domingo, 23 de setembro de 2012

Futebol: Ligações perigosas


Wilson de Oliveira Junior
Estudo inédito mostra que, em troca de ajuda financeira, seleção alemã fechou os olhos para as atrocidades de Hitler.

Sessenta e um anos após o fim da Segunda Guerra, a relação entre o futebol alemão e o nazismo veio finalmente à tona. Ao mesmo tempo em que a Alemanha se preparava para a Copa do Mundo, que tem início dia 9 deste mês, um grupo de pesquisadores mergulhou em 40 diferentes arquivos e provou que a convivência entre o esporte e a política de Adolf Hitler era mais profunda do que se imaginava.
O estudo foi feito pelos historiadores alemães Nils Havemann e Klaus Hildebrand a pedido de Theo Zwanziger, presidente da Deutscher Fussball-Bund (DFB), a federação alemã de futebol, e do ministro do Interior Otto Schily. O resultado deu origem a Fussball Unterm Hakenkreuz – Der DFB Zwischen Sport, Politik Und Kommerz (“Futebol sob a suástica – DFB entre o esporte, a política e o comércio”), recém-lançado por lá e inédito no Brasil.
O estudo de Havemann, que leva em conta as relações entre futebol e nazismo entre 1933 e 1945, destrói a tese defendida pela própria DFB de que o futebol alemão teria sido apolítico durante os anos do nazismo. De acordo com o pesquisador, a entidade contribuiu, sim, para o nazismo, quando optou por apoiar a política de Hitler.
O início da relação da federação com o regime nazista, a bem da verdade, quase nada teve de ideológico – era, isso sim, baseado em dinheiro, já que a crise mundial iniciada com a quebra da Bolsa de Nova York em 1929 tinha deixado a entidade com os cofres vazios. A partir de 1933, a DFB se apoiou em Hitler, que acabara de assumir como chanceler, com a intenção de garantir sua sobrevivência.
O nazismo, por sua vez, via no futebol um excelente instrumento de propaganda. Em 1936, no entanto, os nazistas perderam o interesse na DFB e, aos poucos, estatizaram-na e expulsaram os antigos funcionários. Nunca ficou claro se isso teve ou não a ver com as vitórias do atleta negro americano Jesse Owens em provas de velocidade e salto nos Jogos Olímpicos de Berlim  o que fez fracassar o plano de provar uma suposta superioridade da raça ariana através do esporte.
Segundo Havemann, a contribuição da DFB para o avanço do nazismo se devia mais à ambição de alguns de seus funcionários do que propriamente à aceitação da ideologia. Um exemplo é Josef “Sepp” Herberger. Apesar de saber das atrocidades cometidas pelo regime, ele só pensava em virar técnico da seleção alemã – o que conseguiu em 1937. Herberger chegou a conquistar a Copa de 1954, e se aposentou em 1964.
Havemann também conta que o próprio Hitler raramente ia aos estádios para assistir aos jogos. Depois da Olimpíada de 1936, quando a Alemanha perdeu por 2 a 0 para a Noruega, o Führer ficou tão furioso que nunca mais quis saber de futebol.

Craque de papel
Austríaco se negou a jogar pelos nazistas e foi morto.
O talentoso atacante Matthias Sindelar, louro, alto, magro, de pernas e braços muito finos – e, por isso, conhecido como Der Papierene, ou “homem de papel” –, se transformou num símbolo da resistência da Áustria durante a ocupação pela Alemanha nazista. Judeu e pobre, virou astro atuando pelo poderoso Austria Viena, clube ligado à classe média judia austríaca, e pela seleção do país. Tudo mudou em 1938. A Áustria havia se classificado nas eliminatórias da Copa da França, mas o país foi anexado pela Alemanha de Hitler logo depois. Assim, vários jogadores passaram a defender a seleção alemã. Menos Sindelar. Nacionalista extremado, ele se negou a defender o time do Führer. A recusa o deixou duplamente marcado: como judeu e como opositor do nazismo. Mas Sindelar não esmoreceu. Tanto que, no jogo “comemorativo” pela unificação dos dois países, errou várias jogadas de propósito até marcar, no segundo tempo, um dos gols da vitória por 2 a 0 do time austríaco Ostmark sobre o alemão Altreich. A atitude foi tomada como uma afronta ao Terceiro Reich. Em 23 de janeiro de 1939, aos 35 anos, Matthias e sua namorada, Camila Castagnola, foram encontrados mortos num quarto de hotel. O laudo oficial apontou envenenamento por monóxido de carbono. Ainda há suspeitas de que Sindelar teria sido executado pela Gestapo, a polícia secreta nazista. A tragédia o transformou num mito na Áustria.

Aventuras na História n° 034

Rasputin: Sangue de bruxo


Ricardo Giassetti
Conselheiro da czarina Alexandra, Rasputin manipulava os destinos da Rússia imperial. Seu reinado paralelo só acabou em 1916, quando foi assassinado por uma desastrada conspiração.

A Primeira Guerra Mundial, travada entre 1914 e 1918, mostrou à Europa que não havia nada de nobre em conflitos militares. Enquanto milhões de corpos jaziam empilhados nas trincheiras, o Império Russo estava na rabeira, defasado em treinamento e tecnologia. Em setembro de 1915, o czar Nicolau Romanov II tomou uma decisão dramática: substituir o grão-duque Nicolau Nikolaievich, seu primo, no comando do Exército russo. Estrategicamente, era uma péssima idéia. Nicolau II não tinha a mínima competência para guiar tropas em batalha. O que seria capaz de convencê-lo, então, a abandonar a capital São Petersburgo e ir para o front no oeste? Simples: a insistência de sua esposa, Alexandra.
Por trás dos palpites da czarina estava uma profecia do seu conselheiro particular, o lendário Rasputin. Após o início da guerra, ele havia previsto que, caso Nicolau II não assumisse pessoalmente o controle das forças russas, o Império seria derrotado. Para o ardiloso profeta, entretanto, importava menos o sucesso militar da Rússia do que suas ambições particulares. “Alexandra tinha grande poder sobre Nicolau e, como Rasputin tinha influência sobre ela, a manipulação das decisões era bastante fácil”, diz David Saunders, professor de História Russa da Universidade de Newcastle, na Inglaterra.
A submissão da czarina às idéias de Rasputin tinha um motivo claro: o curandeiro teria o poder de salvar Alexei, o herdeiro do Império, da chamada “doença real” – nome dado à hemofilia (veja quadro nesta página). Na ausência de Nicolau II, a czarina assumiu o trono e colocou-se na posição de refém de Rasputin, que passou a nomear até ministros de Estado. Com a presença dos oportunistas indicados pelo conselheiro, o Império Russo caiu no caos e a corrupção se alastrou. Enquanto isso, na frente de batalha, Nicolau II despejava seus soldados para a morte certa.
A crise fez crescer a insatisfação com a monarquia e com os desmandos de Rasputin. E ele não tinha opositores apenas dentro da Rússia. Para Inglaterra e França, ter os russos como aliados na guerra era crucial para dividir as forças encabeçadas pela Alemanha em duas frentes. Ver o patético czar no front enquanto Rasputin implodia o Estado não interessava nem a ingleses nem a franceses. Com tantos inimigos, o conselheiro real vivia com a cabeça a prêmio. Seu assassinato chegou a ser planejado algumas vezes, sem sucesso. Foi só na madrugada de 17 de dezembro de 1916 que um grupo de conspiradores conseguiu, a duras penas, dar cabo do bruxo.

