quinta-feira, 30 de maio de 2013

Sabin, meu amor


Adriana Maximiliano
A brasileira Heloísa Dunshee de Abranches Sabin, viúva do cientista americano que inventou a vacina em gota contra a poliomielite, conta a luta do marido para erradicar a doença em todo o  mundo.

Houve tempo em que lugar de criança era em casa. Culpa das epidemias de poliomielite do século passado. A pólio ou paralisia infantil, como também é conhecida essa doença contagiosa, tem os mesmos sintomas da gripe e pode causar paralisia ou morte. As principais vítimas são crianças menores de 5 anos. Em 1921, quando adultos ricos achavam que estavam imunes, um nova-iorquino de 39 anos foi contagiado. Franklin Delano Roosevelt ficou paralisado da cintura para baixo e assim se tornou presidente dos Estados Unidos. E um dos grandes combatentes da pólio.
Em 1938, Roosevelt iniciou uma campanha pela cura da doença. Os cientistas Albert Sabin e Jonas Salk foram os principais soldados dessa batalha. Rivais, defendiam vacinas diferentes: Salk queria a que tivesse o vírus morto e Sabin só acreditava no poder do vírus vivo atenuado. Salk saiu na frente, em 1954, com a vacina injetável. Mas Sabin, com a vacina oral – você tomou a sua gotinha, não? –, erradicou a doença no Brasil, nos Estados Unidos e em quase todo o planeta.
Em 1971, numa festa na orla carioca, Sabin conheceu uma secretária brasileira, se apaixonou e casou pela terceira e última vez. Heloísa Dunshee de Abranches era desquitada e tinha 54 anos, dez a menos que o cientista. O casal viajou o mundo participando de campanhas pela erradicação da pólio. Hoje, aos 89 anos, Helô, como gosta de ser chamada, vive sozinha no apartamento que dividiu com o cientista, em Washington. Sabin morreu em 1993, mas ainda está presente nos livros do escritório intocado, num mural de fotos no quarto e nos olhos de Helô. “Eu sinto que Albert ainda está aqui comigo”, diz ela, cuja história de amor vai virar livro pela editora Record.
Graças à descoberta de Albert Sabin e às campanhas de vacinação que ele ajudou a criar no Brasil, é difícil imaginar o que a pólio causou no passado. Como era, para uma mãe, viver sob a ameaça da doença?
Heloísa Sabin – Qualquer resfriado dava medo. A doença era um mistério, atingia todas as classes sociais e ninguém sabia como se disseminava. A Europa sofreu grandes epidemias no século 19 e o Brasil tem registros da doença desde o início do século 20. A vacina Sabin só chegou ao Brasil nos anos 60, as campanhas de vacinação em massa começaram em 1979 e a pólio foi erradicada no país em 1994. Esse pesadelo é bem mais recente do que parece. Até outro dia, tínhamos crianças usando aparelhos ortopédicos nas ruas e pulmões de aço nos hospitais (em cada 200 casos de pólio, um provoca paralisia. Os membros inferiores são atingidos primeiro, mas, quando a doença chega aos músculos do sistema respiratório, é preciso usar um aparelho que permita a respiração artificial, como é o caso do “pulmão de aço”).

Como foi a vida de Sabin até descobrir a cura da doença?
Ele nasceu em 26 de agosto de 1906, em Bialystok, cidade da Polônia que na época fazia parte da Rússia Imperial. Era de uma família judia muito pobre. Teve uma infância marcada pelo preconceito e pela falta de dinheiro. Quando Albert tinha 15 anos, emigrou com os pais para os Estados Unidos. A vida começou a melhorar, ele pôde estudar e escolheu ser cientista. Formou-se em Medicina pela Universidade de Nova York, estudou em Londres e virou professor de pesquisas pediátricas da Universidade de Cincinnati. Depois da Segunda Guerra Mundial, ele direcionou todo seu esforço para descobrir a vacina contra a pólio. Foram 20 anos de pesquisa. Ele dizia que, a cada dia de trabalho, tinha 100 frustrações e uma gratificação. Mas tudo valeu a pena.

