Acentuamos a importância das iniciativas para facilitar o surgimento de novos centros dinâmicos de crescimento no Sul através de passos adicionais para a integração dessas economias emergentes com outros países em desenvolvimento. Isso pode ser alcançado (...) por meio de um Sistema Global de Preferências Comerciais mais abrangente entre os países em desenvolvimento (...).
(Unctad XI, “O espírito de São Paulo”, 13-18 de junho de 2004)
A XI Sessão da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), recentemente realizada em São Paulo, ecoou as esperanças de Lula, anunciando “uma nova geografia do comércio mundial”. Essa “nova geografia” estaria sendo desenhada pelo crescimento econômico dos países do Sul e pela ampliação dos fluxos de intercâmbio Sul-Sul.
À primeira vista, Lula e a Unctad registram os sinais de uma grande novidade.A participação dos países desenvolvidos no comércio mundial saltou de cerca de 63% para nada menos que 72% entre o imediato pós-guerra e o início da década de 90, mas retrocedeu, no último decênio para algo em torno de 65%. Ou seja: a globalização proporcionou ao resto do mundo as condições para um significativo avanço, em detrimento dos países desenvolvidos.
Entretanto, uma análise mais apurada revela que essa é uma formulação simplista, pois a expansão da parte do Sul no comércio mundial deve-se, essencialmente, ao salto das exportações asiáticas. Uma parte menor dessa expansão é fruto do crescimento das exportações da América Latina e da CEI e Europa Oriental. Por outro lado, as exportações do Oriente Médio apresentam desempenho fraco e as da África continuam a retroceder em direção à insignificância.
A verdade encontra-se nos detalhes.
A participação da CEI e Europa Oriental (isto é, do antigo bloco soviético) alcançou seu zênite nos anos 70, entrou em queda livre no momento da implosão da União Soviética e apresentou apenas moderada recuperação no último decênio. Hoje, continua inferior ao patamar de 1948. A participação da América Latina certamente cresceu no último decênio, mas após recuar assombrosamente entre o pós-guerra e o início da década de 90. Hoje, a parte latino americana nas exportações globais é menos que a metade daquela de 1948. Apenas a Ásia exibe aumento da participação no comércio mundial, quando se comparam os números atuais com os do pós-guerra. Na ponta do lápis, enquanto a parte latino americana foi cortada pelo meio, a asiática praticamente dobrou!
Uma lente de aumento ajuda a traçar as fronteiras da “nova geografia do comércio mundial”. A expansão asiática é um produto combinado do aumento excepcional das exportações dos Novos Países Industrializados (NPIs) e da China. A Índia é, por enquanto, apenas uma promessa. A expansão latino-americana deve-se, quase toda, ao significativo aumento das exportações do México, pois as duas outras grandes economias da região – o Brasil e a Argentina – apresentam trajetórias declinantes . Isso significa que a “nova geografia” cantada em prosa e verso circunscreve-se, no essencial, à Ásia oriental e ao México.
Rigorosamente, nem isso. Lula e a Unctad não se referiram simplesmente ao comércio originado nos países em desenvolvimento, mas aos fluxos comerciais Sul-Sul, ou seja, entre países em desenvolvimento.
Esse critério elimina o México dos domínios da “nova geografia” comercial, pois toda a expansão do intercâmbio mexicano na última década decorre da sua incorporação ao Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta). Hoje, esse país comporta-se, no território comercial, como um satélite dos Estados Unidos, que consomem 89% das suas exportações e fornecem mais de 63% das suas importações. Menos de dez anos depois de ingressar no Nafta, o México passou a disputar com a Coréia do Sul o posto de segunda potência comercial entre os países em desenvolvimento, mas essa condição reflete a captura do país pela teia de investimentos das empresas transnacionais americanas.
O caso da Ásia oriental é diferente: nada menos que 35% das exportações dos países asiáticos em desenvolvimento direcionam-se para outros países asiáticos em desenvolvimento. Os NPIs emergiram como potências comerciais na primeira etapa da globalização, entre 1973 e 1993. O salto da China começou nos anos 80, mas ganhou as alturas na segunda etapa da globalização, que se iniciou em 1993. O “milagre chinês” mudou o panorama do comércio asiático.
No início da sua arrancada, os NPIs gravitavam em torno do mercado comprador de bens de consumo dos Estados Unidos e dependiam de importações de bens de capital do Japão. Funcionavam, sobretudo, como nexos na rede global da microeletrônica e informática que liga a superpotência da América do Norte à grande potência econômica asiática. Hoje, os NPIs estão muito mais integrados a uma densa rede macro-regional asiática. A Coréia do Sul exemplifica esse perfil. Perto de 40% das suas exportações direcionam-se para outros países asiáticos em desenvolvimento (entre os quais a China, com quase 15%), contra uma parte de 20% que segue para os Estados Unidos. No sentido inverso, quase 50% das suas importações originam-se de outros países asiáticos em desenvolvimento, contra 20% do Japão e 15% dos Estados Unidos.
A China, por sua vez, orienta quase 34% das suas exportações para outros países asiáticos em desenvolvimento, contra parcelas de 21% e 15% respectivamente para os Estados Unidos e o Japão. Inversamente, importa cerca de 38% do total de outros países asiáticos em desenvolvimento, mas apenas 18% do Japão e 9% dos Estados Unidos. Isso significa que o dínamo chinês está integrando o mercado asiático. Atrás dessa revolução encontra-se a rede de investimentos que conecta a China ao seu entorno asiático .
Todos os dias, a mídia seleciona novos adjetivos para exprimir surpresa e espanto diante da “nova China”. Mas uma perspectiva mais ampla coloca as coisas nos seus lugares. Segundo estimativas do historiador da economia Angus Maddison, a Ásia representava 60% da produção manufatureira mundial em 1801. A China, sozinha, tinha 30% do total, e a Índia, 15%. No pós-guerra, em 1953, refletindo os efeitos de um século e meio de Revolução Industrial européia, a participação asiática havia declinado para apenas 17%, e a parte do leão cabia aos japoneses. Em 1973, a parte da Ásia tinha atingido 24%, mas quase todo o aumento decorria da vigorosa reconstrução japonesa.
Hoje, a Ásia detém 38% da produção industrial global – e a expansão não pode ser atribuída ao Japão: a China, sozinha, participa com 12% e a Índia, com 5%.
Para onde vai a Ásia? E para onde vai a China? O futuro é imprevisível, mas uma boa dica é olhar para o passado. Por exemplo, para 1801.
Boletim Mundo Ano 12 n° 4
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