sábado, 8 de junho de 2013

Arte Degenerada: Obras inimigas


Sérgio Miranda
A exposição Arte Degenerada, promovida em Munique pelos nazistas para desmoralizar grandes nomes da arte moderna, como Picasso, Kandinsky e Klee, completa 70 anos.
Havia muito tempo não se via fervor artístico como aquele, em Munique, na Alemanha. Em 19 de julho de 1937, centenas de alemães se dirigiram à tradicional galeria Hofgarten para a abertura da exposição Entartete Kunst – ou, em português, Arte Degenerada. Montada pelo Partido Nacional Socialista alemão, a mostra apresentava cerca de 650 pinturas, esculturas e gravuras, entre os mais de 5 mil trabalhos confiscados pelo governo alemão dos principais museus e galerias do país. Um dos discursos da noite foi o do nazista Adolf Ziegler: “Em torno de nós vê-se o monstruoso fruto da insanidade, imprudência, inépcia e completa degeneração. O que essa exposição oferece inspira horror e aversão em todos nós”, declamou, eufórico, aplaudido pelo público. Ficou claro que o objetivo da mostra era apresentar a arte moderna como um elemento pernicioso à estética nazista. No dia anterior, o governo tinha inaugurado na imponente Casa da Arte Alemã a Exibição da Grande Arte Alemã. A idéia era que o povo alemão comparasse a beleza da arte ariana aos devaneios das obras dos artistas modernos na Hofgarten.
Mais de 2 milhões de pessoas conferiram as obras selecionadas por Goebbels, poderoso ministro da Propaganda de Hitler, na Arte Degenerada. A exposição tinha trabalhos de Pablo Picasso, Giorgio de Chirico, Georges Braque, Henri Matisse, Marc Chagall, Wassily Kandinsky, Piet Mondrian, Paul Klee e Edvard Munch, entre outros – artistas gigantes na história das artes plásticas. Os alemães expressionistas em evidência na época também foram chamados de degenerados e incluídos na exposição. Emil Nolde foi o campeão, com 1 052 trabalhos confiscados.
Claro que uma exposição imaginada pelo ministro da Propaganda de Hitler não se limitava à seleção das obras. A maneira como elas seriam mostradas ao público também era importante. Os trabalhos foram dispostos de modo desorganizado e quadros foram pendurados tortos nas paredes, para provocar estranheza. Pinturas de doentes mentais de clínicas alemãs foram colocadas ao lado das obras de artistas consagrados. Comentários políticos moralizantes e slogans pejorativos eram apresentados em letras garrafais, ao lado. E novos títulos foram atribuídos aos trabalhos, que viraram Insulto à Feminilidade Germânica e Fazendeiros Vistos pelos Judeus. A arte moderna era, para o governo alemão, um barbarismo que precisava ser superado. E Goebbels usou a exposição para fazer parecer que esse julgamento partia do próprio público.

Perseguição antiga
Os eventos que culminaram no ataque nazista à arte moderna começaram a se desenhar em 1927, nos ensaios publicados por Alfred Rosenberg, ideólogo do partido de Hitler. Reunidos sob o título Der Sumpf (O Pântano), acusavam a estética de vanguarda de representar uma doença da alma, o desequilíbrio e a alienação e de resultar da conjugação entre o dinheiro do capitalismo e a cultura de massas manobrada pelos comunistas. O pensamento de Rosenberg refletia,  de modo exacerbado, parte do sentimento que havia em relação aos rumos que a arte tomara desde o fim do século 19 e que atravessara a Primeira Guerra Mundial.
Em 1911, o russo Wassily Kandinsky escreveu seu tratado Sobre o Espiritual na Arte, afirmando que as grandes realizações da pintura da vanguarda representavam gestos simbólicos de liberação universal. Como que prevendo o que viria pela frente, Kandinsky denunciava a existência de uma “mão negra”, o mal que procurava limitar a liberdade dos artistas com seu espírito conservador. A ela o artista contrapunha o “raio branco”, o espírito livre, construtivo, capaz de demolir preconceitos dos reacionários contra as inovações artísticas.
Após a Primeira Guerra, a Alemanha viveu um momento de desgraça nacional e decadência socioeconômica. Foi nesse contexto que a arte moderna se difundiu no país. A derrocada em 1918 e o Movimento Modernista pareciam andar de mãos dadas. Grandes nomes da arte produzida na Alemanha, como Emil Nolde, Otto Dix, George Grosz, além de Klee e Kandinsky, afirmavam o princípio expressionista da manifestação dos sentimentos e retratavam em suas obras uma sociedade dilacerada, desmoralizada, atormentada pela depressão econômica e por violentas convulsões políticas. Logo a arte foi responsabilizada pelo clima derrotista e pessimista que pairava sobre a Alemanha dos anos 20.
E assim voltamos a Rosenberg. Em 1929, ele aliou-se ao pintor e arquiteto Paul Schultze-Naumburg em uma campanha contra o que naquela época já chamavam de arte degenerada. A campanha culminou na estruturação da Kampfbund für Deutsche Kultur (Federação do Combate para a Cultura Alemã), instrumento do partido nazista contra a arte, contra o que chamavam cultura bolchevista.
Assim, quando os nazistas chegaram ao poder, em 30 de janeiro de 1933, o destino da arte moderna já estava traçado. Artistas e intelectuais judeus ou oposicionistas foram afastados dos cargos públicos. Partidários da arte moderna foram retirados da direção de museus e instituições culturais. A Bauhaus, principal centro de ensino e divulgação das vanguardas nas artes visuais e na arquitetura, foi fechada pelo governo. O Terceiro Reich decretou o fim da diversidade das tendências artísticas, impondo um neoclassicismo ideológico como padrão. No mesmo ano, o artista alemão George Grosz pintou um contraponto à perseguição nazista: uma aquarela chamada A Bestialidade Avança.