Epidemias de pólio atingiram a Europa e Estados Unidos, mas só depois que Roosevelt foi contagiado começou a corrida pela vacina. Por quê?
Roosevelt lutou a vida toda para voltar a andar (ele escondia sua deficiência e sempre evitou ser visto em cadeira de rodas. Teve quatro mandatos presidenciais, de 1933 a 1945, mas existem apenas duas fotos dele em cadeira de rodas). Ele criou uma clínica de reabilitação (Warm Springs) e depois uma campanha para arrecadar dinheiro para a luta contra a pólio (March of Dimes, que incentivava o povo a mandar moedas para a Casa Branca. Em menos de um ano, chegaram quase 2 milhões de dólares). Graças ao povo, vários cientistas puderam se dedicar exclusivamente às pesquisas.

Os principais foram Sabin e Jonas Salk. Como era a rivalidade entre eles?
Albert acreditava que a vacina ideal deveria ter o vírus vivo atenuado, enquanto Salk defendia a vacina com o vírus morto. A imprensa pôs muita lenha nessa rivalidade.
Em 1954 Salk anunciou a descoberta de sua vacina e virou herói. Sabin descobriu a dele um ano depois, mas só conseguiu aceitação em 1961. Por que a resistência?
Salk até hoje é visto como grande vencedor nos Estados Unidos, apesar de a vacina dele não ter sido perfeita (a eficácia era de 70%). A Sabin é mais barata, mais fácil de aplicar, não precisa de constantes reaplicações como a Salk e é capaz de dar imunidade às crianças não- vacinadas que convivem com outras vacinadas. Apenas depois de vacinar milhões de crianças com sucesso, na Rússia e em outros países, os americanos se interessaram pela vacina dele. Em 1961, quando já era a mais usada em todo o mundo, a vacina Sabin substituiu a Salk nos Estados Unidos. O mais importante é que ambos doaram suas patentes para a humanidade.

Mas Salk, então, perdeu a batalha?
Para o povo e a imprensa dos Estados Unidos, ele continuou herói. Mas a vacina Sabin era melhor e erradicou a pólio na maior parte do mundo, inclusive nos Estados Unidos. No Brasil, Albert sempre foi tratado com todo carinho. Ele era cercado nas ruas, visto como um ídolo. Toda mulher brasileira e mãe tinha muita admiração por ele. Inclusive eu!

A senhora entrou na vida de Sabin em 1971. Como aconteceu?
Ele ia ao Brasil com frequência para receber homenagens e ajudar na erradicação da pólio. Amava o país e o povo. Numa dessas viagens, acompanhei minha chefe e tia, a condessa Pereira Carneiro (então proprietária do Jornal do Brasil), numa festa para Albert no Rio. Eu tinha 54 anos, dois filhos, estava desquitada desde os 34 e trabalhava como secretária da titia. Albert tinha 64, duas filhas,  estava divorciado e era o presidente do conceituado Instituto Weizmann de Ciências, em Israel. Ele me pareceu extremamente charmoso. No fim da festa, entrei na fila para cumprimentá-lo. Ele apertou minha mão com força, deu dois beijinhos e repetiu meu nome várias vezes. Dias depois, nos reencontramos por acaso no aeroporto. Ele estava indo embora e, quando me viu, disse meu nome inteiro. Conversamos e Albert pediu que eu mandasse uma foto dele que tinha saído no JB. Foi o que fiz.

E o que aconteceu?
Mandei junto um bilhete e ele respondeu com uma carta linda, de duas páginas. Disse que tinha ficado encantado, pediu fotos minhas. Logo estávamos trocando cartas apaixonadas. Três meses depois, aproveitei uma folga de Carnaval e fui ao encontro dele numa estação de esqui da Suíça. Foram 12 dias de paixão. Nem a condessa sabia que eu estava lá. Não éramos casados e, naquela época, uma viagem daquelas seria um escândalo. Estava apaixonada e arrisquei, mas tudo podia ter acabado ali.

