O petróleo é nosso”, dizia o escritor Monteiro Lobato, ícone do movimento nacionalista que desembocou na criação da Petrobras, pelo então presidente Getúlio Vargas, mediante o Decreto Lei nº 2004, de 3 de outubro de 1953. O decreto nacionalizava as reservas, conhecidas ou não, e concedia à empresa estatal os direitos exclusivos de sua exploração.
Durante quase cinco décadas, o Brasil conviveu com essa idéia como uma espécie de tabu. Mas as coisas começaram a mudar a partir de 1995, graças a uma série de leis aprovadas pelo Congresso que abriam as portas para a extração de petróleo por empresas privadas.
E o debate foi reacendido agora, em agosto, como conseqüência de um leilão de reservas promovido pela Agência Nacional do Petróleo (ANP), nos dias 17 e 18 – ironicamente, às vésperas do 50º aniversário da morte de Vargas .
As reservas do Brasil somam 16 bilhões de barris, suficientes para assegurar seu consumo interno, nos níveis atuais, durante 18 anos, e a auto-suficiência em 2005 ou 2006. Em grande parte, essa situação relativamente confortável se deve à Petrobras, que provou ser capaz de gerar uma tecnologia sem concorrentes no mundo de extração de jazidas sob águas profundas.
Apesar dessa história, o monopólio estatal começou a ser questionado logo após a eleição de Fernando Henrique Cardoso à presidência, em 1994, sob o argumento de que a abertura à competição internacional contribuiria para aumentar a eficácia da própria Petrobras e para diminuir o preço do combustível praticado no país.
Em 1995, o Congresso aprovou a Emenda Constitucional nº 9, que extinguiu o monopólio da exploração pela Petrobrás. Em 1997, a lei 9.478, que criou a ANP, regulamentou a decisão.
Como lembram os especialistas César Benjamin e Paulo Metri, “ao contrário de outros países que também passaram a admitir a participação de empresas estrangeiras na exploração de petróleo, a mudança feita no Brasil não incluiu dispositivos que garantissem a liderança do setor por uma empresa nacional (na Noruega, por exemplo, a estatal Statoil continuou tendo prioridade para receber as melhores áreas, sem precisar participar de licitações)”. Em princípio, a Petrobras ficou confinada a 397 áreas: 231 correspondiam a campos em produção, 51 a campos em desenvolvimento e 115 a blocos em prospecção, que passaram a ser chamados “blocos azuis”.
Todas as demais áreas foram entregues à ANP para serem leiloadas. A Petrobras recebeu prazo de três anos (depois estendido para cinco) para colocar em produção os campos em desenvolvimento e demonstrar a viabilidade comercial dos blocos em prospecção, sob pena de ter de devolvê-los também à ANP. O prazo venceu em agosto de 2003. Ainda de acordo com Benjamin, a Petrobras descobriu 6,6 bilhões de barris em áreas que seriam devolvidas à ANP. “As reservas comprovadas brasileiras aumentaram em mais de 50%. Mas não houve tempo para perfurar tudo. Parte significativa dos blocos azuis teve de ser entregue à ANP, entre as quais 70% do BC-60 da Bacia de Campos (na área norte, correspondente a 30% do bloco, já foram encontrados 2 bilhões de barris) e o Espírito Santo número 12 (onde se estima existirem 4 bilhões de barris).”
No fim das contas, vastas áreas das bacias sedimentares brasileiras foram abertas às licitações.
Nos leilões, a Petrobras disputa com empresas privadas nacionais e transnacionais os direitos de exploração nessas áreas. Durante o governo FHC, foram realizadas quatro rodadas de leilões, sempre sob fortes críticas do PT. A quinta rodada, preparada no governo FHC, foi realizada já depois da posse de Lula, que a manteve alegando que não desejava interromper um processo já iniciado. Havia um compromisso de campanha de Lula de suspender novos leilões. Apesar disso, o Ministério das Minas e Energia determinou que a ANP deflagrasse a sexta rodada de licitação de petróleo e gás, incluindo os “blocos azuis”.
A lei em vigor estipula que todo o petróleo e gás extraído passa a pertencer às empresas vencedoras das licitações, que ganham automaticamente o direito de exportar a quantidade que desejarem. O governo pode, em caso de emergência, exigir prioridade ao abastecimento do mercado interno por trinta dias, mas pagando o preço em vigor no mercado internacional.
Para a sexta rodada, a ANP habilitou 24 empresas: nove do Brasil (incluindo a Petrobras), sete da Europa, seis dos Estados Unidos e Canadá, uma da Ásia e uma da Oceania. Foram oferecidos 913 blocos, distribuídos em 29 setores de 12 bacias sedimentares, totalizando 202.739 km2. Cada bloco tem um preço mínimo cujos valores variam de R$ 30 milhões (caso de um dos blocos situado na bacia Sergipe-Alagoas), a R$ 10 mil (bacias maduras do Espírito Santo, localizadas em terra). Entre os blocos com preços mínimos mais elevados estavam 68 “blocos azuis” devolvidos pela Petrobras em 2002.
A decisão da ANP provocou um dia de paralisação do setor, puxada pela Federação Única dos Petroleiros e manifestações de protesto em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, além de ter causado uma batalha jurídica, graças a uma liminar do governador do estado do Paraná, Roberto Requião, junto ao Supremo Tribunal Federal. No fim, o leilão foi realizado, mas a ANP conseguiu repassar a concessão de apenas 154 blocos dos 913 ofertados. Dos R$ 665 milhões arrecadados, R$ 437 milhões foram de ofertas da própria Petrobras, por 107 blocos.
A Petrobras perdeu um bloco estratégico, localizado em águas profundas da bacia de Campos, próximo a áreas exploratórias da companhia. O bloco foi adquirido por um consórcio de empresas estrangeiras, formado pelas americanas Devon Energy e Kerr-McGee Corporation, a canadense EnCana, e a coreana SK Corporation. Especialistas avaliam que os 806 blocos restantes não despertaram o interesse dos investidores por estarem em setores chamados de “novas fronteiras”, ou seja, que são pouco explorados, exigindo mais gastos em pesquisas e desenvolvimento tecnológico.
Lula já se comprometeu a organizar novas rodadas de licitações. Aqueles que se posicionam contra os leilões argumentam que o petróleo é um bem estratégico, e que por isso deve merecer tratamento especial por parte do Estado (argumento central da liminar de Requião). Os defensores dos leilões mantêm os argumentos esgrimidos pelo governo FHC no momento da quebra do monopólio estatal. E existe, é claro, o pano de fundo ideológico, que contrapõe os nacionalistas, defensores do “Estado forte”, como era o caso de Monteiro Lobato e de Getúlio Vargas, aos liberais que pregam a integração do Brasil no mundo globalizado.
Os dados estão lançados.
Boletim Mundo Ano 12 n°5
Nenhum comentário:
Postar um comentário