sábado, 8 de junho de 2013

Boni, o inventor da Televisão


Isabela Flórido
Em 54 anos de profissão - 30 dedicados à Rede Globo -, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, traçou o rumo da TV no Brasil e ajudou a transformar a emissora na quarta maior no mundo.
Ele dispensa o título de “mago da televisão brasileira”, mas até hoje é reverenciado como tal. E José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, merece o crédito. A imbatível Rede Globo não estaria onde está sem o talento e a determinação desse homem. Certamente a história do meio de comunicação mais poderoso do país também seria diferente sem ele. A televisão nasceu no Brasil em 1950. Boni começou a trabalhar no veículo três anos mais tarde, quando tinha apenas 17. Entrou para a Globo em 1967 – e lá ficou por 30 anos. Juntamente com Walter Clark (então diretor-geral da empresa, já falecido), colocou a emissora carioca na posição de maior rede de televisão do Brasil – e a quarta do mundo. Mais do que isso, definiu uma programação de sucesso e criou o “padrão Globo de qualidade”.
Hoje, aos 71 anos, o ex-vice-presidente de operações da Vênus Platinada é sócio da TV Vanguarda – afiliada da Globo com 50 retransmissoras em São Paulo. E garante não mais assistir televisão como antes. “É para não ficar nervoso com o que está errado. Vejo no máximo o telejornal. Se você me perguntar: ‘Como está a televisão hoje?’, eu não sei dizer”, afirma ele, que recentemente esteve no Palácio do Planalto para falar sobre o projeto de uma rede de TV pública. Há quem garanta que o ministro da Comunicação Social, Franklin Martins, chegou a formalizar um convite para que Boni a comandasse. Ele nega. “Fui apenas para dar idéias. Sou um homem da iniciativa privada e o presidente Lula sabe disso. Mas não posso me furtar a contribuir para a comunicação no meu país”, diz. “A TV pública tem de criar uma auto- estima brasileira, um espírito nacionalista. Ela não pode ser apenas entretenimento ou instrumento político do governo. Disse isso ao presidente.”
Dos tempos em que foi o todo-poderoso da Globo, Boni só admite sentir falta de uma coisa: “Das conversas com artistas, diretores e autores sobre tudo o que criávamos. Essa troca constante faz falta”.

Quando houve a profissionalização da TV brasileira?
Boni – A TV é obra coletiva. Não se pode dizer que fiz sozinho, mas a transformação dela num veículo profissional foi coisa que fiz. Antes, o Edson Leite (diretor administrativo da Excelsior) acertara um pouco naquela TV, em 1963. Depois, em 1966, no Telecentro, também. Na Globo, eu e o Walter Clark fizemos o que sonhávamos desde 1957: uma rede nacional. O Dr. Roberto (Marinho, dono da Globo) pensava numa TV que fosse a continuação do jornal O Globo. Achávamos que o jornalismo era prioritário, mas queríamos novelas, programas de humor etc. Tinha que ser uma estação completa, abrangente, eclética.

Que papel os colaboradores estrangeiros tiveram na TV brasileira?
Nenhum. Mas Joe Wallach (americano naturalizado brasileiro, ex-superintendente administrativo da TV Globo), que era representante do grupo Time-Life e, depois, do Dr. Roberto, falava a nossa língua. Ajudou a convencer o Dr. Roberto, em vários momentos. Com competência, geriu até a nossa vaidade, pois havia competição entre o Walter, o Dr. Roberto e eu. Se não fosse ele, eu não teria ficado na Globo.

O embate era permanente?
Eu defendia um conceito e não queria que ele fosse degradado pelo comercial. Não queria virar refém do anunciante. Antigamente, a TV, por necessidade e não por filosofia, aceitava a imposição do cliente. Eu queria total autonomia no conteúdo. Então, houve alguns embates com o Walter e com outros executivos. Não havia a possibilidade de construir o que foi construído se deixássemos a publicidade mandar no jornalismo ou no elenco das novelas. A conquista da independência foi uma luta difícil.

Como era sua relação com Roberto Marinho? Até que ponto ele, como patrão, interferia?
Dr. Roberto era um gentleman. Nunca interferia em nada e, quando queria alguma coisa, permitia uma discussão franca sobre qualquer assunto.

A TV ao vivo deve ter rendido boas histórias de bastidores, não?
Me lembro de uma com o Lima Duarte. Fazíamos o programa Lever no Espaço e, numa das cenas, ele caía num fosso de crocodilos. Eram animais de verdade, dopados. No script pedi: “Conseguir dois crocodilos de 2,5 metros”. Só que na hora, ao vivo, um deles acordou e saiu dando rabada em todo mundo. A explicação do veterinário foi que, se tivéssemos pedido um bicho de 3 metros, ele tinha um mansinho...

O Ibope (Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística) mudou o jeito de fazer televisão?
Muito. Sempre apostamos em pesquisa. Mas acho que somente receber índices de audiência é uma coisa inútil. Você tem que saber por que aquela audiência se comporta daquele jeito, tem que saber avaliá-la e interpretá-la. Eu sempre usava uma frase: “Contrariar a pesquisa também vale”. É um risco necessário, algumas vezes, para inovar. Seguindo a tendência do público, corre-se o risco de encher a televisão de Zorra Total, né? A gente tem que ter uma cenourinha e, então, deixar o público vir atrás. Se virarmos a carroça, aí o burro é quem vai nos puxar. Seguir apenas os números é um problema. A televisão fica inassistível, já que a classe D é sempre maior. Não se pode fazer concessão e sucumbir à massa. Deve-se fazer tudo e para todo mundo.

