Fascínio. Excitação. Obsessão. O comportamento de milhões de homens e mulheres diante das mais diversas modalidades lúdicas revela uma situação que beira o paradoxo. Os jogos não produzem nada, opõem-se ao trabalho, são essencialmente estéreis. Dos esportes aos games eletrônicos, passando pelos bingos e pelas competições de programas de auditório, tais atividades, no entanto, ocupam um lugar privilegiado nas sociedades industriais, regidas pela ideologia do trabalho e da produtividade. São inutilidades saborosas, manifestações de frivolidade disseminadas por todas as classes sociais. Uma inebriante sedução que teria dado origem a uma sociedade lúdica.
Todavia, há quem remeta a definição dos jogos a uma espécie de compensação à rotina da produção, a uma disciplina dos corpos necessária ao controle social ou até mesmo a uma forma de alienação decorrente de uma sociedade alimentada por espetáculos. Numa perspectiva mais ampla, os jogos também estão relacionados a representações da vida coletiva, a relações sociais, a estruturas de poder, a expressões e visões do sagrado. O jogo é um tema sério. E bastante complexo.Os jogos são criações humanas configuradas como mundos temporários inseridos no mundo habitual, com regras, tempos e espaços específicos. Paraísos artificiais, como afirmou Marshall McLuhan, importante teórico dos meios de comunicação de massa. Se de um lado provocam uma suspensão temporária da rotina cotidiana, de outro os jogos se tornam janelas reveladoras das características e tensões de uma dada formação social num determinado momento histórico. Assim como as festas, também os jogos reiteram e negam, ao mesmo tempo, a ordem social na qual são praticados.
Sua função como “categoria primária da vida” e mesmo “mola propulsora da cultura e da civilização” foi destacada por Johan Huizinga ao final da década de 1930. Para o historiador holandês, o jogo era um ingrediente tão valioso no desenvolvimento humano que se deveria adicionar uma nova nomenclatura à nossa espécie:
“Em época mais otimista que a atual, nossa espécie recebeu a designação de Homo sapiens. Com o passar do tempo, acabamos por compreender que afinal de contas não somos tão racionais quanto a ingenuidade e o culto da razão do século XVIII nos fizeram supor, e passou a ser de moda designar nossa espécie como Homo faber (...) Mas existe uma terceira função, que se verifica tanto na vida humana como na animal, e é tão importante como o raciocínio e o fabrico dos objetos: o jogo. Creio que, depois de Homo faber e talvez ao mesmo nível de Homo sapiens, a expressão Homo ludens merece um lugar em nossa nomenclatura”.
Huizinga analisava com profunda inquietação a profissionalização do esporte moderno, para ele traço da decadência do fator lúdico e de sua profanação desde o século XIX, com a consolidação do capitalismo. Era essa mesma disposição elitista que embalara a organização dos Jogos Olímpicos de Atenas de 1896. Pierre de Freddy, o barão de Coubertin, propunha resgatar o espírito dos antigos jogos gregos através de uma competição amadora, desprovida de interesses econômicos. Para ele, “o profissionalismo se constituiu no pior inimigo dos esportes”. Ou seja, as modalidades deveriam ser praticadas sem remuneração, evidentemente por aqueles que não precisassem trabalhar e dispusessem de tempo livre para se dedicar aos esportes. Como havia ocorrido entre os cidadãos gregos da Antigüidade, que podiam participar dos jogos – e também das atividades políticas, militares e culturais – graças a um sistema escravista que lhes oferecia a devida retaguarda econômica.
Mas é importante lembrar que essa nova edição dos jogos punha fim a um banimento de 15 séculos. Os Jogos Olímpicos haviam sido proibidos pelo Imperador Teodósio em 393 ou 394, por pressões da Igreja Cristã, liderada por Santo Ambrósio, bispo de Milão. Com a adoção do cristianismo como religião oficial do Império Romano, iniciou-se uma ofensiva contra os rituais pagãos. Os jogos gregos, originalmente ligados a cultos fúnebres, passaram, a partir do Período Arcaico (séculos VIII a VI a.C.), a ser dedicados aos deuses do Olimpo. Um politeísmo inaceitável aos olhos do monoteísmo triunfante do século IV.
Os Jogos Olímpicos eram permeados de referências pagãs. O nome da cidade de Olímpia, onde ocorriam os jogos a cada quatro anos, era uma alusão ao Olimpo, a alta montanha sagrada onde se situaria a morada dos deuses gregos. Atlios, um dos muitos filhos humanos de Zeus, teria instituído os jogos em memória de seu pai e, assim, em seu início, as competições denominavam-se atlas e os seus participantes atletas. Os campeões eram coroados com ramos de oliveira, uma árvore sagrada plantada no templo de Zeus.
Os primeiros Jogos Olímpicos da Antigüidade de que se tem registro ocorreram em 776 a.C. No início, disputavam-se apenas provas de corridas simples. Posteriormente, foram incluídas corridas com armas, luta (pugilato), pentatlo (corrida, luta, arremesso de dardo, de disco e de peso) e as corridas de cavalos, bigas e quadrigas. As corridas de pedestres aconteciam no segundo dia de competições. As corridas de cavalos e de carros eram disputadas no penúltimo dia dos jogos. A corrida principal era o dromo, com extensão de 192,27 metros. O atleta vencedor era considerado o homem mais veloz da Grécia e a Olimpíada era batizada com seu nome. Ainda eram disputadas outras corridas: o diaulo de 384,50 metros; a hípica de 769 metros; o dólico de 4614 metros.
