na
Segunda Guerra.
Comprimento:
8,4 m
Envergadura:
11 m
Peso máximo:
1895 kg
Velocidade
máxima: 330 km/h
Armamento: 2
metralhadoras de 7,9 mm
Heinkel
HE-111 B
O
bombardeiro médio que atuou na terceira onda de ataques à vila basca foi uma
das principais máquinas da Luftwaffe no começo da Segunda Guerra. Destacou-se
durante os ataques contra a Inglaterra, em 1940.
Comprimento:
16,4 m
Envergadura:
22,6 m
Peso máximo:
10000 kg
Velocidade
máxima: 370 km/h
Armamento: 3
metralhadoras de 7,9 mm
Carga de
bombas: 1500 kg
Junkers
JU-52/3M
A maior
parte das bombas que destruíram Guernica saiu de Junkers Ju-52. Mas, durante a
Segunda Guerra, ele foi empregado principalmente como avião de transporte e
lançamento de pára-quedistas.
Comprimento:
18,9 m
Envergadura:
29,24 m
Peso máximo:
10500 kg
Velocidade
máxima: 277 km/h
Armamento: 3
metralhadoras de 7,9 mm
Carga de
bombas: 1500 kg
Messerschmitt
BF-109 B
Considerado
por muitos como o maior caça de todos os tempos, combateu em todas as frentes
da Segunda Guerra, do início ao fim. Em Guernica, seus pilotos metralharam os
civis que fugiam das explosões.
Comprimento:
8,7 m
Envergadura:
9,9 m
Peso máximo:
2197 kg
Velocidade
máxima: 465 km/h
Armamento: 2
ou 3 metralhadoras de 7,9 mm
Savoia-Marchetti
CM 79-I
A patrulha
encarregada de destruir a ponte sobre o rio Mundaca era composta por esses
bombardeiros médios italianos, mas os pilotos erraram feio o alvo. O Savoia 79
foi usado como bombardeiro e torpedeiro na Segunda Guerra.
Comprimento:
15,8 m
Envergadura:
21,2 m
Peso máximo:
10480 kg
Velocidade
máxima: 430 km/h
Armamento: 4
metralhadoras (3 de 12,7 mm e 1 de 7,7 mm)
Carga de
bombas: 1250 kg (ou 1 torpedo)
Legionários nazistas
Hitler
enviou 16 mil homens à Espanha
A Guerra
Civil Espanhola não poderia ter vindo em melhor momento para os alemães. Eles
puderam aperfeiçoar táticas e equipamentos que, pouco depois, seriam usados na
Segunda Guerra Mundial. Entre os 16 mil homens enviados por Hitler durante todo
o conflito, havia unidades do Exército e da Marinha, mas os aviadores eram
maioria. A força de intervenção, batizada de Legião Condor, foi decisiva para a
vitória dos nacionalistas do general Franco. A Legião Condor foi oficialmente
criada em novembro de 1936, mas os primeiros aviões alemães entraram em ação
antes disso. Em agosto, uma operação levou até Sevilha 14 mil soldados de
Franco que haviam ficado isolados no Marrocos – o feito ficou conhecido como a
primeira “ponte aérea” da história militar. Apesar de ter feito diversas
missões de apoio a tropas terrestres, a Legião se destacou mesmo por seus
bombardeios. Enquanto teóricos militares da época debatiam a eficácia de
ataques aéreos, os alemães testavam isso na prática.
Bascos sem Guernica
Obra-prima
de Picasso não foi liberada para o aniversário do bombardeio.
Há um ano, o
governo basco solicitou ao Ministério da Cultura da Espanha o empréstimo do
quadro Guernica, de Pablo Picasso. O objetivo era expô-lo no museu Guggenheim
de Bilbao durante a cerimônia dos 70 anos do bombardeio, completados em abril
de 2007. Assim que soube do pedido, a ministra espanhola da Cultura, Carmen
Calvo, avisou que o quadro não sairia do museu Reina Sofía, em Madri. “Eu não
faço política com peças do patrimônio público espanhol”, defendeu a ministra.
Revoltada, a porta-voz do governo basco, Miren Azkarate, afirmou não entender
por que uma obra que já viajara meio mundo não poderia fazer um curto traslado
de ida e volta. No fim das contas, os bascos verão apenas uma reprodução do
quadro, exposta na praça dos Foros, em Guernica (a 30 quilômetros de Bilbao).
Guernica foi pintado ainda durante a Guerra Civil. Em janeiro de 1937, o
governo republicano pediu a Picasso que fizesse um quadro para decorar o
pavilhão espanhol da Exposição Internacional de Paris. O objetivo era fazer
propaganda contra a insurreição liderada por Franco. Comunista, o pintor
espanhol aceitou a tarefa. Só não sabia o que colocar na tela. Isso mudou no
fim de abril, quando jornais franceses publicaram fotos do que restara da vila
basca. Picasso, que morava em Paris, finalmente encontrou o tema para sua obra.
Em 1º de maio, apenas cinco dias após o ataque, ele fez os primeiros esboços.
Trabalhando de forma fervorosa, ele concluiu Guernica em 4 de junho. No dia 12
de julho, o painel de 3,49 m por 7,76 m foi exposto ao público. Hoje muitos o
consideram a obra-prima de Picasso. Por exigência do pintor, o quadro só pôde
ser levado à Espanha após a morte de Franco.
Aventuras na
História n° 045