A beleza salvará o mundo”... No momento do embarque, vem à mente a frase – laica e messiânica – estampada em letras garrafais logo à entrada da mostra “500 anos de arte russa” na Oca. É a minha primeira viagem a Moscou. Mais uma viagem internacional, entre tantas outras que tenho feito nesses últimos dois ou três anos. Viagens curtas, marcadas por muito trabalho, longas horas de vôo, diferença de fuso e pela rotina implacável: visitas, reuniões, negociações intermináveis, noites em claro.
Não há tempo para contemplação. Passeios ordinários que fariam parte do roteiro de qualquer outro viajante são implausíveis hoje na minha agenda. Meu lema atual é a otimização do tempo, sob a ótica do capital e do trabalho (não há dicotomia: capital e trabalho se unem no meu ser .... ); a conexão ideal é aquela em que chego ofegante ao aeroporto no momento derradeiro em que o avião fecha as portas; minha esperança (ou ilusão) é a de que a somatória desses momentos fugazes possa compor a percepção da eternidade.Mas “salvará o mundo a beleza”? Olhando para trás percebo que a estética funcionou como critério geral das opções de vida nos meus 40 e tantos anos. Um belo traço, texto, timbre, sorriso ou gesto sempre prevaleceu sobre qualquer outro critério de escolha. A razão sempre veio depois da emoção. Não poderia ser diferente nas minhas viagens-relâmpago: não será diferente na rápida passagem por Moscou. Negócios à parte, quero simplesmente ver o que este povo, que tanto contribuiu no passado para a arte e ciência, oferece hoje para nossa salvação.
Eis a minha coleta.
Um belo corrimão de aço separando a rua da calçada; uma bela porta também de aço colocada internamente num prédio antigo reformado; um bueiro retangular bem cortado; um prédio velho encapado de vidro vermelho; uma corretíssima loja de móveis, a Novaya Studia. Os restaurantes locais estão melhorando muito e há versões locais do Starbucks que são muito simpáticas, melhores até que as nossas redes de café locais. Tudo é muito caro: o nível de preços é equivalente ao da Europa Ocidental. Vê-se com freqüência boas programações visuais (posters, logos, websites e fontes em cirílico).
De resto, muitas lojas de grife repletas de gente com ar de novo rico pós-socialista típico. Sente-se ainda a forte inércia da gestão socialista no plano da microeconomia. Até onde pude ver, não se vê ainda arquitetura contemporânea de qualidade em quantidade, como se vê em Pequim ou Xangai.
A força de um velho mito da minha outra encarnação me levou a buscar um concerto num dos grandes templos da música, o Conservatório Central de Moscou. Beethoven, Concerto número 5 e Quinta Sinfonia. Tudo número 5. Evento em bom formato.
Apenas duas peças, com intervalo bem curto somente para tirar o piano do palco. Quem tem hoje paciência para algo mais longo? O pianista, Lidsin, parece um urso siberiano bigodudo. Tem as patas com dedos gordos, que parecem que não caberão nas teclas. O som no entanto é claríssimo, a expressão perfeita, as notas são apenas um detalhe para esses pianistas formados aqui. A regente é a Veronika Dudarova, de “apenas” 87 anos. Controla os naipes em tempo real: reduz o volume dos segundos violinos, chama as madeiras para o fore front, lembra os metais de que precisam de leveza, com a facilidade de quem controla o volume numa mesa de som. Nessa idade, já desapareceram o autoritarismo, a agressividade e a vaidade sempre presentes nos grandes maestros. Aos 87, ficou apenas uma preocupação genuína com a boa música, o equilíbrio geral, o diálogo entre a orquestra e o solista.
É dia de ir embora e me restam três horas e meia antes da decolagem. Adotando o princípio da conexão ideal, e contra a recomendação do meu motorista pós-soviético, arrisco uma visita à Melnikov Dom, marco da arquitetura construtivista, erigido em 1927 como residência para o próprio Konstantin Melnikov.
