sábado, 10 de setembro de 2011

“NOVA ORDEM” DE BUSH PROVOCA CISMA NO OCIDENTE

“Que tipo de ordem mundial nós queremos?”, indagou Joschka Fischer, ministro do Exterior da Alemanha, na iminência da invasão americana do Iraque, em março de 2003. (...) Como interpretou Dominique de Villepin, ministro do Exterior da França, o conflito foi menos sobre o Iraque que sobre “duas visões de mundo”. (...) Um grande cisma filosófico abriu-se no interior do Ocidente e o antagonismo mútuo ameaça debilitar os dois lados da comunidade transatlântica. Para a Europa e os Estados Unidos, a divisão estratégica é suficientemente ruim. Mas, e se as suas divergências sobre a ordem mundial infectarem o restante do que conhecemos como o Ocidente liberal? Continuaria o Ocidente a ser ainda o Ocidente?
(Robert Kagan, “America’s crisis of legitimacy”, Foreign Affairs, march/april 2004, p. 65-66)
Nossos exércitos não chegaram a suas cidades e terras como conquistadores ou inimigos, mas como libertadores (...). Não é a vontade de nosso governo impor-lhes instituições estrangeiras (...). Nossa vontade é que vocês possam prosperar tanto quanto no passado, quando suas terras eram férteis e seus ancestrais ofereceram ao mundo a literatura, a ciência e a arte, e quando Bagdá foi uma das maravilhas do mundo. (...) É nossa  esperança que se realizem as aspirações dos seus filósofos e escritores e que uma vez mais o povo de Bagdá floresça, experimentando a riqueza e desenvolvendo o espírito sob instituições compatíveis com suas leis sagradas e os ideais de sua raça.”
George Bush, dirigindo-se aos iraquianos após a ocupação americana de 2003, certo? Errado: o discurso, proferido em 19 de março de 1917, é do general F. S. Maude, comandante das forças britânicas que conquistaram a Mesopotâmia.
O paralelo entre a Grã-Bretanha imperial  que emergiu vitoriosa das Guerras Napoleônicas, em 1815, e, por mais de um século, expandiu a sua influência mundial  e os Estados Unidos do pós-guerra não é novo, mas tornou-se cada vez mais discutido após o 11 de setembro de 2001.
A Doutrina Bush deflagrou uma estratégia unilateralista, sustenta o direito à guerra preventiva e prega a mudança de regimes nos países que desafiam a hiper-potência. Ela aparece como a visão de mundo de um poder imperial capaz de impor uma “nova ordem” no sistema  internacional.
A “ordem britânica” do passado estabeleceu, por meio do padrão ouro, uma moldura para a expansão do comércio e dos investimentos internacionais. A “ordem americana” do presente sustenta, por meio do dólar e das instituições econômicas multilaterais, um ambiente propício aos negócios das corporações transnacionais. A “Pax Britânica” garantiu um século inteiro sem conflagrações gerais entre as potências, até a Primeira Guerra Mundial. A “Pax Americana” soldou a unidade estratégica do Ocidente, derrotou sem guerra o desafio soviético e elegeu o terrorismo internacional como nova ameaça a ser combatida. Os neoconservadores republicanos, que dão as cartas da política externa  americana, interpretam a Doutrina Bush como um desenvolvimento da Doutrina Truman de 1947 e enxergam o Império Americano como sucessor do Império Britânico.
A república americana nasceu rejeitando as monarquias européias e desprezando a complexa e cínica “política de poder” do Velho Mundo. Por um lado, a relativa segurança proporcionada pelo oceano manifestou-se sob a forma de uma forte tendência ao isolacionismo, que era uma das expressões dessa rejeição da Europa. Por outro, os valores republicanos da Revolução Americana traduziram-se, de tempos em tempos, como um projeto de “reforma do mundo” destinado a difundir as idéias da liberdade e da igualdade.
Sob o influxo dessas tendências contraditórias, a política externa dos Estados Unidos oscilou entre os extremos do isolacionismo e do cruzadismo.
O presidente Woodrow Wilson (1913-21) combateu o isolacionismo até conseguir engajar os Estados Unidos ao lado da Grã-Bretanha e da França na Primeira Guerra Mundial (1914-18). No fim do conflito, seu célebre discurso dos Quatorze Pontos traçou o caminho de uma “paz sem vencedores ou vencidos”, sem anexações territoriais ou reparações, coroada por uma organização mundial que impedisse a eclosão de novas guerras. A Conferência de Paz de Paris e o Tratado de Versalhes frustraram esses ideais. O Senado americano, sob uma maioria isolacionista, vetou a participação dos Estados Unidos na Liga das Nações, esvaziando-a de sentido. Mas Wilson deixou um legado internacionalista que seria retomado por Franklin Roosevelt e resultaria, após a Segunda Guerra Mundial (1939-45), na criação da ONU.
