sábado, 10 de setembro de 2011

DO VIETNÃ AO IRAQUE, O DECLÍNIO DA MÍDIA AMERICANA

A imprensa americana desafiou o poder e revelou os segredos da guerra na Indochina. Três décadas depois, ecoou as mentiras da Casa Branca para legitimar a guerra de Bush.
Newton Carlos

A 13 de junho de 1971 o presidente Richard Nixon, dos Estados Unidos, apanhou curioso  a sua edição dominical do New York Times. Num alto de página estava a primeira de uma série de reportagens sobre os arquivos oficiais contando como começou e se desenvolveu, até tornar-se tragédia nacional, o envolvimento americano no Vietnã. Vinham à luz, por obra de um analista militar do próprio governo, Daniel Ellsberg, os “Pentagon Papers”, os papéis do Pentágono, contendo uma montanha de documentos que se chocavam com versões usadas para justificar a guerra perante à opinião pública.
Mas o interesse de Nixon era outro. Queria ver fotos do casamento de sua filha Tricia e dele próprio comandando a festa no Rose Garden, a ala social da Casa Branca, também publicadas no alto da primeira página. Por meio de conversa gravada com seu secretário de Estado, Alexander Haig, se soube depois que ele sequer leu a reportagem assinada por Neil Sheehan.
Ávido por checar as repercussões de um ato familiar, Nixon foi incapaz de perceber na hora que se abria um processo, conduzido pela mídia, cujo desfecho colocaria a Guerra do Vietnã no banco dos réus. Não se tratou só da publicação dos “papers”. Talvez mais importante tenha sido a luta pelo direito de publicá-los.
Na segunda-feira, 14 de junho, John Mitchell, ministro da Justiça, mandou que o New York Times parasse por ali. Nada de tornar pública a documentação inteira. Ato contínuo, Mitchel conseguiu ordem judicial bloqueando a publicação dos “papers” no jornal responsável pelo “furo”. A ordem foi depois estendida ao Washington Post, quando ele decidiu entrar no assunto. Travou-se uma batalha legal com tonalidades épicas. A 30 de junho a Corte Suprema, numa decisão histórica de seis votos contra três, levantou o bloqueio. Essa foi a mais importante decisão judicial em matéria de liberdade de imprensa na história dos Estados Unidos.
Casa Branca versus mídia. No Vietnã, os Estados Unidos travaram uma guerra televisada, a primeira conduzida sem censura militar. A mídia jogou um papel fundamental, explorando a fundo as contradições no âmbito do poder e os significados das decisões de cúpula. A televisão mostrava os horrores ao vivo.
Hoje não é mais segredo que Robert McNamara, o secretário de Defesa na época da escalada, vivia atormentado por sérias dúvidas. A ele se deveram os estudos que resultaram nos “papers”.
A divulgação partiu, afinal, das dores de consciência de um acadêmico, Daniel Ellsberg, a serviço  do aparato militar. A mídia deu curso à maré anti-guerra, fazendo com que ela aumentasse de volume. A primeira unidade de combate dos Estados Unidos a pisar em solo vietnamita, a 8 de março de 1965, foi um batalhão de “marines” que se instalou na base de Da Nang com a missão de impedir que ela caísse em mãos dos vietcongs, a guerrilha comunista que atuava no Vietnã do Sul. Uma missão recomendada pelo general Westmoreland, arquiteto militar da escalada que acabou colocando meio milhão de soldados americanos no Vietnã. No fim, quase cinqüenta mil não voltaram.
Em novembro de 1969 os americanos (e o resto do mundo) tomaram conhecimento do massacre de MiLay, ocorrido em março de 1968. Numa das missões conhecidas como “search and destroy”, perseguir e destruir, uma brigada do Exército americano entrou atirando numa aldeia vietnamita, matando cerca de 300 civis desarmados, inclusive velhos, mulheres e crianças.
O fato foi relatado a Seymour Hearsh, estrela do jornalismo investigativo, por Ron Ridenhour, veterano do Vietnã. Antes de entrevistar-se com Hearsh, e disposto a tornar o massacre conhecido de qualquer jeito, Ridenhour pediu ao Congresso, Casa Branca e Pentágono que ele fosse investigado. Nada feito. Conseguiu acolhida na mídia.
E agora, com o Iraque? Estudo do centro de pesquisas Pew, dos Estados Unidos, constatou que 51% dos profissionais da informação acham que sua profissão “evolui em má direção”. Os escândalos com jornalistas do New York Times e do USA Today falsificando reportagens e as “dificuldades” da mídia em criticar o governo Bush depois dos atentados de 2001 provocaram “mal estar” entre jornalistas americanos.
Até que uma das estrelas do New York Times, Judith Miller, admitiu que Ahmed Chalabi foi o informante principal de várias matérias de primeira página, escritas por ela, sobre a existência de armas de destruição maciça no Iraque. Chalabi, antes xodó do Pentágono, tido pelos arquitetos da invasão como o exilado ideal para assumir o poder pós-Saddam Hussein, acabou se consagrando como vigarista. Usá-lo como fonte era servir ao Pentágono, ao qual ele servia na época, em troca de pagamento em dólares. O jornal que ecoa as mentiras de um informante pago pelo Pentágono é o mesmo que, no passado, desafiou o governo para publicar os “Pentagon Papers”.
A 26 de maio o New York Times publicou um “mea culpa”. Num editorial, admitiu com amargura que foram identificadas “várias instâncias de coberturas feitas sem o rigor necessário”. Determinados artigos, considerados “problemáticos”, dependeram pelo menos em parte de um ciclo de informantes iraquianos interessados na derrubada de Saddam Hussein. Chalabi, por exemplo, “fonte ocasional de artigos desde 1991”, só deixou de ser procurado quando caiu em desgraça junto ao governo Bush.
A versão inicial do Pentágono sobre a “heróica” soldada Jessica Lynch, supostamente resgatada das mãos de ferozes iraquianos por corajosa operação de comandos, recebeu tratamento “vip” no Washington Post. Tudo montagem.
A relação de “barrigas” – os erros graves de informação, no jargão jornalístico – é grande. Nunca apareceram os supostos “campos secretos” no Iraque, destinados  a treinar “terroristas islâmicos” e produzir armas biológicas.
Um exilado que se dizia engenheiro civil “plantou” em jornais a “confissão” de que teria trabalhado na construção de “instalações secretas”, que seriam depósitos subterrâneos de armas atômicas, químicas e biológicas. A Casa Branca conseguiu publicar a “informação” de que Saddam Hussein estava atrás de componentes de armas atômicas.
Cientistas iraquianos capturados garantiam, e eram citados como boas fontes, que “armas ilícitas estiveram escondidas até às vésperas da invasão”. Como se vê, sobretudo o ano de 2003, com esticadas em 2004, não foi o mais glorioso na história da mídia americana. Como disse um especialista, ela “surfou” na onda de nacionalismo que acompanhou a Guerra do Iraque.
A sociedade americana nunca esteve tão dividida e a polarização também afetou a mídia. Ela se tornou menos isenta e mais “partidarista”, sobretudo com a emergência de uma direita republicana fundamentalista.
“Os comunistas tinham o Pravda, os republicanos tem a Fox”, comparam grupos pacifistas americanos, referindo-se ao engajamento da Fox News, de grande audiência, nas causas do governo Bush.

Boletim Mundo Ano 12 n° 6

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