A forma é curiosa. São dois cilindros verticais conectados, um à frente do terreno e o outro pouco atrás.
A construção está em péssimo estado de conservação, mas se percebe o arrojo das linhas. Chega a parecer abandonada, mas arrisco a campainha, do lado de fora do muro pelo qual entrevejo a casa. Alguns minutos depois, um velho, aparentemente meio cego, abre porta interna da casa. Ele não fala inglês. Em francês a coisa funciona. Faço as contas e imagino que o velho poderia ser o próprio filho do Melnikov, que passou alguns anos na França. Digo que sou admirador da casa e que gostaria de visitá-la. O velho hesita, ensaia um primeiro passo em minha direção e pergunta: de que país vem você?
Respondo rapidamente com orgulho de brasileiro profissional. Ele pára, ainda sem me ver, e faz meia volta.
Pede desculpas e diz que está velho demais para mostrar a casa. Faço um último drama, digo que vim de longe. Sem sucesso. O velho fecha a porta.
A grande beleza russa hoje se expressa mesmo no campo da ciência e tecnologia. Vi e ouvi histórias e coisas incríveis. Minha conclusão, depois de ver in loco tantas proezas no campo da nanotecnologia, engenharia aeroespacial, novos materiais e bio-farmoquímica: a ciência fundamental na Rússia avançou mais do que no Ocidente. Os desdobramentos tecnológicos não fruíram pela ausência de um mercado dinâmico, exceto, claro, nos aplicativos militares e espaciais. O patrimônio de conhecimento construído é enorme. O futuro promete.
O otimismo prevalece e deixa uma marca de contraste em relação ao ceticismo no Brasil. A economia cresce e as perspectivas de trabalho para jovens recém formados voltam a melhorar depois da crise financeira de agosto de 1998. Presumo que voltarei muitas vezes em breve.
Corro contra relógio, estou há 90 minutos da decolagem, o trânsito é intenso e meu motorista diz que provavelmente perderei o vôo. É fim de tarde: de câmera em punho ainda busco o registro de algum facho de beleza que nos ajudará a salvar o mundo.
Ao longo das calçadas, observo, entre tantos cidadãos, moças, desacompanhadas, olhos azuis rasgados, com o braço estendido, solicitando – explica o motorista – que algum carro, qualquer carro, lhes sirva de táxi. Eis pois meu último registro da beleza russa. Salvação ou perdição?
RUMOS DISSONANTES DA RÚSSIA
A implosão da União Soviética, em 1991, e a dramática transição para a economia de mercado representaram uma hecatombe para a Rússia. O PIB retrocedeu brutalmente, anos após ano, enquanto parcelas crescentes da população transferiam-se para baixo da linha de pobreza.A política oscilou ao sabor das crises da “era Yeltsin”, o primeiro presidente da Rússia pós-soviética, até estabilizar-se sob o autoritarismo pragmático de Vladimir Putin. Após a crise financeira de 1998, quando o rublo desabou na sequência da crise asiática e anunciou a crise cambial brasileira de 1999, a economia finalmente encontrou o rumo do crescimento. A “primavera econômica” funcionou como pilar para a construção do sistema de poder de Putin.
Na superfície, a expansão econômica russa resume-se a um forte impulso exportador baseado no petróleo e no gás, nos minérios e nos produtos das indústrias pesadas, especialmente a siderurgia. Isso é verdade, mas apenas uma parte dela.
A União Soviética dispunha de capacidades científicas e tecnológicas cuja aplicação restringia-se aos domínios bélico e aeroespacial. Mas a ciência básica que sustentava essas capacidades está lá. A Rússia pós-soviética exportou cérebros para os Estados Unidos, a Europa e até o Brasil. Agora, abrem-se possibilidades mais promissoras, nos domínios da alta tecnologia. O gênio ainda está na garrafa.
Não ficará preso para sempre.
Boletim Mundo Ano 12 n° 4
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