(Robert Kagan, “America’s crisis of legitimacy”, Foreign Affairs, march/april 2004, p. 65-66)
Nossos exércitos não chegaram a suas cidades e terras como conquistadores ou inimigos, mas como libertadores (...). Não é a vontade de nosso governo impor-lhes instituições estrangeiras (...). Nossa vontade é que vocês possam prosperar tanto quanto no passado, quando suas terras eram férteis e seus ancestrais ofereceram ao mundo a literatura, a ciência e a arte, e quando Bagdá foi uma das maravilhas do mundo. (...) É nossa esperança que se realizem as aspirações dos seus filósofos e escritores e que uma vez mais o povo de Bagdá floresça, experimentando a riqueza e desenvolvendo o espírito sob instituições compatíveis com suas leis sagradas e os ideais de sua raça.”
George Bush, dirigindo-se aos iraquianos após a ocupação americana de 2003, certo? Errado: o discurso, proferido em 19 de março de 1917, é do general F. S. Maude, comandante das forças britânicas que conquistaram a Mesopotâmia.
O paralelo entre a Grã-Bretanha imperial que emergiu vitoriosa das Guerras Napoleônicas, em 1815, e, por mais de um século, expandiu a sua influência mundial e os Estados Unidos do pós-guerra não é novo, mas tornou-se cada vez mais discutido após o 11 de setembro de 2001.
A Doutrina Bush deflagrou uma estratégia unilateralista, sustenta o direito à guerra preventiva e prega a mudança de regimes nos países que desafiam a hiper-potência. Ela aparece como a visão de mundo de um poder imperial capaz de impor uma “nova ordem” no sistema internacional.
A “ordem britânica” do passado estabeleceu, por meio do padrão ouro, uma moldura para a expansão do comércio e dos investimentos internacionais. A “ordem americana” do presente sustenta, por meio do dólar e das instituições econômicas multilaterais, um ambiente propício aos negócios das corporações transnacionais. A “Pax Britânica” garantiu um século inteiro sem conflagrações gerais entre as potências, até a Primeira Guerra Mundial. A “Pax Americana” soldou a unidade estratégica do Ocidente, derrotou sem guerra o desafio soviético e elegeu o terrorismo internacional como nova ameaça a ser combatida. Os neoconservadores republicanos, que dão as cartas da política externa americana, interpretam a Doutrina Bush como um desenvolvimento da Doutrina Truman de 1947 e enxergam o Império Americano como sucessor do Império Britânico.
A república americana nasceu rejeitando as monarquias européias e desprezando a complexa e cínica “política de poder” do Velho Mundo. Por um lado, a relativa segurança proporcionada pelo oceano manifestou-se sob a forma de uma forte tendência ao isolacionismo, que era uma das expressões dessa rejeição da Europa. Por outro, os valores republicanos da Revolução Americana traduziram-se, de tempos em tempos, como um projeto de “reforma do mundo” destinado a difundir as idéias da liberdade e da igualdade.
Sob o influxo dessas tendências contraditórias, a política externa dos Estados Unidos oscilou entre os extremos do isolacionismo e do cruzadismo.
O presidente Woodrow Wilson (1913-21) combateu o isolacionismo até conseguir engajar os Estados Unidos ao lado da Grã-Bretanha e da França na Primeira Guerra Mundial (1914-18). No fim do conflito, seu célebre discurso dos Quatorze Pontos traçou o caminho de uma “paz sem vencedores ou vencidos”, sem anexações territoriais ou reparações, coroada por uma organização mundial que impedisse a eclosão de novas guerras. A Conferência de Paz de Paris e o Tratado de Versalhes frustraram esses ideais. O Senado americano, sob uma maioria isolacionista, vetou a participação dos Estados Unidos na Liga das Nações, esvaziando-a de sentido. Mas Wilson deixou um legado internacionalista que seria retomado por Franklin Roosevelt e resultaria, após a Segunda Guerra Mundial (1939-45), na criação da ONU.