Rumo ao topo
Rasputin provavelmente veio ao mundo entre 1863 e 1873, batizado como Grigori Efimovich Novykh. Até a juventude, morou na cidade siberiana de Pokrovskoye. Apesar de começar a pregar a palavra de Deus desde os 11 anos, o jovem ficou conhecido por sua queda por sexo e álcool. Aos 18 anos, ele foi a um monastério e conheceu a seita Skopsty, que pregava a prática dos piores pecados para salvar a alma. Levou os ensinamentos tão a sério que passou a ser conhecido como Rasputin – que significa “depravado” em russo.
De volta à cidade natal, ele casou-se com Proskovia Fyodorovna, com quem teve duas filhas e um filho. Mas suas aspirações não cabiam em uma aldeia tão remota. Rasputin decidiu então peregrinar pela Grécia e por Jerusalém, desenvolvendo suas próprias doutrinas. Em 1903, ao retornar à Rússia e se estabelecer em São Petersburgo, ele já era considerado um staretz – homem santo, adivinho e curandeiro. Graças a suas boas relações com a Igreja, conseguiu se aproximar da elite do Império.
Naquela época, a Rússia passava por um período de extrema instabilidade. Com a morte do grande estadista Alexandre III, o poder caiu nas mãos do infantilizado Nicolau II, que claramente não tinha visão para reger os complexos trâmites do Império. Para desgosto dos pais, ele havia escolhido casar-se com Alexandra, de ascendência germânica e bisneta da rainha Vitória da Grã-Bretanha. Isolado do resto da corte, o casal se empenhou em produzir um herdeiro.
Quinto filho do casal real (depois de quatro meninas), Alexei nasceu em 1904. Sua doença hemorrágica mobilizava médicos, místicos e religiosos dentro e fora da Rússia. Percebendo a oportunidade, Rasputin moderou sua vida de libertino e esperou um convite para ir ao palácio real. Em 1905, sob recomendação de uma amiga de Alexandra, Rasputin foi chamado para uma audiência com a czarina durante uma das crises de Alexei. Não se sabe exatamente como, mas ele fez parar o sangramento.
Apesar de seu sucesso como curandeiro, o iletrado e fedorento místico era visto como péssima influência na corte. Era odiado por seus hábitos extravagantes, temido por sua suposta paranormalidade e execrado por ter origem pobre. Boatos diziam que Rasputin estava frequentando a cama de Alexandra e praticando jogos sexuais com as filhas dela. O próprio bruxo alimentava a fama, proclamando suas supostas conquistas durante banquetes regados a vodca. Não demorou para que a polícia secreta russa fizesse chegar aos ouvidos de Nicolau II informações sobre tais fanfarronices. Advertido, Rasputin negou os fatos, atribuindo-os à inveja da sociedade. Não adiantou. Nem mesmo um pedido pessoal de Alexandra ao czar evitou que Rasputin fosse enviado de volta para Pokrovskoye. Mas ele voltaria.
Durante a temporada de caça de 1912, os Romanov foram passar férias em Spala, na Polônia, onde Alexei teve outra crise aguda de sua doença. Depois que os médicos da corte desenganaram a criança, Nicolau II chegou a encomendar um funeral. Alexandra, em desespero, enviou um telegrama para Rasputin, que prontamente respondeu: “Não se preocupe. O pequenino não morrerá. Não deixe que os médicos o aborreçam”. Dias depois, Alexei estava recuperado. Rasputin retomou assim seu lugar na corte. “O que quer que tenha acontecido em Spala naquele outono mudou a vida de Alexandra. Enquanto Rasputin estivesse ao seu lado, seu filho viveria e tudo estaria bem”, diz Greg King, autor de The Last Empress (“A última imperatriz”, inédito no Brasil).

Neve vermelha
No dia 16 de dezembro de 1916 o príncipe Félix Yusupov convidou Rasputin para uma noitada em seu palácio, às margens do canal Moika, em São Petersburgo. Ele parece ter insinuado que, naquela noite, Rasputin poderia desfrutar de sua esposa, a princesa Irina Alexandrovna. O libertino não deixaria passar em branco essa oportunidade, já que Irina era irmã de Nicolau II. Mesmo sabendo que vivia sob ameaça, o bruxo aceitou o convite. Era uma cilada.
A trama para assassinar Rasputin foi descrita por Yusupov no seu diário pessoal, em que ele declara ter sido o único mentor do atentado. O objetivo seria salvar a honra da monarquia russa. O príncipe cita outros personagens. Um deles é o grão-duque Dimitri Pavlovich, primo de Nicolau II . Outro é o deputado Vladimir Purishkevich, membro do Duma, a câmara baixa do Parlamento russo e feroz crítico de Rasputin.
O diário de Yusupov conta que Rasputin chegou ao palácio no início da madrugada. Lá, foi acomodado na sala de jantar – arrumada para dar a impressão de que uma multidão tinha acabado de cear. No andar de cima, os conspiradores ouviam música alta, fingindo ser convidados que ainda não haviam ido embora. Rasputin foi informado de que deveria esperar a princesa Irina despachar os visitantes. O plano era que o bruxo morresse ao ingerir vinho e pedaços de bolo envenenados com cianeto. Rasputin relutou, mas aceitou comer e beber. Yusupov ficou na sala, esperando em vão que o veneno fizesse efeito. Já passava das 2h30 quando o convidado, aparentemente imune ao cianeto, começou a se irritar com a demora. O príncipe subiu ao segundo andar, sob o pretexto de apressar Irina. Foi quando os seus comparsas o convenceram a atirar em Rasputin com a pistola de Pavlovich.
Yusupov desceu as escadas e disparou contra o curandeiro, que caiu no chão. Todos desceram, examinaram o corpo e voltaram ao segundo andar para festejar o sucesso do atentado. Yusupov continuava tenso, imaginando que, graças a poderes sobrenaturais, a vítima ainda estivesse viva. Perto de 3h30, o príncipe voltou à sala de jantar. O até então inerte Rasputin subitamente se levantou e atacou o desesperado Yusupov, que clamou por ajuda. O místico ainda teve forças para fugir pelo pátio, onde foi alvejado novamente. O tiro de misericórdia teria sido disparado por Purishkevich. O cadáver foi enrolado num tapete e atirado nas águas do rio Neva. Em depoimentos dados em 1934 e 1965, Félix Yusupov repetiu exatamente essa história. Mas os detalhes não batem com as versões dos outros envolvidos.
Depois do fim da União Soviética, documentos da época foram analisados com novas técnicas forenses. Descobriu-se que os três tiros encontrados no cadáver vieram de armas diferentes. A primeira, de Pavlovich. A segunda, de Purishkevich. Já o tiro fatal, dado no centro da testa com destreza profissional, saiu de uma Webley .455, pistola usada por oficiais ingleses. “Acho completamente possível que os britânicos estivessem envolvidos no assassinato de Rasputin, trabalhando para manter a Rússia na guerra”, diz o professor Saunders.
Segundo um documentário de 2004, produzido pela emissora inglesa BBC, relatórios do antigo serviço secreto inglês se referem à data do crime como o “extermínio das forças ocultas na Rússia”. O agente Oswald Rayner (que estudou com o príncipe Yusupov em Oxford) teria sido destacado para acompanhar a conspiração e assegurar que Rasputin fosse mesmo assassinado.
Ao saber do crime, a czarina Alexandra exigiu uma investigação minuciosa. A polícia encontrou provas por todos os cantos, incriminando Yusupov e Pavlovich. Ambos foram expulsos do país por Nicolau II, que, com esse ato, acabou salvando a vida deles. O assassinato de Rasputin foi usado por grupos revolucionários como mais um pretexto para incitar levantes populares. Três meses depois do crime, o czar seria derrubado. Em outubro de 1917, o poder chegaria às mãos dos bolcheviques liderados por Vladimir Lênin. No novo regime, praticamente toda a nobreza russa, incluindo Alexei, Alexandra e Nicolau II, seria executada. Já Rasputin seria transformado pelos comunistas em ícone dos desmandos da monarquia. Até hoje seu nome ainda é sinônimo de devassidão, manipulação e charlatanice.

