John Kerry distancia-se da Doutrina Bush e prega o multilateralismo, mas repete o discurso da Casa Branca sobre poder militar, terror e armas de destruição em massa.
Conteúdo mais ou menos igual, ênfase diferente, foi a reação de Rob Watson, jornalista veterano no perímetro conhecido como “bandit belt”, a intimidade de Washington, quando John Kerry lançou seu programa de política exterior. A prioridade número um do candidato democrata será impedir que terroristas ponham as mãos em armas de destruição maciça. “É difícil imaginar que Bush tenha algum problema com isso”, escreveu Watson, ou com a afirmação de que os Estados Unidos “devem continuar sendo o poder militar supremo no mundo”.Sobre o Iraque, Kerry, nessa hora solene, falou pouco. Publicações da inteligência liberal, como o Village Voice, reclamam da falta de uma posição “consistente” em relação à retirada das tropas americanas.
Outras, mais à esquerda, como a Counterpunch pedem mais firmeza. Kerry carrega o peso de voto favorável no Senado à invasão do Iraque. Pode argumentar que foi levado a isso por informações da Casa Branca que só depois se comprovou serem falsidades, envolvendo armas de destruição maciça e associação com terrorismo.
O peso talvez se reduza, mas não evaporará..
Diante de pressões no matizado campo de oposição a Bush, um assessor de Kerry saiu-se com a pergunta: “por que falar muito do Iraque?”. Deu a impressão de que o melhor é deixar que Bush se afunde por conta própria, sem que Kerry se arrisque a dar passos em falso numa questão que pode definir as eleições presidenciais de novembro. Bem ou mal, no entanto, num delicado jogo de nuances, ou de conteúdo versus ênfase, Kerry diz coisas que não estão no coração de Bush.
Críticas ao unilateralismo e ao uso de força “antes de esgotados os recursos à diplomacia”. Reabilitação das alianças dos Estados Unidos na Europa e pelo mundo afora. Nada de guerras isoladas.
Pode parecer pouco, mas o fato é que essas frases simples tocam no âmago da Casa Branca de Bush.
Os republicanos reagem falando de política externa “típica” dos democratas, caracterizada por um multilateralismo “soft”, digamos frouxo, e alguma fé na ONU.
O contraponto republicano é uma diplomacia mais ideológica, repleta de teorias e “grandes visões”, levadas aos extremos pelo governo Bush. A equipe que assessorou o candidato Bush e depois se instalou no poder em Washington, conhecida como os “vulcans”, inspirados no deus do fogo, é o oposto da que assessora Kerry, composta de tecnocratas experimentados e não de ideólogos.
“Vulcans” e neoconservadores passaram a dar as cartas em Washington com o seu projeto de criação de um “novo século americano”. O primeiro objetivo é evitar o que é codificado como “re-emergência”. Os Estados
Unidos não devem tolerar que reapareça um novo “poder hostil” e muito menos que ele domine regiões cujos recursos sejam suficientes “para gerar poder global”.
Golfo Pérsico é muito petróleo e a idéia de invadir e subjugar o Iraque é antiga na cabeça dessa gente.
Donald Rumsfeld, secretário da Defesa, foi um dos signatários de carta ao ex-presidente Bill Clinton pedindo a “remoção de Saddam Hussein do poder”. Mesmo sem autorização do Conselho de Segurança da ONU.
A partir dessa “grande visão” unilateral, de tecido sobretudo ideológico, foi montada a doutrina da “guerra preventiva”, ou Doutrina Bush, como “instrumento legítimo” de política externa. Os Estados Unidos outorgam a si próprios o direito de atacar primeiro, diante de mera suposição de que o outro vai atacar.
Henry Kissinger, sempre à disposição dos poderosos, se ofereceu para promover a incorporação da Doutrina Bush ao direito internacional, alegando que se trata de algo revolucionário. Derruba um princípio, consagrado, de mais de três séculos, o da não-intervenção em assuntos internos de outros Estados. Os primórdios desse princípio datam de 1648, quando foi assinado o Tratado de Westfália.
Uma das palavras de ordem de Kerry joga por água abaixo a Doutrina Bush: “Back ONU”, ou volta à ONU, promete Kerry. A Carta da ONU adota com vigor, como um de seus pilares, o princípio da não intervenção.
Estabelece que um país só pode atacar outro em caso de agressão e com a necessária autorização do Conselho de Segurança. O oposto da Doutrina Bush. “Volta à ONU” é retorno ao multilateralismo, às decisões tomadas de acordo com a comunidade internacional, cujo comportamento seria levado em consideração em Washington. Não o é com Bush.
Margaret Thatcher dizia que não existem sociedades, apenas indivíduos. Os falcões de Bush dizem que não existe comunidade internacional, apenas países, cada qual tratando de si com o pleno uso da força que tiver. O “back ONU” de Kerry embute o reconhecimento de que é preciso considerar interesses coletivos.
Em tudo isso reside uma diferença fundamental: a de que os democratas e os falcões de Bush vêem o mundo e a natureza das ameaças aos Estados Unidos de modos diferentes. Kerry admitiria que a segurança dos americanos depende muito mais de alianças, do multilateralismo, do que de ataques preventivos, do unilateralismo O caos no Iraque e a busca, retardatária e desesperada, de algum apoio na ONU comprovariam isso.
Os neoconservadores de Bush, em sua “grande visão” de um Oriente Médio menos islâmico e mais ocidental, a partir de um Iraque invadido e “democratizado”, se dizem neo-wilsonianos. Aqui estaria uma aparente contradição.
O presidente Woodrow Wilson, um democrata eleito em 1912 e reeleito em 1916, foi um internacionalista que engajou os Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial e se propunha a tornar o mundo “seguro para a democracia”. A nata intelectual de um governo republicano assume um intervencionismo de tradição democrata.
Mas, ao contrário de Wilson, que ergueu a bandeira da criação da Liga das Nações, os neoconservadores abominam a sua sucessora, que é a ONU.
Conteúdos semelhantes, mas profundas diferenças de método. Os tecnocratas de Kerry, à diferença dos ideólogos de Bush, dizem que derrubadas violentas de governos e a imposição pela força de mudanças radicais “quase nunca resultam em democracia ou em maior abertura ou em sociedade civil fortalecida”. Podem, pelo contrário, produzir violência e repressão. Afirmam os conselheiros de Kerry: “Não queremos violência e repressão no Oriente Médio. Queremos vê-lo transformado numa ampla área de civilização.” Já os neoconservadores de Bush se movimentam de modo imprevisível entre a defesa retórica da democratização e ações práticas orientadas por um neo-imperialismo, sem nenhuma posição intelectual coerente, a não ser a opção preferencial pelo uso da força.
Não é uma oposição entre o dia e a noite, mas é uma divergência notável.
Boletim Mundo Ano 12 n° 4
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