O internacionalismo wilsoniano bebe na fonte do projeto cruzadista de “reforma do mundo” e proclama o princípio da difusão da liberdade mas, no fim das contas, move-se no campo do realismo. A Liga das Nações imaginada por Wilson era um diretório de potências investido da missão de zelar pela paz mundial. A ONU de Roosevelt foi moldada com a mesma argamassa, tanto que seu Conselho de Segurança refletia as realidades geopolíticas do pós-guerra.
Essa versão do internacionalismo americano baseava-se no multilateralismo, isto é, na noção de que o sistema de Estados funcionaria a partir de princípios comuns e decisões coletivas.
A Guerra Fria removeu o terreno para o funcionamento da visão de Roosevelt, de um “diretório de potências” – o Conselho de Segurança – que asseguraria a paz e a estabilidade internacionais. Mas o multilateralismo expressou-se, sob forma diferente, no bloco geopolítico liderado por Washington. A OTAN soldou a unidade estratégica entre os Estados Unidos e a Europa Ocidental. O Plano Marshall deflagrou a reconstrução européia.
A Comunidade Européia (atual União Européia) substituiu as rivalidades nacionais pela fusão de soberanias entre os aliados ocidentais dos Estados Unidos. As instituições de Bretton Woods – o FMI, o Banco Mundial e o GATT (atual OMC) – conferiram ordem ao sistema econômico do Ocidente.
Os neoconservadores republicanos são herdeiros devassos da tradição de Wilson. Eles adotam o internacionalismo mas rejeitam o multilateralismo. Desde que o 11 de setembro de 2001 proporcionou-lhes a oportunidade de conduzir a política externa da hiperpotência, os Estados Unidos engajaram-se numa cruzada de “reforma do mundo” que se traduz nos termos da expansão imperial e militar.
Os três anos de Doutrina Bush afetaram profundamente as relações internacionais.
O cisma entre Estados Unidos e Europa, apenas disfarçado pelas “relações carnais” de Londres com Washington, ameaça deteriorar de vez a OTAN e coloca em risco o próprio futuro da ONU. A “guerra ao terror” proclamada por Bush estimula Israel a sabotar qualquer processo de paz no Oriente Médio e fornece o pretexto para a Rússia identificar falsamente o separatismo na Chechênia ao terrorismo global de Osama Bin Laden. A presença de tropas americanas no Afeganistão e a prolongada ocupação do Iraque desestabilizam o mundo muçulmano, alimentando o fundamentalismo islâmico.
A “nova ordem” de Bush é rejeitada praticamente no mundo inteiro. Carente de legitimidade, ela se baseia apenas no poder militar global da hiperpotência. Mas um edifício não pode se equilibrar sobre um único pilar.
A POLÍTICA EXTERNA COMO CRUZADA
Um resultado desse desprezo americano pela política da força foi que, historicamente, os Estados Unidos delinearam uma distinção radical entre a guerra e a paz no seu enfoque da política externa. A paz foi caracterizada como um estado de harmonia entre as nações; a política da força, por outro lado, era considerada anormal e a guerra, um crime. Em tempos de paz, devia-se prestar muito pouca ou nenhuma atenção aos problemas do exterior (...).
Uma vez que os Estados Unidos eram provocados e tinham que recorrer à força, o emprego dessa força se justificava em termos de princípios morais (...).
Somente se podia justificar a guerra pressupondo nobres propósitos e destruindo completamente o inimigo imoral que ameaçava a integridade, ou até a existência, de tais princípios. O poder americano tinha que ser um poder “justo” (...). Um segundo resultado do desprezo pela política da força era, em conseqüência, que a aversão nacional à violência converteu-se, eventualmente, em uma glorificação nacional da violência e as guerras se tornaram cruzadas ideológicas tendentes a destruir o Estado inimigo e, assim, enviar seu povo a um reformatório democrático.
(John Spanier, La política exterior norte americana a partir de la Segunda Guerra Mundial, Buenos Aires, Grupo Editor Latino americano, 1991, p. 22-23)
Boletim Mundo Ano 12 n° 6
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