Mal de família
Saúde frágil do herdeiro era o trunfo de Rasputin.
No início do século 20, muitos nobres europeus sofriam de hemofilia – traço comum aos descendentes da rainha inglesa Vitória, como Alexei. A doença (que impede a coagulação do sangue) já era conhecida, mas não havia tratamentos eficazes. Por isso, a czarina Alexandra recorreu a místicos para cuidar do filho. Porém, é possível que Alexei não fosse hemofílico. Essa é a hipótese do escritor Robert Massie em The Romanovs: The Final Chapter (“Os Romanov: o capítulo final”, livro inédito no Brasil). Os diários da czarina e dos médicos falam de sintomas que poderiam ser de crises aplásticas, descritas apenas em 1947. Em geral, elas se manifestam até a metade da adolescência, causando hemorragias internas por cerca de dez dias até que o sangue volte ao normal. Massie diz que Rasputin, devido a sua prática de curandeiro, já conhecia a doença e sabia que as crises de Alexei não seriam fatais.

Aventuras na História n° 034

Quem são os gnósticos?


Michelle Veronese
Um dos vários grupos religiosos que surgiram por volta do século 1, os gnósticos afirmavam ter acesso a um conhecimento (do grego, gnosis) secreto que os levaria à salvação. Presentes em grandes centros, como Egito e Síria, acreditavam que todos os seres humanos possuíam uma centelha divina e, despertando esse pedacinho de Deus dentro de si, poderiam se reconectar a ele e ser salvos.
Os gnósticos diziam que o mundo material era imperfeito, porque havia sido criado por uma outra divindade, inferior a Deus. E não achavam necessário ter intermediários entre os homens e o mundo divino. Com o aparecimento de Jesus e o começo do estabelecimento do cristianismo, muitos gnósticos passaram a considerá-lo um mestre espiritual, enviado para revelar esses ensinamentos. Por isso, passaram a ser chamados de gnósticos cristãos.
Como suas idéias feriam os dogmas da Igreja, eles foram tachados de hereges e combatidos nos séculos 2 e 3. “O grande temor era que o cristianismo, influenciado pelo gnosticismo, se tornasse uma religião de idéias, de conhecimento intelectual, não sendo acompanhada por feitos práticos”, diz o teólogo Luigi Schiavo, da Universidade Católica de Goiás.

Evangelho Segundo Judas é exemplo do gnosticismo
Escrito há quase 1 700 anos numa língua praticamente desaparecida (o copta, falado no Egito dos primeiros séculos), o chamado Evangelho Segundo Judas pode ser a mais nova chave para compreender o pensamento gnóstico. Encontrado numa tumba próxima ao rio Nilo e traduzido recentemente pela National Geographic Foundation, o documento conta que o discípulo que dedurou Cristo aos romanos, na verdade, teria feito isso a pedido do próprio mestre. “Jesus pede que Judas o entregue logo, porque quer deixar a prisão que é o corpo dele. O conceito de que o corpo é uma prisão é profundamente gnóstico”, diz Schiavo. Em vez de traidor, Judas emerge como herói, o único apóstolo que sabia o destino de Jesus (um conhecimento secreto, mais uma idéia gnóstica), escolhido para a missão por ser o mais leal.

Fora da Bíblia
Evangelho de Maria
Os gnósticos cristãos podem ter escrito outros textos que não entraram no Novo Testamento, como o Evangelho de Maria, datado do século 2 ou 3. Lá, em vez de prostituta, Madalena é líder religiosa.

Evangelho de Felipe
Descoberto em 1945, perto de Nag Hammadi, no Egito, conta que Maria Madalena era a discípula favorita, a quem Jesus beija na boca.

Evangelho de Tomé
Também de Nag Hammadi, do século 2, traz uma coletânea de 114 “ditos secretos” atribuídos a Jesus.

Aventuras na História n° 034

Barberini: invasão bárbara


Celso Miranda
No século 17, o papa Urbano VIII, cujo nome de batismo era Maffeo Barberini, resolveu erguer um dossel de bronze sobre o altar da basílica de São Pedro, em Roma. Diante da falta de material, mandou retirar e derreter 90 toneladas de bronze do Panteão de Agripa, um monumento datado de 27 a.C. Entre as manifestações contra o papa, uma ficou célebre: a do médico Giulio Mancini, que disse: “O que não fizeram os bárbaros, o fez Barberini”.

Aventuras na História n° 034

Óculos


Bárbara Soalheiro
Tinha gente que comprava escravo com olhos bons e que soubesse ler.

Três graus de miopia. Hoje, um diagnóstico como esse é bobagem. Afinal, você pode viver normalmente usando um par de óculos. Mas há alguns séculos um problema de visão assim era sinônimo de aposentadoria. O senador romano Marco Túlio Cícero, por exemplo, quase teve que abandonar o emprego quando a idade o impediu de ler sozinho. Como tinha dinheiro, Cícero resolveu o problema do jeito que se fazia na época: comprou escravos que pudessem ler para ele.
As primeiras lentes apareceram no ano 500 a.C. na China – mas, como se acreditava que os problemas de visão eram culpa de espíritos malignos, elas serviam apenas como amuleto. Quase mil anos depois, no século 4, o grego Sêneca, autor de tragédias conhecido por ter lido todos os livros que existiam na época, usava um pote com água para deixar as letras maiores. Foi só lá pelo ano 1000 que as lentes apareceram na Europa. As primeiras, as pedras de leitura, foram criadas pelos monges católicos, dos poucos alfabetizados na época. Cristais de quartzo, topázio ou berilo eram lapidados em forma de semicírculo e polidos. O resultado era uma lupa primitiva, usada em cima do material que se pretendia ler. Outras centenas de anos se passaram até que os homens tivessem a idéia de aproximar a pedra dos olhos. Ou melhor, do olho – os primeiros modelos de óculos, no século 14, eram feitos só para uma vista.
Quando surgiu a versão para dois olhos, tinha o formato de um V invertido. Era preciso segurar as armações com as mãos ou ficar completamente imóvel para que elas permanecessem apoiadas sobre o nariz. Nessa época, óculos eram caríssimos, a ponto de aparecerem listados em testamentos e inventários.
Foi só em 1752 que o inglês James Ayscough criou os óculos com duas hastes laterais. Mas, apesar de terem aberto os olhos de muita gente, os óculos não pegaram de cara. Principalmente na Europa, as pessoas tinham vergonha de aparecer em público usando o acessório. Menos na Espanha  lá, as pessoas achavam que ter um objeto de vidro as deixava com um ar mais importante.