Limpeza estética
Ainda em 1933, no Congresso do Partido Nazista em Nuremberg, Hitler repetiu o que já havia escrito em Mein Kampf (Minha Luta) sobre o artista moderno: “Se cada coisa a que deram à luz foi resultado de uma experiência interior, então eles são um perigo público e devem ficar sob supervisão médica. [...] Se era pura especulação, então deviam estar numa instituição apropriada para o engano e a fraude”. O que se viu a partir de então foi a utilização de preceitos estéticos para justificar objetivos políticos. Os nazistas usaram a arte como uma poderosa arma para a propaganda de seus ideais. Baseados em suas livres interpretações do darwinismo e do conceito de eugenia, resolveram dar uma mãozinha à natureza e eliminar os corpos impuros, defeituosos e perniciosos que contaminariam a busca por uma raça pura, forte e superior para toda a Alemanha. Passaram a pregar a restauração do naturalismo idealizado nas artes. O artista fiel às idéias de uma nação forte deveria, em vez de concentrar-se em abstrações complicadas, descrever o mundo que imperaria no futuro não muito distante. Um mundo pleno de beleza, idílico, clássico, virtuoso – desde que a grande causa nazista vencesse seus desafios, claro.
Inicialmente, qualquer obra de arte moderna era considerada “degenerada”. Mas os critérios foram se expandindo até incluírem, como arte degenerada, qualquer objeto feito por judeus ou comunistas. Ou seja, tudo que não se adequava ao ideal nazista. A arte assumiu um papel policial, justificando prisões, confiscos e tudo que fosse necessário na discriminação dos judeus, deficientes, comunistas e outros segmentos excluídos da sociedade alemã.
Reunir grandes artistas da época em uma exposição chamada Arte Degenerada não causou estranheza aos alemães, que já vinham frequentando exposições patrocinadas pelo Terceiro Reich desde 1933. O próprio Hitler só deixou de comparecer às inaugurações no auge da Segunda Guerra. Mas a exposição de 1937 reunia, pela primeira vez, um grande número de artistas e obras. Resultado da “purificação” dos museus de toda a Alemanha. A Entertate Kunst ainda seguiu de Munique para outras cidades da Alemanha, atraindo mais 1 milhão de visitantes.

