Ricardo Antunes
Em 24 de agosto completou-se meio século da morte de Getúlio Vargas, aquele que escreveu em sua carta-testamento, poucos minutos antes de se suicidar, que “dava o primeiro passo no caminho da eternidade e saía da vida para entrar na história”.
O varguismo nasceu com a chamada “Revolução de 30”, movimento político-militar que foi algo mais que um golpe e menos do que uma revolução. O levante que conduziu Vargas ao poder marcou o fim do domínio agrário-exportador dos “barões do café” e o nascimento de um projeto industrial ancorado num Estado forte e numa política nacionalista.
Vitorioso, o estancieiro dos pampas foi buscar nas várias oligarquias e frações dissidentes a base para liderar um projeto político que possibilitasse o salto definitivo do Brasil para o universo urbano-industrial. Mas era necessária também uma nova forma de relacionar-se com a classe trabalhadora: tratava-se de tirá-la da triste condição de “caso de polícia”, nas palavras do presidente deposto em 1930, Washington Luís, trazendo o trabalho para o centro da vida nacional. É esse empreendimento que conferiu a Vargas o título de “pai dos pobres” e o converteu no mais importante representante da classe dominante brasileira em toda a história republicana.
Para implementar o projeto industrial, nacionalista e estatal, que veio a se desenvolver ao longo das décadas seguintes, Vargas precisava contar com o apoio dos trabalhadores urbanos, num momento de fortes dissensões entre as elites agrárias exportadora e não-exportadora e os emergentes setores industriais. O suporte dos trabalhadores conferia a Vargas o equilíbrio necessário para manter o seu projeto de dominação burguesa de novo tipo. Tal qual um “bonaparte”, Vargas precisava da classe operária como contra-peso para a sua relação com as classes que de fato ele representava.
É aqui que reside o papel central da legislação social e trabalhista criada sob o governo Vargas, que culminou na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1943. O varguismo demonstrou enorme competência ao captar algumas das principais reivindicações dos trabalhadores urbanos, reelaborá-las e devolvê-las como uma “dádiva do Estado”.
Mas, atenção: para atrair a massa trabalhadora foi preciso reprimir brutalmente as lideranças operárias e sindicais de esquerda. O varguismo foi profundamente autocrático em relação aos comunistas, anarco-sindicalistas e socialistas, todos alvo de intensa repressão, especialmente durante o Estado Novo (1937-45).
Desde as primeiras décadas do século XX, o movimento operário lutava pela legislação social que garantisse os direitos do trabalho, como se pode constatar, por exemplo, na greve geral de 1917, brutalmente reprimida pela República Velha. Mas a legislação trabalhista de Vargas foi essencial para alavancar o salto de industrialização no país. Foi esse, aliás, um dos motivos centrais da criação do salário mínimo: era necessário estabelecer um patamar salarial para a acumulação industrial no Brasil, além de dotar o nosso país de um mercado interno sólido.
Que, mais tarde, esse salário tenha se degradado por completo é uma outra história...
A legislação sindical de Vargas estava voltada para assegurar o controle estatal sobre o movimento operário.
A chamada Lei de Sindicalização, de 1931, impedia a participação dos estrangeiros nas direções sindicais, além de proibir atividades políticas e ideológicas dos sindicatos.
Mas, contraditoriamente, a mesma lei que reprimia os sindicatos autônomos existentes abriu a outras categorias um caminho para organizarem-se em sindicatos.
Ao decretar sua legislação social, Vargas circunscreveu-a aos trabalhadores filiados aos sindicatos oficiais, desestruturando desse modo o sindicalismo autônomo existente no pré-1930. O sindicato varguista tornou-se instrumento assistencialista, com centros de saúde, serviços, advogados, lazer etc. O imposto sindical e a lei de enquadramento sindical consolidaram o domínio do Ministério do Trabalho sobre os sindicatos.
Sob o trabalhismo varguista, de algum modo, a questão social tornou-se uma questão política, ainda que freqüentemente se recorresse à repressão policial.
Mas a legislação social do trabalho, através da CLT, fixou um conjunto de direitos fundamentais do trabalho que, hoje, o governo Lula parece propenso a destruir.
Na era da globalização da economia, os capitais exigem dos governos nacionais a flexibilização da legislação do trabalho, isto é, o desmonte dos direitos que foram conquistados ao longo das lutas operárias. É nessa direção que segue a reforma desenhada no Fórum Nacional do Trabalho, com representantes das centrais sindicais, entidades empresariais e do governo. Certamente, ela é um retrocesso quando comparada à luta dos trabalhadores, realizada ao longo dos anos 80, pela autonomia e liberdade sindicais. Inicialmente, o projeto do governo foi dividido em duas partes: a reforma sindical, cuja discussão está em curso, e a reforma trabalhista, que ficou para depois das eleições municipais.
A reforma trabalhista pretende restringir os direitos dos trabalhadores. A reforma sindical, por seu lado, destina-se a fortalecer as cúpulas sindicais em detrimento das bases. Concebida pela CUT e a Força Sindical, essa reforma transfere às centrais sindicais o poder de negociação de direitos dos trabalhadores, eliminando a participação dos sindicatos em suas bases e eliminando a figura da assembléia sindical de trabalhadores.
O reconhecimento de centrais sindicais passa a depender de uma série de exigências de representação que, na prática, virtualmente inviabilizam a criação de novas centrais. Assim, ferindo a liberdade de organização sindical, a reforma perpetua o poder das atuais centrais. Além disso, prevê a gradual substituição do imposto sindical por uma Contribuição de Negociação Coletiva, o que significa trocar gato por lebre e ignorar o princípio do sindicalismo autônomo, que é a cotização voluntária dos trabalhadores para a manutenção dos sindicatos.
No conjunto, melhor seria chamá-la de uma contra-reforma, pois restringe a ação autônoma dos trabalhadores e, no contexto da globalização, concede às burocracias encasteladas nas centrais sindicais o poder de desestruturar direitos dos trabalhadores. Triste é o país em que um governo burguês criou, sob pressão operária, a legislação social e um governo de origem operária, sob pressão burguesa, parece servilmente disposto a destruí-la.
Boletim Mundo Ano 12 n° 5
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