Aventuras na História n° 034

Cabra da peste


Lívia Lombardo
Empregada para designar um indivíduo bom, confiável e, principalmente, corajoso, essa locução tipicamente nordestina em nada tem a ver com a coitada da fêmea do bode. Cabra, no Nordeste brasileiro, é sinônimo de homem. Assim, é comum na região expressões como “cabra bom”, para se referir a alguém decente, ou “cabra besta”, para alguém considerado um orgulhoso sem razão.
Mas por que “da peste”? A razão é que epidemias eram um mal muito comum na região no começo do século 20 e, com a falta de recursos da população, tornavam-se muito perigosas e levavam à morte.
Dessa forma, quando alguém ficava doente, todos se afastavam com medo de serem contaminados pelo “cabra da peste”. A expressão acabou, mais tarde, tornando-se sinônimo de alguém que, por sua valentia, causa medo nas pessoas, a ponto de afastá-las.

Aventuras na História n° 034

Rodar a baiana


Lívia Lombardo
Quando alguém ameaça com um “pare com isso ou eu vou rodar a baiana”, qualquer pessoa discreta pára na hora – ou, pelo menos, toma cuidado. A ameaça, na verdade, consiste em dar um escândalo público.
Diferentemente do que possa parecer, essa expressão não tem sua origem relacionada à Bahia, e sim ao Rio de Janeiro. A região era palco, já no início do século 20, de famosos desfiles dos blocos de Carnaval.
No meio desses blocos, alguns espertinhos tascavam beliscões nas nádegas das moças que desfilavam. Para acabar com o problema, alguns capoeiristas passaram a se fantasiar de baianas, com direito a saia rodada e turbante na cabeça. Assim, ao primeiro sinal de desrespeito, aplicavam um golpe de capoeira. As pessoas que assistiam aos desfiles não entendiam nada: só viam a baiana rodar – e começar toda a confusão.

Aventuras na História n° 034

Leonardo da Vinci: O criador e as criaturas


Thereza Venturoli
Entrevistamos Leonardo momentos antes de uma sessão de O Código Da Vinci. O gênio não leu o livro que deu origem ao filme. Nem entende por que suas pinturas ainda causam tanta comoção.

Em seu tempo e sua terra – a Itália da segunda metade do século 15 – Leonardo da Vinci foi o verdadeiro homem dos mil instrumentos. Arquiteto, desenhista, pintor, escultor, engenheiro, inventor e anatomista, dedicou-se a tantas áreas que poderia hoje manter sozinho um portal enciclopédico na internet. Nascido no vilarejo de Anchiano, perto da cidade de Vinci, em 1452, Leonardo dominou como ninguém a arte de observar e representar a realidade. Ele analisou o galope dos cavalos, estudou como a luz altera a aparência de um objeto, abriu vísceras de cadáveres. Chegou até mesmo a vislumbrar o futuro: projetou engenhocas que só se tornariam realidade séculos mais tarde, como o helicóptero e o escafandro. Ainda assim, Da Vinci não previu que, no início do século 21, serviria de pretexto para O Código Da Vinci, best-seller de Dan Brown que chega agora às telas de cinema. Conversamos com o velho mestre num café, enquanto ele aguardava para ver uma sessão do filme.
O que o senhor achou do livro O Código Da Vinci?
LEONARDO DA VINCI – Não tenho opinião, pois não li. Não encontrei nenhum exemplar em latim e fiquei com preguiça de ler em italiano. E olhe que, mesmo que encontrasse uma edição em latim, eu levaria muito tempo para acabar o livro... Preferi assistir ao filme de uma vez.

Observar, aliás, é sua grande habilidade.
Sim, minha filha... Ver é tudo. Como eu costumo dizer, é preciso saber ver. Sem aprender a ver não é possível descobrir as leis que regem as forças e os movimentos que constituem tudo o que existe no mundo.

E o senhor sempre teve um talento excepcional para reproduzir o que vê, não? O senhor se considera um gênio?
Sinceramente, sim. Mas minha época é pródiga em gênios na arte de reproduzir a natureza. Na pintura, tinha o Michelangelo e o Rafael. Na astronomia, tinha o Nicolau Copérnico, que observou tanto o céu que acabou mudando a posição da Terra ao afirmar que era nosso planeta que girava em torno do Sol, e não o contrário. Tutti buona gente. Agora, cá entre nós, depois que restauraram o afresco da Capela Sistina, o Michelangelo, que eu prefiro chamar de Mike, deu de ficar mais convencido ainda, tá se achando todo. Ah, fala sério...

Ainda assim, com tantos talentos em volta, o senhor foi o mais completo, que dominou mais áreas do conhecimento...
É o que eu sempre disse ao Mike: a diferença entre ele e eu é que não passei a vida inteira só pintando ou esculpindo. Na verdade, pintei pouco durante toda minha vida – tanto que hoje só sobraram umas 17 obras completas. Não tinha tempo. Por outro lado, sempre fui curioso e gostei de resolver problemas. Por falar em problemas, você tem se dado bem com esse quebra-cabeça japonês que apareceu por aí, o Sudoku? Eu ando obcecado por preencher aqueles esquemas com números. Mas o que eu gosto mesmo é de desmontar motor de carro. Aliás, uma de minhas frustrações é ter nascido muito antes da invenção do motor de combustão interna. Outra é não ter conseguido voar. Você sabe, todas as engenhocas que inventei jamais saíram realmente do chão.

O senhor costumava trabalhar para militares. Não é irônico que uma guerra tenha impedido a conclusão de uma de suas maiores obras, o monumento a Francesco Sforza, em Milão?
Pois é. Passei 12 anos da minha vida construindo aquele molde de argila imenso, de 5 metros de altura. Aí, com o molde pronto, na hora de fundir o bronze, todo metal foi desviado para a fabricação de canhões. No fim, até o molde ficou em ruínas. É o que eu digo: a elite sempre preferiu investir na guerra e não na arte – uma escolha, aliás, de bom senso, já que os saques rendem muito mais dividendos do que um retrato pendurado na parede.

O senhor deixou muitos projetos inacabados, incluindo anotações em que largou uma frase no meio e jamais voltou a ela. Por quê?
Esse sempre foi meu problema. Minha cabeça fervilhava tanto e eu ficava tão ansioso em dar forma às novas idéias que me vinham que acabava largando os projetos no meio, louco para começar outro. Mas confesso ter largado muitos deles por pura preguiça, mesmo.

Sobre os estudos de anatomia: o senhor não tinha um certo receio de passar noites dissecando cadáveres?
Certo receio? Eu tinha era paúra. Era uma aflição terrível. Ficava enjoado de ver o corpo por dentro, todo aquele sangue. Mas eu tinha de trabalhar – e rápido, porque senão o corpo apodrecia. Para você ver o que se faz pela ciência...

Uma pergunta inevitável: qual o segredo do sorriso de Mona Lisa?
Dentes maltratados. Quando fui chamado a fazer o retrato, convenci a dama a dar um leve sorriso – como, aliás, era sinal de boa educação entre as mulheres da aristocracia naquela época. De resto, só porque brinquei com alguns jogos de luz e perspectiva, vocês ficaram falando desse quadro por cinco séculos.