O senhor segue crítico de programas popularescos?
Fizemos muitos deles, mas depois queríamos limpar. Fico triste ao ver que eles estão de volta, como o Zorra Total. O humor tem que ser renovado. Nunca existiu outro com a qualidade do Chico Anysio. Ele, para mim, é o maior nome da TV brasileira. Em termos de talento, nós não tivemos iguais a três: Dercy Gonçalves, Chico Anysio e Dias Gomes.

O “padrão Globo de qualidade” é creditado ao senhor. Era necessário muito rigor para alcançá-lo?
Era. Uma vez joguei fora oito episódios do seriado Malu Mulher. De Renascer, foram 30 e tantos capítulos.

Qual foi o pior momento seu na Globo?
Foi na estréia de Roque Santeiro, em 1975 (em 27 de agosto). Não tínhamos recebido até então o documento de liberação da censura. Eles mandavam no dia mesmo, em cima da hora. Mas, às 18h, avisaram que a novela fora interditada. Mandei reprisar Selva de Pedra, que dera 100% de audiência em 1972. Fui ao Dr. Roberto e, junto com o Armando Nogueira (então diretor da Central Globo de Jornalismo), o convenci a denunciarmos a censura. O Armando escreveu o editorial, lido pelo Cid Moreira no Jornal Nacional. Dr. Roberto autorizou tudo, mas me disse que eu colocara a empresa em risco. Naquele momento, quase pedi demissão. Estávamos sendo perseguidos, e ele atribuindo a mim a responsabilidade do que aconteceria. Foi uma noite terrível.

No que mais a ditadura, cuja censura engessou o jornalismo, prejudicou o trabalho na TV?
Era uma negociação complicada. Não havia critério, lógica, era absolutamente irracional. Eles enguiçavam com coisas sem importância e liberavam outras mais sérias. Em O Bem-Amado, a música de abertura tinha o verso “estamos sentados num barril de pólvora” – e eles não censuraram. Mas proibiram o termo “coronel” no texto. Entre nós, havia uma consciência de que éramos permanentemente cerceados e não sabíamos quando aquilo acabaria. Muita gente nos acusou de conivência no processo da censura. Não fomos coniventes, fomos censurados, vítimas, sobrevivemos apenas.

Que autor, além do Dias Gomes, era mais perseguido?
O Dias era hors-concours. O Bem-Amado, também do Dias, foi bastante censurada. Curiosamente, essa trama foi censurada por ambos os lados. O Brizola (ex-exilado, cassado pelo regime militar) entrou com ação, pela Promotoria Pública, pedindo a interdição de um episódio porque achou que o Antônio Conselheiro da trama era ele, retratado como louco, visionário. Aí liguei para ele e falei: “A gente já é vetado de um lado. Agora somos dos dois!” Mas o Dias também tinha uma habilidade impressionante para driblar os censores. Ele usava a expressão “vamos pentear”. Ele “penteava” as sinopses de um jeito para que os caras liberassem.

Durante a ditadura, as novelas passavam mensagens políticas, já que o jornalismo estava sob severo controle da censura?
As novelas tinham mais chance de dizer alguma coisa, uma vez que o conteúdo delas era sempre mais subjetivo. Mas jornalismo e novela sofreram muito. Roque Santeiro, por exemplo, foi censurada por inteiro (a primeira versão, de 1975, nunca foi ao ar) e, mais tarde, quando liberada (em 1985), verificou-se que era pura implicância. Não havia nada em Roque Santeiro que merecesse censura.

Fale sobre os atentados à residência de Roberto Marinho e também à Rede Globo, durante a ditadura militar.
Até hoje não se sabe o que aconteceu. Muita gente atribui à ditadura esses atentados, para cooptar a Globo e outras emissoras que também foram vítimas.

Os incêndios na emissora também foram momentos difíceis?
Foram. O primeiro foi em São Paulo, em 1969. Mas sempre digo que esse foi benéfico, pois o núcleo de produção precisou ser transferido para o Rio e a unificação ajudou a melhorar a qualidade de produção. Os outros ocorreram no Rio (em 28 de outubro de 1971 e em junho de 1976). No primeiro, um auditório se incendiou. Já o segundo lambeu tudo, toda a área de edição de videotape, o arquivo de jornalismo, o controle-mestre, e nós tivemos que sair do ar. Mesmo assim, foram só três ou quatro minutos. Logo passamos para a programação paulista e, depois, transmitimos ao vivo as imagens do próprio incêndio.

Você já chorou por causa do trabalho?
Já, sou muito emotivo, sou um chorão, mas meu choro vem depois, quando concluo o que deve ser feito. Aí, desabo de vez.

Quando, por exemplo?
Na estréia do Jornal Nacional, em 1969. Quando ele foi ao ar e vimos que o país inteiro tinha recebido aquelas imagens, foi uma emoção enorme. Eu, Alice Maria (então editora-chefe do JN e, hoje, diretora da Globo News) e Armando Nogueira choramos. O Armando disse: “O Boeing decolou”. Sem dúvida, foi um momento inesquecível.

Dá para imaginar o Brasil sem a Globo?
Não. É um fenômeno único no mundo. Não existe nenhuma rede de TV com a participação dela no mercado. E não se pode dizer que foram duas ou três pessoas que fizeram a Globo, foi um trabalho coletivo.

Qual seu maior orgulho?
Ter conseguido fazer uma TV brasileira, com sotaque nacional, com qualidade. A minha preocupação é que possam destruir o que está aí, um trabalho de décadas de serviço.

Aventuras na História n° 047

Nenhum comentário:

Postar um comentário