sábado, 10 de setembro de 2011

HIPERPOTÊNCIA PROMOVE UMA REVOLUÇÃO NO SEU DISPOSITIVO MILITAR GLOBAL

Discursando em Cincinnati perante uma platéia de veteranos das forças armadas, George Bush revelou o projeto de transferir de volta para os Estados Unidos até 70 mil militares, dos mais de 200 mil que servem no exterior. É verdade que o anúncio tinha nítida finalidade eleitoral e que o processo deve ocorrer gradualmente, ao longo da próxima década, mas ele não é mera promessa de campanha.
Desde que a administração Bush se instalou, o Pentágono dedica-se ativamente ao que Donald Rumsfeld, o secretário da Defesa, denomina “transformação militar”. Os atentados de 11 de setembro de 2001 e a “guerra ao terror” conferiram um novo sentido de urgência à “transformação”, que se destina a adaptar a máquina de guerra da hiperpotência aos desafios do pós-Guerra Fria. A drástica redução quantitativa das tropas no exterior é uma das conseqüências da “transformação”. Mas, ao contrário do que parece, a finalidade do empreendimento não é diminuir a presença militar global dos Estados Unidos.
O atual dispositivo militar americano é, essencialmente, uma herança da geopolítica da Guerra Fria. A doutrina da contenção da União Soviética, elaborada a partir de 1947, orientou a implantação das bases militares no exterior e explica a concentração de tropas e meios de combate em dois grandes teatros: a Europa Ocidental e a Ásia/Pacífico .
Na Europa Ocidental ainda se encontram 114 mil militares americanos, de um efetivo que atingia mais de 300 mil no fim da Guerra Fria. A Alemanha, que era atravessada pela Cortina de Ferro e seria o primeiro alvo de uma hipotética ofensiva convencional soviética, hospeda quase dois terços das tropas baseadas na Europa. O restante distribui-se na Grã-Bretanha, Bélgica, Islândia e nas bases navais e aéreas da Europa meridional.
A implantação militar na Ásia/Pacífico repousa sobre a rede de bases no Alasca e nos arquipélagos americanos do Havaí e Guam, que configuram o suporte estratégico para os meios de combate concentrados no Japão e na Coréia do Sul. O Japão, o principal aliado dos Estados Unidos na Ásia, que devia ser protegido da dupla ameaça de soviéticos e chineses, ainda hospeda 45 mil militares americanos. Na Coréia do Sul, que permanece tecnicamente em estado de guerra com a Coréia do Norte desde o armistício de 1954, estão baseados 37 mil soldados, marinheiros e pilotos americanos.
O Golfo Pérsico, com suas imensas reservas de petróleo, e o Caribe, uma esfera de influência imediata, eram teatros importantes mas  não centrais na geopolítica da Guerra Fria. Atualmente, o dispositivo do Golfo Pérsico estrutura-se sobre as bases navais do emirado do Bahrein e da ilha de Diego Garcia e a grande base aérea de Incirlik, na Turquia. No Caribe, a implantação militar americana assenta-se em Porto Rico e na célebre base naval de Guantánamo, cedida  indefinidamente por Cuba muitas décadas antes da revolução de Fidel Castro. A ausência de qualquer grande base americana no hemisfério sul reflete a situação periférica da África Subsaariana e da América do Sul na rivalidade estratégica da Guerra Fria.
Sob Rumsfeld, o Pentágono elabora uma nova visão dos desafios à hegemonia dos Estados Unidos e desenha um dispositivo militar global adaptado às “guerras do futuro”. O núcleo estratégico das mudanças consiste em integrar mais estreitamente o dispositivo global e proporcionar condições para a concentração rápida de meios de combate nos focos de novas ameaças.
Na Europa, isso significa um firme movimento rumo ao leste. De um lado, trata-se de reduzir as tropas e equipamentos blindados estacionados na Alemanha: em dez anos, os militares americanos no país devem cair dos atuais 70 mil para cerca de 40 mil, um número ainda excepcional. A mudança não afetará as bases navais na Islândia e Grã-Bretanha e na Itália e Grécia, que são indispensáveis para as redes logísticas do Atlântico Norte/Mar do Norte e do Mediterrâneo. As bases aéreas na Grã-Bretanha, Alemanha, Portugal e Itália também devem ser conservadas ou até ampliadas.