Voltando ao romance O Código Da Vinci, há quem acredite que n’A Última Ceia a figura que oficialmente corresponderia ao apóstolo João é, na verdade, Maria Madalena. Isso é verdade?
Sim, aquela é mesmo Maria Madalena. Mas não existe nenhuma mensagem secreta nisso. João tinha acabado de se levantar para buscar mais vinho, pois Madalena tinha se cansado de servir de garçonete e o empurrou, dizendo: “Agora é sua vez”. Por isso, Pedro, ali do lado, faz aquele gesto ameaçador: estava tentando colocá-la de volta em seu devido lugar de mulher... Calma, é brincadeira! Agora, o que eu não entendo mesmo é o que faz vocês especularem tanto sobre A Última Ceia.

Aventuras na História n° 034

Felipe II: soldado ao pé-de-ouvido


Felipe II, da Macedônia, era tido como um grande político e estrategista militar impiedoso com seus inimigos. No entanto, certa vez, quando foi aconselhado a desterrar um de seus soldados que vivia fazendo críticas ao monarca, o pai de Alexandre, o Grande, agiu de forma contrária e mandou trazer o militar a sua corte, integrando-o à guarda mais próxima. Quando perguntado sobre o motivo, Felipe explicou: “Quanto mais longe de mim ele estiver, mais tempo levarei para saber o que ele diz”.
Aventuras na História n° 034

Futebol: Campos de batalha


Beto Gomes
Durante a Copa do Mundo, países que já entraram em guerra vão se encontrar nos gramados da Alemanha.Veja o que esses antigos adversários andaram fazendo quando não estavam jogando futebol.

No próximo dia 14 de junho, o mundo vai acompanhar com atenção mais um confronto entre Alemanha e Polônia. Felizmente, ninguém deverá sair ferido – a menos que algum zagueiro dê uma entrada muito violenta. Na 18ª Copa do Mundo de futebol, sediada pelos alemães nos meses de junho e julho, países que guerrearam no passado vão poder resolver suas diferenças de modo mais nobre. Na primeira fase, além do jogo entre os anfitriões e os poloneses, haverá outro confronto que remonta à Segunda Guerra Mundial: Estados Unidos contra Itália – os americanos, devido a sua tradição bélica, têm chance de enfrentar ex-inimigos em todas as fases da competição. Também está garantido o embate entre Portugal e sua antiga colônia, Angola. De acordo com o desempenho das equipes, poderão acontecer outros cruzamentos entre ex-adversários da vida real, como Inglaterra contra Argentina e México contra Espanha. Confira a seguir como foi que países como esses perderam a esportiva e resolveram se engalfinhar em sangrentos conflitos.
Polônia 0 x 6 Alemanha
A Polônia praticamente não entrou em campo contra a Alemanha, naquele 1º de setembro de 1939. Às 4h45 da manhã, Adolf Hitler ordenou que seu exército fosse com tudo para cima dos poloneses. Em menos de um mês, rendeu o adversário e mostrou que era um dos grandes favoritos a vencer o conflito que começava ali mesmo: a Segunda Guerra Mundial. Dois dias depois da invasão, a França e a Inglaterra declararam guerra à Alemanha.
A estratégia adotada pelo exército alemão ficou conhecida como Blitzkrieg, a “guerra-relâmpago”, que consiste em ataques rápidos e fulminantes, usando as forças aérea e naval para abrir caminho e não dar chance de reação ao inimigo. Enquanto aviões nazistas bombardeavam os campos de pouso poloneses, navios abriam fogo contra armazéns navais e de munições. Ao mesmo tempo, os poderosos tanques Panzer atropelavam o que estivesse à frente, ajudando a dizimar as forças adversárias. Em apenas quatro dias, parte da Polônia já estava rendida. A capital, Varsóvia, se entregaria em 27 de setembro e o último foco de resistência, a fortaleza de Modlin, no dia seguinte. Para piorar, a União Soviética, cumprindo o pacto que havia feito com os nazistas, entrou no país pelo leste e acabou de vez com qualquer possibilidade de reação.
Ao recuperar os territórios perdidos para a Polônia depois da Primeira Guerra, os alemães davam início à expansão do nazismo (que só seria controlada em 1945, com a derrota para os aliados). Explorando o sucesso militar, o ministro nazista da Propaganda, Josef Goebbels, tornou-se um grande animador de torcida. Intimidava inimigos e convencia a população alemã sobre a superioridade da raça ariana, garantindo um fervoroso apoio para o time germânico.

Angola 3 x 1 Portugal
Angola era um verdadeiro alçapão na década de 1960. Nada menos que três movimentos de libertação atuavam em diferentes partes do país, lutando entre si e contra as forças de Portugal. O país europeu tinha um estilo de jogo ultrapassado: enquanto o mundo assistia à libertação de antigas colônias, os portugueses insistiam em manter suas possessões na África. Angola foi a última nação do continente a se emancipar.
A guerra de independência começou em 1961, quando o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) invadiu prisões da capital, Luanda, para tentar libertar militantes políticos. O ato desencadeou uma forte repressão por parte do governo português, que não queria arriscar perder o controle sobre o país, rico em petróleo e diamantes. Logo surgiram outros dois movimentos de libertação, a FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola) e a Unita (União Nacional para a Independência Total de Angola). Portugal passou a levar pancadas de todos os lados.
As tropas que combatiam em Angola, Moçambique e Guiné chegavam a consumir 40% da receita do governo português. Em vez de conseguir controlar as insurreições, ele é que acabou sendo derrubado. Em abril de 1974, a ditadura que vigorava desde os anos 30 foi extinta pela Revolução dos Cravos, liderada por militares insatisfeitos.
O novo governo resolveu então dar fim ao colonialismo. Em janeiro de 1975, representantes de Lisboa e dos três movimentos angolanos selaram o Acordo de Alvor, que previa uma independência pacífica para novembro daquele ano. Não foi o que aconteceu. O MPLA proclamou a independência em Luanda, foi aceito como governo pela comunidade internacional e embarcou numa guerra civil contra a FNLA e a Unita. Portugal abandonou o campo, mas os conflitos entre angolanos duraram até 2002, deixando 1 milhão de mortos.