As listas de vencedores, além de consagrarem os “heróis” olímpicos, forneciam um quadro de referência cronológica para os demais acontecimentos, estabelecendo o conceito de tempo histórico, em oposição ao vago e indefinido passado mítico. Os jogos transcorriam em sete dias e a Olimpíada (literalmente: espaço de tempo) tinha a duração de quatro anos, até a realização dos novos Jogos Olímpicos. A semana dos jogos era um período de trégua geral na Grécia Antiga.
Simbolizava o esplendor da força humana e o desenvolvimento conjunto do corpo e dos valores do espírito. Era, acreditava-se, um momento mágico, de aproximação com os deuses.
Como aspecto fundamental da educação e da constituição da cidadania no mundo helênico, os jogos assumiam a função de modelos para a vida pessoal e social, assemelhando-se aos ritos que reforçavam a união da comunidade, através de sentimentos e laços cívicos de identidade. A paidia (jogo) estava intimamente vinculada à paidéia (educação).
Essa idéia clássica de cidadania, artefato humano e ingrediente da realização humana através das instituições públicas, perdeu terreno, na passagem para a Idade Média, para a salvação espiritual, que remetia a realização humana à Cidade de Deus. A cidadania política cedia espaço, gradativamente, a uma cidadania espiritual.
A despeito dos motivos pagãos que povoavam os quadros e páginas dos chamados renascentistas, a retomada dos valores greco-romanos pela cristandade ocidental a partir do século XIII não provocou a imediata reabilitação dos Jogos Olímpicos. Foi apenas no século XIX, no contexto da entusiástica reinvenção das tradições, quando a Revolução Industrial intensificou os contatos entre as diversas regiões do planeta, que se criaram as condições para o resgate dos antigos ideais olímpicos.
A montagem do vasto império britânico propiciara a emergência de um sistema educacional que introduzia as práticas esportivas regulares na programação curricular. Coesão de classe, disciplina e força física eram ingredientes fundamentais na formação dessa elite forjada pelos valores vitorianos, uma elite que deveria ser educada para mandar.
Ao mesmo tempo em que grande parte das classes dominantes européias era atraída pelo modelo britânico, engendrava-se o processo de “esportização” da sociedade, como definiu o sociólogo e historiador Norbert Elias. Tratava-se da regulamentação, primeiro em níveis locais, depois em escala global, de modalidades lúdicas que realizavam a modernização dos corpos pelo exercício e pelas competições. Regras mais rígidas, maior vigilância com relação à violência e à intensidade da força física e, principalmente, uma idéia de justiça assentada no princípio da igualdade de condições e oportunidades, fizeram dos esportes um dos principais veículos do padrão especificamente burguês de lazer e de estilo de vida.
Irradiado a partir da Inglaterra, os esportes previam, inicialmente, o combate entre iguais: disputas formais contra antagonistas considerados à altura em termos sociais. Por isso os esportes amadores serviam de linha social divisória com relação às classes subalternas. As acirradas polêmicas em torno do amadorismo versus profissionalismo ao final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX buscavam impedir ou permitir que a classe operária tivesse acesso às modalidades esportivas que se organizavam em escala mundial. Era a luta de classes no campo dos jogos.
A edição dos Jogos de Atenas de 1896 transcorreu em meio a esse clima de resgate dos valores da Antigüidade Clássica e de defesa das práticas amadoras, reunindo 311 atletas de 11 países. As modalidades foram divididas em nove categorias: atletismo, ciclismo, esgrima, ginástica, tênis, tiro, natação, levantamento de peso e luta greco-romana. As provas de corrida continuaram a ser as mais prestigiadas, mas as extensões percorridas foram modificadas: 100, 400, 800, 1500 metros e 100 metros com barreiras. Além disso, em homenagem ao herói grego Feidípedes, que em 490 a.C. teria percorrido 42,195 km para levar a Atenas a notícia da vitória dos gregos sobre os persas, foi introduzida a prova da maratona. Entre velhas e novas modalidades, uma característica a destacar: a valorização das competições individuais em detrimento das competições em equipes. Ecos do novo individualismo triunfante.
Cem anos depois, em 1996, a cidade de Atenas se candidatou a sediar novamente os Jogos Olímpicos. Para essa data comemorativa, no entanto, a escolhida foi a cidade norte-americana de Atlanta. Não era uma vaga referência à Grécia Antiga ou aos seus valores idealizados. Era a sede da poderosa Coca-Cola e da rede de televisão CNN, o que revelava o percurso dos Jogos em um século de edições: um grande espetáculo de mídia perpassado por inúmeros interesses econômicos. Quatro anos antes, em Barcelona, o Comitê Olímpico Internacional permitira a presença de atletas profissionais em todas as modalidades. Nos Jogos de Atlanta de 1996, contavam-se centenas de países representados, milhares de atletas, milhões de telespectadores e bilhões de dólares. A ilusão do amadorismo não sobreviveu à Nova Ordem Mundial.
Como em todas as modalidades lúdicas, durante os Jogos Olímpicos cria-se uma noção específica de temporalidade. O tempo do ludus promove, assim, a ilusão: iludere. Como em todos os jogos, há possibilidades de trapaças, de desonestidades, de doppings. Na lógica daqueles que participam dos jogos, de jogadores a torcedores, o trapaceiro não é um inimigo, é apenas um adversário ruim, que quer a vitória a qualquer preço, mas, no fundo, admite a importância dos jogos. Nos valores específicos criados pelos jogos, o verdadeiro inimigo, o desmancha prazeres é aquele que, no momento de maior excitação e entorpecimento, provocados pela vitória ou pela derrota, profere a sentença de morte, dizendo: “Mas isso não tem importância, é apenas um jogo!”
Boletim Mundo Ano 12 n° 4
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