Exílio interno
Durante a série de exposições, Hitler percebeu que a venda das obras poderia render um bom dinheiro para os cofres do partido. Parte delas foi leiloada em 1939, na Galeria Fischer, em Lucerna. Vários trabalhos importantes acabaram salvos nas mãos de colecionadores. Um deles, de Paul Klee, está exposto no Brasil, no Museu de Arte Contemporânea da USP (veja quadro na pág. 35). Já o que não possuía valor de troca ou venda graças aos padrões estabelecidos pelo nazismo era destruído. De uma só vez, em 20 de março de 1939, 1 004 pinturas, 3 825 aquarelas e outros tantos trabalhos foram queimados.
Com a ascensão das idéias de Hitler sobre arte moderna, os artistas tomaram destinos diferentes. Nomes como Picasso e Matisse, que lançavam novidades estéticas a partir da escola francesa, continuaram produzindo em seus países, discutindo as vanguardas e influenciando jovens artistas. Já os alemães não tiveram outra saída a não ser refugiar-se em algum outro país. Os que ficaram preferiram uma espécie de exílio interno, como Otto Dix, que para não ser impedido de pintar na Alemanha mudou-se para o interior e dedicou-se aos temas tolerados pelos nazistas.
Enquanto execravam a arte moderna, os nazistas investiam nos artistas que seguiam seus ideais de superioridade ariana. Os poucos temas escolhidos pela pintura no regime nacional-socialista eram incessantemente repetidos e expressavam a mensagem nazista. “Enquanto estamos certos de expressar corretamente na política o espírito e a fonte da vida de nosso povo, também acreditamos ser capazes de reconhecer seu equivalente cultural e realizá-lo”, afirmou Hitler, em 1935.
Com o fim da Segunda Guerra e a derrota do nazismo, as artes plásticas naturalmente deixaram para trás os ideais da doutrina. Hoje, praticamente nenhum dos artistas que viraram obedientes soldados da estética nacional-socialista é lembrado. O contrário aconteceu com os perseguidos pelos nazistas. Esses, justamente, alcançaram reconhecimento histórico nas artes. do século 20.

Paul Klee no Brasil
Quadro da Arte Degenerada hoje pertence ao MAC.
Uma das obras do suíço Paul Klee presentes na Arte Degenerada veio parar no Brasil. A gravura A Santa da Luz Interior hoje pertence ao acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. O catálogo da mostra de 1937 colocava a gravura de Klee ao lado de um trabalho produzido por um doente mental que também retratava uma santa. A idéia era fazer o público achar a santa do doente mental mais compreensível e humana que a do artista. Observar a gravura hoje como algo que foi contestado pelo regime nazista “é devolver-lhe a dimensão humana, política e histórica inerente a toda obra de arte”, afirma Helouise Costa, professora do MAC. Ainda garoto, Paul Klee (1879-1940) desenhava figuras nas margens de seus livros e cadernos escolares. Aos 19 anos foi estudar arte em Munique, na Alemanha, e ingressou definitivamente no mundo das artes plásticas. Com carreira internacionalmente conhecida, expôs em diversos países da Europa e nos Estados Unidos. Lecionou na Bauhaus e dirigiu a Academia de Dusseldorf. Em 1933, com a ascensão nazista, mudou-se para Berna, na Suíça. Em 1937, teve 17 obras incluídas na exposição Arte Degenerada – 102 foram confiscadas de coleções públicas alemãs.

O favorito de Hitler
Quem era e o que produzia o artista preferido do ditador.
O escultor Arno Breker (1900-1991) é o melhor exemplo de artista cooptado pelo regime nazista. A estética da supremacia ariana reflete-se nos corpos atléticos e monumentais das criações de Breker. Algumas dessas esculturas podem ser vistas no estádio olímpico de Berlim, mas estima-se que 90% de seus trabalhos tenham sido destruídos pelos aliados e pelos próprios alemães. Viajando pela Europa, Breker conheceu artistas de expressão, como Maurice de Vlaminck e Salvador Dalí. Este último considerava Breker o “maior escultor do século 20”. Mas foi a aproximação com o nazismo, no entanto, que deu uma forte guinada na carreira do artista. Sua obra seguia exuberante, tecnicamente admirável e precisa. Porém, seu uso político a estigmatizou para sempre. Breker aceitou inúmeras encomendas do regime e mantinha amizade pessoal com Adolf Hitler. Seu trabalho aproximou-se do clássico: corpos fortes e jovens transmitem mensagens como honra, esplendor, pureza, esperança e superação. O corpo atlético masculino é o exemplo de vigor que a ideologia de Hitler precisava mostrar ao povo alemão e ao mundo – afinal, uma cultura superior precisa de um povo superior.

Aventuras na História n° 047

Um comentário:

  1. Wassily Kandinski e todos o "pintores modernos", foram mandados para o inferno da União Soviética ainda em 1918, com 14 anos antes de Hitler chegar ao poder na Alemanha! O cara está escondendo que os comunistas foram os primeiros a destruir a "arte moderna", aí como é holocau$tizado, toca a musiquinha com Hitler!

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