De outro lado, trata-se de implantar uma rede de bases na Europa centro oriental, a fim de soldar os laços entre os Estados Unidos e os novos integrantes da OTAN. A Polônia, situada estrategicamente no centro do corredor de planícies que conecta a Rússia à Alemanha, é óbvia candidata a receber uma grande base. A Bulgária e a Romênia podem ser escolhidas como sedes de bases destinadas a projetar o poder militar americano no Mar Negro.
Na Ásia, a idéia é reduzir as vastas concentrações de tropas no Japão e na Coréia do Sul e desenhar uma implantação militar de tipo radicalmente diferente. O Japão, hoje, não enfrenta ameaças convencionais e possui amplos recursos bélicos próprios. O Pentágono trabalha com o cenário de  forte redução das forças de marines estacionados em Okinawa, que são fonte de ressentimentos nacionalistas no país, mas pretende conservar as bases da Marinha e da Força Aérea. Já as tropas na Coréia do Sul serão reduzidas em um terço no horizonte de um ou dois anos, com a completa retirada das forças americanas estacionadas na Zona Desmilitarizada junto à fronteira.
Os planejadores americanos sustentam que o país dispõe de 690 mil soldados bem treinados para enfrentar a ameaça norte-coreana e que a guerra moderna não depende da presença permanente de forças blindadas mas do predomínio aéreo e da capacidade de mover tropas rapidamente até o campo de batalha.
A nova implantação militar asiática estará estruturada em torno de uma rede de bases flexíveis, servidas por contingentes mínimos mas adaptadas para ampliação rápida em caso de necessidade. Essas “plataformas quentes” seriam instaladas na orla da Ásia meridional, em países como as Filipinas, a Tailândia, a Malásia e Cingapura, funcionando como postos avançados de grandes bases de infra-estrutura como as do Havaí, Guam e Diego Garcia, além da base naval de Yokosuka e da base aérea de Mizawa, no Japão. Um esquema semelhante de “plataformas quentes” poderia ser instalado na Europa centro-oriental, tendo por retaguarda a grande base aérea de Ramstein, na Alemanha.
O teatro do “Grande Oriente Médio” tornou-se prioridade estratégica máxima de Washington desde o 11 de setembro de 2001. Na região do Golfo Pérsico está em curso uma reorganização geral das forças americanas. O Pentágono prepara-se para retirar todos os seus militares da Arábia Saudita, pois a presença americana no país que guarda os lugares mais sagrados do Islã serve de bandeira para os fundamentalistas. Uma nova base aérea, no Catar, já começa a substituir a base saudita de Príncipe Sultan. No Iraque, tudo é incerto, mas os planejadores americanos alimentam a esperança de instalar uma grande base do Exército ou dos marines.
A principal novidade, contudo, está reservada para a região da Ásia Central.
O Pentágono já dispõe de pequenas bases instaladas para sustentar as operações no Afeganistão. A idéia é implantar um grande centro militar regional, possivelmente no Quirguistão ou Tajiquistão, que serviria de retaguarda para a perseguição a terroristas  no Afeganistão e ainda para manter vigilância direta sobre as rotas que conectam a Ásia Central à China.
O hemisfério sul permanece periférico, na época da “guerra ao terror”. A exceção notável é a região caribenho-amazônica da América do Sul, onde se desenvolve o conflito militar na Colômbia e se consolida o regime nacionalista de Hugo Chávez na Venezuela. Nesse teatro, o planejamento militar americano considera a hipótese de ampliação da pequena base colombiana, implantando um centro de operações capaz de aprofundar a “guerra ao narcotráfico” e, eventualmente, assegurar o acesso dos Estados Unidos ao petróleo venezuelano.

Boletim Mundo Ano 12 n°6

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