Inglaterra 2 x 1 Argentina
Ao ordenar a invasão das Ilhas Malvinas, em 1982, o general argentino Leopoldo Galtieri estava jogando para a torcida. Recuperar o pequeno arquipélago atenderia a uma antiga aspiração nacional e ajudaria a melhorar a imagem da sangrenta ditadura instaurada no país em 1976. Mas os argentinos encontraram pela frente um adversário que jogava duro e não levava desaforo para casa.
A luta diplomática pelas Malvinas tinha se arrastado por mais de 150 anos. A Argentina reivindicava desde 1820 a posse do arquipélago, localizado a apenas 500 quilômetros de sua costa. Os ingleses, que no século 18 mantiveram assentamentos nas ilhas, voltaram a ocupá-las em 1833. Desde então, se recusaram a ceder o território. A questão esquentou quando a região se mostrou promissora na exploração de petróleo, no século 20. A população das ilhas, cuja maioria descendia de ingleses, queria continuar sob a tutela britânica. Esse argumento acabou sendo aceito internacionalmente, travando as negociações.
As tropas argentinas atacaram em 2 de abril de 1982, ocupando as ilhas. Do lado inglês, a primeira-ministra Margareth Thatcher foi duramente criticada pelo Parlamento britânico por não ter previsto a ação argentina. Seu ministro das Relações Exteriores, lorde Carrington, se demitiu no mesmo dia em que as primeiras 40 embarcações britânicas partiram para o Atlântico Sul.
Virar o jogo seria apenas uma questão de tempo. A superioridade das tropas inglesas logo faria diferença. E os Estados Unidos, que começaram atuando como um árbitro, mediando uma solução pacífica para o conflito, voltaram-se para o lado dos britânicos no dia 30 de abril. Sofrendo com as sanções econômicas impostas pelos americanos, a Argentina tentou levar a guerra para a prorrogação, afundando alguns navios britânicos. Mas, em 2 de maio, um submarino inglês atacou o cruzador General Belgrano. Foi uma falta fora do lance: o navio estava voltando para casa, inofensivo. O naufrágio matou 323 tripulantes e desmoralizou os argentinos.
A guerra terminou em 14 de junho, quando os ingleses retomaram a capital das Malvinas, Porto Stanley, e o governo argentino assinou a rendição. Com o fim dos combates, o presidente Galtieri abandonou o poder e o regime militar entrou em colapso.

Croácia 1 x 1 Sérvia
A região da antiga Iugoslávia é, há séculos, um verdadeiro caldeirão de raças e crenças convivendo lado a lado. E o clima entre sérvios, croatas, eslovenos, montenegrinos, macedônios e bósnios nem sempre foi de fair play. Em 1929, esses povos se agruparam num mesmo reino, chamado de Iugoslávia. Após a Segunda Guerra, ele se transformou numa república socialista liderada pelo herói nacional Josip Tito. Depois da morte do líder, em 1980, a instabilidade cresceu. Com a decadência final da União Soviética, na virada para os anos 90, as repúblicas iugoslavas se viram livres do domínio comunista e começaram a proclamar sua independência.
Em 1992, um ano depois de Croácia e Eslovênia, foi a vez da Bósnia-Herzegovina se declarar livre, em decisão apoiada por 99% da população num plebiscito. Os poucos sérvios que moravam no país se revoltaram contra o resultado. A Sérvia (que ainda era parte da Iugoslávia) resolveu então partir para o ataque, anexando as áreas da Bósnia habitadas por sua etnia – exemplo que foi seguido pela Croácia. As antigas rixas voltaram com toda a força. Católicos croatas, ortodoxos sérvios e muçulmanos bósnios se pegaram numa guerra civil que deixou 200 mil mortos. Verdadeiros massacres foram promovidos.
Pressionados pelos Estados Unidos e pela União Européia, os croatas suspenderam os ataques à arrasada Bósnia. Mas isso não significou o fim da guerra, pois, em março de 1994, eles mudaram de lado e passaram a lutar contra os sérvios. Em agosto de 1995, a Otan, organização das potências militares ocidentais, bombardeou posições da Sérvia, equilibrando as forças e facilitando a aceitação de uma proposta de paz. A guerra chegou ao fim em novembro e, no mês seguinte, foi assinado o Acordo de Dayton, que manteve as atuais fronteiras da Bósnia e dividiu o país em duas entidades semi-autônomas – uma sérvia e outra mulçumano-croata. A Iugoslávia deixou de existir oficialmente em 2002, passando a se chamar Sérvia e Montenegro.

México 5 x 4 Espanha
Foi uma longa partida. No primeiro tempo, disputado ainda na época da descoberta da América, os espanhóis golearam os mexicanos, conquistando a região com relativa facilidade e dizimando as populações nativas. Estabelecida a colônia, o resultado parecia definido. Mas no segundo tempo veio a virada mexicana. Ela começou na cidade de Dolores, na madrugada de 16 de setembro de 1810. Num encontro organizado pelo padre Miguel Hidalgo y Costilla, surgiram debates calorosos sobre a dominação espanhola – os mexicanos não tinham vez na política e eram governados por um punhado de galácticos vindos da Espanha.
Em 8 de dezembro, os conspiradores decidiram partir para o conflito armado, marchando em direção à capital, Cidade do México. No caminho, conquistaram, na base da vontade, alguns lugares estratégicos. Entretanto, durante um dos combates, o padre Hidalgo acabou capturado. Foi julgado pela Inquisição, condenado à morte por heresia e traição e fuzilado em julho de 1811.
Com a morte de Hidalgo, outro religioso assumiu a braçadeira de capitão do movimento: o sacerdote José María Morelos y Pavón. Ele convocou representantes de todas as províncias insurgentes para assinar, em novembro de 1813, uma declaração de independência. Seis meses depois, no entanto, as tropas rebeldes que cercavam a Cidade do México foram derrotadas. Preso, Morelos teve destino semelhante ao de Hidalgo – morreu fuzilado em dezembro de 1815.
Expulsos para longe da capital, os rebeldes perderam força. Para massacrá-los de vez, a coroa espanhola nomeou o hábil militar Agustín de Iturbide. Nascido no México, ele logo percebeu que, se vencesse, não teria chance de dividir o poder com os espanhóis. Para não ser deixado de escanteio, ele virou a casaca e se aliou aos rebeldes, que formaram um novo exército com milhares de pessoas. Em 24 de agosto de 1821, a coroa espanhola foi obrigada a reconhecer a independência mexicana.

C. do Marfim 0 x 0 França
Ex-colônia francesa, a Costa do Marfim se libertou pacificamente em 1960. Independente, chegou a ser um dos mais prósperos países da África – ainda hoje, é o principal produtor de cacau do mundo e um dos grandes exportadores de café. Se a rivalidade contra a ex-metrópole nunca chegou a se transformar em guerra, tampouco deixou de existir. Desde o início dos anos 90, quando houve uma queda mundial nos preços dos produtos agrícolas, a tensão aumentou. A economia marfinense entrou em crise e os franceses, que controlavam boa parte dela, se tornaram o foco principal do descontentamento popular.
A situação degringolou em 1993, com a morte do presidente Felix Houphouet-Boigny, que governara o país desde a independência. Seu sucessor, Aimé Henri Konan Bedié, foi derrubado em dezembro de 1999, num golpe dado por Robert Guei, ex-comandante das Forças Armadas. O país vivia uma profunda desagregação política: suas 60 etnias tinham pouca coisa em comum além do ódio contra os franceses.
Durante as eleições de 2000, o general Guei apelou para o tapetão: dissolveu a comissão eleitoral e se autoproclamou vencedor ao constatar que iria perder o cargo para Laurent Gbagbo. O povo saiu às ruas e, com o apoio de parte do Exército, conseguiu destituir Guei. Gbagbo assumiu a presidência, mas rebeldes e forças do governo seguiram se enfrentando em duras batalhas. A Organização das Nações Unidas e a França decidiram, então, enviar tropas para intermediar o conflito.
Em 2004, um ataque aéreo marfinense matou nove soldados franceses e feriu outros 31. A França retaliou destruindo toda a Força Aérea da Costa do Marfim – um catado de três caças e cinco helicópteros. Protestos contra a atitude tomaram as ruas de todo o país. Milhares de franceses foram expulsos de suas casas, em ações que incluíram estupros e assassinatos. Um cessar-fogo acalmou os ânimos e novas eleições foram marcadas para outubro de 2005. No entanto, novos conflitos na capital, Abidjan, impediram sua realização. Até hoje, o jogo continua suspenso.