Quando foi o encontro seguinte?
Voltei para o Rio e ele, para Israel. Dias depois, Albert teve que fazer alguns exames e descobriu que precisava operar o coração na Flórida. Fiquei apavorada. Ele me convidou para encontrá-lo em Miami, durante a semana de recuperação. Para mim, era tudo ou nada. Pedi demissão e levei todas as minhas coisas, porque minha esperança era ir de Miami para Israel. Tive até que pagar excesso de bagagem! Cheguei ao aeroporto com aquele monte de malas e meu casaco de pele. Claro que eu só levei o casaco porque iria para Israel. A filha do Albert até hoje brinca, dizendo que quando me viu no calor de Miami, com o casaco de pele na mão, pensou: “Essa não larga o papai nunca mais!”

E não largou mesmo!
Não. De Miami fomos para Israel, depois casamos numa pequena cerimônia em Nova York e, nos anos seguintes, corremos o mundo. Participamos de campanhas de vacinação na China, em Cuba, República Dominicana, íamos todo ano ao Brasil. Albert diminuiu o ritmo de trabalho e, feliz, dizia: “A vida começa aos 65”.

O fato de ele ser judeu  e a senhora católica atrapalhou?
Antes de casar, cheguei a pensar em me converter, porque achei que não seria bom para ele, em Israel, ter uma mulher que não fosse judia. Mas Albert disse que ficaria decepcionado se eu fizesse isso, porque não se deve mudar de religião por qualquer tipo de interesse e sim por convicção. Ele estava certo. Sempre fui bem recebida em todos os lugares onde moramos ou que visitei com ele.

Quais são suas lembranças mais marcantes das viagens?
Não eram viagens turísticas. Conhecíamos os líderes de cada país, como Fidel Castro em Cuba. Lembro que Albert até brincou, dizendo que tinha ficado com ciúme, porque nosso aperto de mão foi longo demais! Também conhecíamos o povo, lugares que nenhum turista costuma visitar. Jantei na casa de uma família russa, outra chinesa... Eram viagens profundas, cheias de emoção.

Como eram as idas ao Brasil?
Entre visitas aos meus familiares e passeios, Albert participava de campanhas. Ele até estudou português na PUC do Rio para poder se comunicar com o povo e com as voluntárias que davam as vacinas. Em 1981 houve uma grande homenagem pelo seu aniversário de 75 anos e também farreamos bastante. Nós recebíamos convites para tudo, até um Carnaval no Sambódromo ele teve a oportunidade de conferir. Mas aconteceu um problema com o governo militar e a história acabou mal (Sabin disse que as informações passadas nos anos 70 para a Organização Mundial de Saúde sobre a erradicação da pólio no país tinham sido mais otimistas do que a realidade. O governo não gostou e dispensou a ajuda dele).

O último caso de paralisia por pólio no Brasil foi  na Paraíba, em 1989. Segundo a OMS, ainda há epidemias na África e na Ásia. Sabin ficaria decepcionado?
Com certeza. Lembro-me do Albert bem velhinho, com sua caixa de vacinas debaixo do braço, lutando pela erradicação global. Esse era seu maior objetivo. É preciso trabalhar duro para mobilizar as populações de países que ainda têm casos de pólio. Mas as campanhas têm tido obstáculos (na Nigéria, por exemplo, surgiram boatos de que a vacina estaria contaminada com o vírus da aids e, além disso, poderia esterilizar as meninas).

A senhora está com 89 anos e sua família mora no Rio. Pensa em voltar a morar no Brasil?
Minha família pede que eu volte, mas não quero. Gosto de viver aqui. Tenho tantas lembranças boas. Eu e Albert gostávamos de andar de carro conversível pelas ruas de Washington, ele costumava pegar sol na varanda do apartamento e a gente adorava admirar o pôr-do-sol pela janela. Sinto que Albert ainda está aqui comigo.

"Minha querida e doce Helô, suas fotos chegaram dois dias atrás. Tenho olhado para elas toda chance que tenho, como olho agora, depois do trabalho..."
Carta de Sabin para sua futura mulher, de 11 de janeiro de 1972.

Aventuras na História n° 046

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