O que, na sua opinião, vai acontecer aqui no dia 15 de agosto?” – pergunto ao motorista do táxi, no caminho para o aeroporto de Caracas.
Faltavam três semanas para a realização do referendo revogatório, que decidiria se o presidente Hugo Chávez continuaria ou não no poder. Rigoberto, o motorista, aponta para a profusão de luzes que brilham no subúrbio de Petare e outros morros em torno de Caracas e diz: “Cada uma daquelas luzinhas representa uma família de quatro ou cinco venezuelanos. De cada quatro ou cinco venezuelanos daqueles, dez votarão por Chávez no dia 15. É isso o que vai acontecer.” Ao chegar no aeroporto, Rigoberto se despede com o “grito de guerra” mais ouvido nas ruas de Caracas naqueles dias: “Uh, ah, Chávez no se vá!” Eu estava convencido disso, por tudo o que havia visto ao longo das duas últimas semanas na Venezuela.Na Escola Alberdi, por exemplo, tive a sorte de presenciar, dois dias antes, o lançamento de uma “comiquita”, uma história em desenho animado, feita pelas próprias crianças, de um árduo e dramático processo de luta da comunidade para manter a instituição funcionando. Quando a oposição a Chávez organizou uma greve geral que durou quase dois meses, a partir de dezembro de 2002, os professores abandonaram a escola e não mais retornaram. Contaram, para isso, com o apoio do prefeito da Grande Caracas, responsável pela administração do ensino municipal e feroz adversário de Chávez. A idéia era inutilizar a escola e responsabilizar o governo federal. Os pais não aceitaram a situação, organizaram “brigadas de ensino” e fizeram uma campanha solicitando que professores dessem aulas voluntariamente.
A escola foi reaberta, sob intensa polêmica quanto à legitimidade do ensino ministrado. Debate à parte, na “comiquita” feita pelas crianças, noto um detalhe interessante: sempre que os desenhos se referem à antiga escola, elas só usam uma ou no máximo duas cores; para retratar o momento presente, usam todo o espectro do arco íris. Isso diz muito do ânimo da população pobre em relação a Chávez.
Não é para menos. No morro do Petare, o bairro mais populoso e pobre de Caracas, com estimados 2 milhões de habitantes, e nos demais recantos miseráveis da capital e do interior do país, o governo promove a Missão Bairro Adentro, uma vasta campanha de assistência médica feita em domicílio, com o auxílio de dez mil médicos cubanos. Eles moram nos locais e ensinam à população métodos preventivos contra doenças, além de normas básicas de alimentação e higiene.
Só no último ano, foram atendidos 65 milhões de casos, feitas 43 milhões de consultas, realizadas 22 milhões de atividades educativas (ou de medicina preventiva), 13 milhões de prescrições terapêuticas homeopáticas e naturalistas, além de mil venezuelanos terem sido enviados a Cuba para tratar da catarata. “Terão que passar por cima de nossos cadáveres para tirar nossos cubanitos daqui”, diz um velho morador do Petare.
E não é só no setor de saúde que acontecem grandes transformações. Chávez despeja bilhões de petrodólares em programas sociais . Esses programas incluem construção civil, reforma agrária, multiplicação de rádios e jornais comunitários, redes de abastecimento alimentar que vendem comida a preço de custo (ou de distribuição gratuita para aqueles que não têm como pagar). Qualquer turista minimamente atento perceberá um clima de grande agitação social e política no ar. “Antes, havia bairros inteiros de Caracas destinados ao uso exclusivo da classe média e setores mais ricos. Isso acabou. Agora, mesmo nos parques de Altamira (região mais ou menos equivalente aos Jardins de São Paulo, ou Zona Sul do Rio de Janeiro), você vê as pessoas do povo passeando, e de cabeça erguida”, diz a professora universitária Olga Dragnic, que – faz questão de observar – não é “chavista”. O mais curioso é que, além de andarem “com a cabeça erguida”, não raro portam no bolso uma cópia da Constituição Boliviariana de 1999. É comum citarem as leis que, aliás, foram aprovadas, em referendo, por 80% da população.
Em Altamira, reduto dos “esquálidos” (apelido dado por Chávez aos opositores, e assumido por eles, como referência ao tamanho relativamente pequeno de suas manifestações, quando comparadas às convocadas pelo governo), o descontentamento é evidente. “Chávez é autoritário, louco, dividiu a Venezuela e está conduzindo nosso país ao caos”, diz o dono de uma loja no shopping Center Sambil, o mais chique de Caracas.
Observo que esta não parece ser a opinião da maioria dos venezuelanos. “Eles estão enganados. Chávez aprendeu com Fidel Castro como se engana o povo. Mas isso está mudando. Nós vamos ganhar o referendo, e aí eu quero ver se Chávez entrega o poder.” Com maior ou menor grau de sofisticação, o mesmo argumento sobre o “populismo chavista-castrista” é repetido por todos os “esquálidos” com quem converso: jornalistas, intelectuais, lideranças políticas.
Só há uma afirmação que, certamente, une a todos: a Venezuela é um país polarizado. A tradicional divisão social entre ricos e pobres, quase tão cruel quanto a existente no Brasil, ganhou uma forma política e institucional com Chávez no poder. Basta imaginar o que aconteceria no Brasil se o presidente Luís Inácio Lula da Silva de fato começasse a aplicar o programa original do Partido dos Trabalhadores (reforma agrária, auditoria e moratória da dívida externa, taxação de grandes fortunas, controle de remessa de lucros etc.). É mais ou menos isso o que está acontecendo no país de Simon Bolívar, o mítico “libertador” de quem Chávez empresta a retórica pan-americanista, e cujo ícone ostenta para legitimar o seu próprio movimento.
“Uh, ah, Chávez no se vá!” – grita o taxista Rigoberto, ao se despedir, no aeroporto de Caracas. Sim, estou convencido disso. Mas a questão é: e o que vem depois?
Boletim Mundo Ano 12 n° 5
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