Estados Unidos contra a rapa
Os americanos nunca foram muito bons no futebol. Já na guerra...
Dos 32 times que vão à próxima Copa, Inglaterra, México, Coréia, Japão, Itália e Alemanha já lutaram contra os americanos. E o retrospecto não é bom para nenhum deles. Os ingleses engoliram a independência dos Estados Unidos em 1776. No século 19, o México perdeu o Texas e outros territórios para os americanos. Já Itália, Alemanha e Japão foram esfolados na Segunda Guerra. Depois do fim desse conflito, em 1945, os americanos fizeram várias intervenções militares em terras estrangeiras, a ponto de serem chamados de “polícia do mundo”. “Essa idéia deriva da política externa americana, baseada em várias doutrinas nas quais eles assumem responsabilidades de países distantes”, afirma o professor de História Contemporânea Francisco Carlos Teixeira da Silva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A primeira dessas doutrinas foi a Truman, de 1947. Segundo ela, toda ameaça a países “democráticos” seria enfrentada pelos Estados Unidos. Exemplo disso foi a Guerra da Coréia: entre 1950 e 1953, os americanos apoiaram o sul do país contra as forças comunistas do norte – o conflito acabou dividindo o país em dois. Em termos de geopolítica, a partida mais tensa dos Estados Unidos na Copa seria contra o Irã (que pode ocorrer numa improvável semifinal ou final entre ambos). Os iranianos nunca lutaram diretamente contra os ianques, mas são sérios candidatos a sofrer um ataque. O presidente americano George W. Bush declarou que não descarta o uso da força para impedir que o país desenvolva sua tecnologia a ponto de poder fabricar armas nucleares. Essa é a essência da chamada Doutrina Bush: a “guerra preventiva”, em que eventuais ameaças são enfrentadas antes de se concretizar.

Aventuras na História n° 034

Museu Churchill


Rafael Magalhães
Detalhes da vida privada e política do líder inglês na Segunda Guerra.
Para quem foi considerado o maior britânico de todos os tempos, demorou bastante para Winston Churchill ganhar um museu dedicado à sua vida. Em compensação, o espaço faz jus à sua trajetória. O Churchill Museum foi inaugurado em 11 de fevereiro de 2005, após investimentos de 23 milhões de reais. Ele faz parte de um anexo dos Cabinet War Rooms, o museu localizado no abrigo subterrâneo que a cúpula do governo britânico ocupava durante os bombardeios alemães a Londres na Segunda Guerra.
Político duas vezes primeiro-ministro, comandante de operações militares, jornalista correspondente de guerra e escritor vencedor do prêmio Nobel de Literatura em 1953, Winston Churchill ainda povoa o imaginário britânico como o homem que salvou o império e o mundo do nazismo. A história não é bem essa – e o museu não está ali para desfazer mitos. A maneira como mostra a vida do político, no entanto, não deixa escapar nenhum momento, dos bons aos ruins.
O museu é dividido ao meio por uma linha do tempo multimídia, movimentada pelos visitantes, que mostra a trajetória do político. As famosas frases de Churchill, cheias de ironia, passeiam por uma tela. Seu dia-a-dia e sua maneira de se vestir são retratados de forma bem-humorada. Seu funeral, de um jeito reverente. Por essas e outras, não é difícil encontrar por lá britânicos mais idosos enxugando as lágrimas.

Bem protegido
A coleção fica em um antigo abrigo antibombas.

1. Abre-te
Churchill ganhou a guerra, mas viu o Partido Conservador perder a eleição e foi obrigado a deixar a casa número 10 da Downing Street, a residência oficial dos primeiros-ministros. Mas, em 1951, ele abriria novamente a porta da casa (que está em exposição) como premiê, até renunciar em 1955, por problemas de saúde. Nesse segundo período em Downing Street, Churchill enfrentou conflitos contra o controle britânico na África e na Ásia.

2. Premiê literato
Winston Churchill é o único chefe de Estado ou de governo a ter recebido o Nobel de Literatura – entregue em 1953 por seus seis volumes de memória da Segunda Guerra. Churchill, já primeiro-ministro, precisou viajar para uma conferência internacional e não esteve presente na cerimônia de entrega do prêmio em Estocolmo. A esposa Clementine o representou.

3. Chapéu e ceroula
O museu mostra também a indumentária que acabou virando marca registrada do político. Um dos exemplos é o chapéu preto de feltro, assim como a bengala e o charuto. Também estão lá seus pijamas e o seu siren suit, um macacão aveludado de cor vinho geralmente usa do por baixo da roupa, que Churchill vestia até mesmo em encontros de trabalho.

4. Buldogue britânico
Logo depois de o político se tornar primeiro-ministro, vários objetos foram lançados com sua imagem. Desde figurinhas até pôsteres, passando pelo cachorro, esta estátua de cerâmica pintada de dourado com sua cara no corpo de um cão – talvez a mais famosa representação de Churchill. Ela se baseia na imagem do “British Bulldog”, forma como os russos chamavam o líder britânico.

5. Meu querido diário
A linha do tempo que se estende em diagonal dividindo o Churchill Museum ao meio é operada manualmente pelos visitantes, como se fossem páginas. Cada um pode escolher o período que achar mais interessante e percorrer os fatos de sua trajetória da maneira que quiser. Ela funciona como um diário interativo da vida de Churchill.

6. Revólver para um fujão
Como jornalista, Churchill foi à África do Sul em 1899 cobrir a Guerra dos Bôeres para o Morning Post. Foi capturado numa emboscada dos soldados inimigos. Mas conseguiu escapar e foi ajudado pelo funcionário de uma mina, John Howard, que lhe deu este revólver e o escondeu num trem que partia para território neutro. A notícia da fuga de Churchill tornou-o uma celebridade no Reino Unido.

7. Visita aos escombros
Durante os pesados bombardeios alemães a Londres no início dos anos 40, Churchill ficava nos Cabinet War Rooms o menor tempo possível, somente quando se tratava de algo realmente inevitável. Logo que o ataque terminava, ele voltava às ruas para checar os estragos. Nesta foto, acompanhado pela esposa Clementine, ele observa os danos causados pelas bombas na Guildhall Art Gallery.

8. Medalhas e condecorações
Entre 1895 e 1962, Winston Churchill recebeu 37 ordens, condecorações e medalhas. Dez delas por sua ativa participação nos campos de batalha. Em 1953, mesmo ano em que recebeu o Nobel, foi condecorado por Elisabeth II com a Ordem de Garter, a mais elevada honraria da coroa. Dez anos depois, o presidente John Kennedy agraciou Churchill com o título de cidadão honorário dos Estados Unidos.

9. Sete bengaladas
Entre as fotos e objetos da infância do político está este livro de castigos de 1891 da aristocrática Harrow School. Na página referente ao dia 25 de maio, consta uma punição por mau comportamento e violação de regras pelo jovem Winston Churchill. Foram sete pancadas de bengala. Churchill passou boa parte de sua infância e adolescência em colégios internos e quase não via os pais.