O internacionalismo wilsoniano bebe na fonte do projeto cruzadista de “reforma do mundo” e proclama o princípio da difusão da liberdade mas, no fim das contas, move-se no campo do realismo. A Liga das Nações imaginada por Wilson era um diretório de potências investido da missão de zelar pela paz mundial. A ONU de Roosevelt foi moldada com a mesma argamassa, tanto que seu Conselho de Segurança refletia as realidades geopolíticas do pós-guerra.
Essa versão do internacionalismo americano baseava-se no multilateralismo, isto é, na noção de que o sistema de Estados funcionaria a partir de princípios comuns e decisões coletivas.
A Guerra Fria removeu o terreno para o funcionamento da visão de Roosevelt, de um “diretório de potências” – o Conselho de Segurança – que asseguraria a paz e a estabilidade internacionais. Mas o multilateralismo expressou-se, sob forma diferente, no bloco geopolítico liderado por Washington. A OTAN soldou a unidade estratégica entre os Estados Unidos e a Europa Ocidental. O Plano Marshall deflagrou a reconstrução européia.
A Comunidade Européia (atual União Européia) substituiu as rivalidades nacionais pela fusão de soberanias entre os aliados ocidentais dos Estados Unidos. As instituições de Bretton Woods – o FMI, o Banco Mundial e o GATT (atual OMC) – conferiram ordem ao sistema econômico do Ocidente.
Os neoconservadores republicanos são herdeiros devassos da tradição de Wilson. Eles adotam o internacionalismo mas rejeitam o multilateralismo. Desde que o 11 de setembro de 2001 proporcionou-lhes  a oportunidade de conduzir a política externa da hiperpotência, os Estados Unidos engajaram-se numa cruzada de “reforma do mundo” que se traduz nos termos da expansão imperial e militar.
Os três anos de Doutrina Bush afetaram profundamente as relações internacionais.
O cisma entre Estados Unidos e Europa, apenas disfarçado pelas “relações carnais” de Londres com Washington, ameaça deteriorar de vez a OTAN e coloca em risco o próprio futuro da ONU. A “guerra ao terror” proclamada por Bush estimula Israel a sabotar qualquer processo de paz no Oriente Médio e fornece o pretexto para a Rússia identificar falsamente o separatismo na Chechênia ao terrorismo global de Osama Bin Laden. A presença de tropas americanas no Afeganistão e a prolongada ocupação do Iraque desestabilizam o mundo muçulmano, alimentando o fundamentalismo islâmico.
A “nova ordem” de Bush é rejeitada praticamente no mundo inteiro. Carente de legitimidade, ela se baseia apenas no poder militar global da hiperpotência. Mas um edifício não pode se equilibrar sobre um único pilar.
A POLÍTICA EXTERNA COMO CRUZADA
Um resultado desse desprezo americano pela política da força foi que, historicamente, os Estados Unidos delinearam uma distinção radical entre a guerra e a paz no seu enfoque da política externa. A paz foi caracterizada como um estado de harmonia entre as nações; a política da força, por outro lado, era considerada anormal e a guerra, um crime. Em tempos de paz, devia-se prestar muito pouca ou nenhuma atenção aos problemas do exterior (...).
Uma vez que os Estados Unidos eram provocados e tinham que recorrer à força, o emprego dessa força se justificava em termos de princípios morais (...).
Somente se podia justificar a guerra pressupondo nobres propósitos e destruindo completamente o inimigo imoral que ameaçava a integridade, ou até a existência, de tais princípios. O poder americano tinha que ser um poder “justo” (...). Um segundo resultado do desprezo pela política da força era, em conseqüência, que a aversão nacional à violência converteu-se, eventualmente, em uma glorificação nacional da violência e as guerras se tornaram cruzadas ideológicas tendentes a destruir o Estado inimigo e, assim, enviar seu povo a um reformatório democrático.
(John Spanier, La política exterior norte americana a partir de la Segunda Guerra Mundial, Buenos Aires, Grupo Editor Latino americano, 1991, p. 22-23)

Boletim Mundo Ano 12 n° 6

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