10. Com o melhor amigo
Winston Churchill era um apaixonado por animais. E o museu tem um espaço reservado para mostrar essa relação: cães, gatos, coelhos, carpas... Na foto, o então primeiro-ministro acaricia o cão do marechal Bernard Montgomery, comandante das tropas britânicas durante a Segunda Guerra Mundial. O cachorro foi batizado de Rommel, sobrenome do comandante das tropas alemãs no norte da África, conhecido como “Raposa do Deserto”.

Aventuras na História n° 034

Che Guevara - Uma Biografia: Retrato de um guerrilheiro


Sergio Amaral Silva
Che Guevara - Uma Biografia é o mais completo estudo sobre a vida do guerrilheiro que virou um mito latino-americano.

Ernesto Guevara, o mais famoso guerrilheiro de nossa época, é personagem de inúmeros livros. Mas Che Guevara – Uma Biografia, de Jon Lee Anderson, com mais de 900 páginas, é o mais completo estudo já publicado sobre sua vida. Para escrevê-lo, o jornalista americano radicado na Inglaterra – que é também autor de A Queda de Bagdá – levou cinco anos e entrevistou dezenas de pessoas, principalmente em Cuba, incluindo a viúva de Che. Esteve também na Rússia e em outros países por onde seu biografado passou e teve acesso a documentos e informações inéditas, como a transcrição do último interrogatório de Guevara na Bolívia, pouco antes de sua morte.
Guevara nasceu em 1928, na Argentina, em uma família de classe média alta. Estudante de medicina, em 1952 iniciou uma longa viagem pela América Latina, retratada no filme Diários de Motocicleta. A fama viria com sua participação na Revolução Cubana, lutando ao lado de Fidel Castro contra o ditador Fulgêncio Batista. A partir de 1959, dirigiu o Banco Nacional de Cuba e foi ministro da Indústria.
Che achava que sua missão era reproduzir a revolução em outros países. Por isso, abandonou a mulher e os cinco filhos e partiu para o Congo, na África, onde combateu em 1965. Organizou ainda um foco de guerrilha na Argentina. Na Bolívia, foi preso e morto em outubro de 1967.
Sua biografia é enriquecida por cerca de 80 fotos, a maioria inéditas, mostrando a trajetória de Che, um homem obcecado por seus ideais e sujeito a erros como os cometidos no Congo, apontados por Jon Lee Anderson. De acordo com o jornalista, o guerrilheiro fracassou ao tentar convencer os revolucionários locais de que sua luta não devia se limitar ao país, mas estender-se a toda a África contra o imperialismo norte-americano.

Aventuras na História n° 034

John Steinbeck e Robert Capa: Diário russo


Celso Miranda
Em 1947, a viagem do escritor americano John Steinbeck e do fotógrafo húngaro Robert Capa pela União Soviética rendeu um dos relatos mais reveladores sobre a vida do outro lado da Cortina de Ferro.

Mal terminara a Segunda Guerra e o mundo estava de novo dividido entre bons e maus. Em 1946, o ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill anunciava que uma “cortina de ferro” descera sobre o Leste Europeu. Antes aliados, soviéticos e americanos tornaram-se mutuamente assustadores. De parte a parte, as notícias eram desencontradas. Nos Estados Unidos, muito se falava sobre a Rússia, sua política, seus líderes, mas nada sobre as pessoas. Como viviam? Como reconstruíam o país? O que comiam no jantar? O que achavam dos americanos?
Para responder, John Steinbeck, autor de clássicos da literatura americana, como As Vinhas da Ira, e o fotógrafo Robert Capa, famoso pelas imagens que fez da Guerra Civil Espanhola e do Dia D, partiram numa aventura impensável naqueles primeiros dias do que mais tarde viria a ser chamado de Guerra Fria: viajar pela União Soviética e registrar em textos e imagens a vida do povo russo. “As informações que nos interessavam não seriam políticas, exceto na medida em que a política fosse local, afetando diretamente a vida cotidiana das pessoas”, escreveu Steinbeck, no livro Um Diário Russo.
Steinbeck e Capa pousaram em Moscou às 16h30 do dia 31 de julho de 1947, a bordo de um C-47 ainda com a pintura militar marrom – herança do programa de ajuda militar americano durante a guerra. A primeira lembrança que guardariam do país seria a refeição que fizeram no Hotel Metrópole, no centro de Moscou, local que servia de residência a correspondentes internacionais, diplomatas e um ou outro comerciante ou industrial de passagem pela cidade. O jantar para cinco pessoas consistiu de meio litro de vodca, uma grande porção de caviar negro, sopa de repolhos, filé com fritas, queijo e duas garrafas de vinho. Custou cerca de 110 dólares. Pouco para o trabalhão que deu. Não tanto pela comida, mas pelo intricado processo que era realizar uma transação comercial na União Soviética, naqueles dias. Todo o comércio era da alçada do Estado ou de monopólios concedidos pelo governo, e isso tornava a contabilidade muito complexa. O garçom anotava o pedido e tinha que registrá-lo em um livro. Antes de informar o cozinheiro, passava pelo contador, que fazia outro registro dos alimentos desejados e só então emitia a papeleta que seguia para a cozinha. Lá, mais um registro era feito e o prato começava a ser preparado. Quando ficava pronto, outra papeleta era emitida e entregue ao garçom. E ele levava o prato para a mesa, certo? Não, primeiro precisava entregar a papeleta da cozinha para o contador, que registrava a finalização do prato solicitado e entregava outra via ao garçom, que só então retornava à cozinha, retirava a comida e a levava até a mesa. No fim, ele anotava em seu próprio livro que o prato pedido, devidamente registrado, fora afinal entregue aos clientes (no caso de Steinbeck e Capa, o processo levou duas horas e meia).
Enquanto isso, a orquestra tocava “Roll out Barrel” e “In the Mood”, clássicos das big bands americanas, intercalados por canções de Frank Sinatra, como “Old Black Magic” e “I’m Not in the Mood for Love”. Em russo.
No dia seguinte, num passeio pela cidade, Steinbeck achou Moscou muito diferente de quando estivera ali, em 1936. “Partes inteiras dos bairros apinhados e sujos da velha cidade haviam sumido e, em seu lugar, brotaram conjuntos habitacionais e edifícios públicos”, anotou. A cidade, na verdade, passava por um sem-número de obras. Os edifícios estavam sendo pintados ou restaurados para as comemorações dos 800 anos de Moscou. Alguns dias na cidade, porém, bastaram para a dupla perceber que não era ali que desejava estar. “Queríamos conversar com agricultores, trabalhadores e comerciantes, a fim de ver como viviam. Enfim, era isso que pretendíamos contar aos americanos, de modo a tornar possível algum tipo de entendimento entre os dois povos”, dizia Steinbeck. Se pretendiam realizar seus planos, precisariam seguir para o interior, conhecer outras regiões, menos controladas.

Pepinos maduros
Dois dias depois, Steinbeck e Capa estavam sobrevoando a Ucrânia, uma região coberta por plantações. Como os aviões soviéticos costumavam voar baixo, a uns 300 metros de altitude, e só iam mais alto em caso de chuva (aliás, eles também não voavam à noite e, se escurecia no meio da viagem, o piloto pousava na cidade mais próxima e só decolava no dia seguinte), dava para ver que o trigo e a cevada já estavam sendo colhidos. “Mas, ao avistarmos vilarejos, víamos o ziguezague das trincheiras e as crateras abertas pelas bombas. Havia casas destelhadas e manchas escuras de edifícios incendiados”, escreveu Steinbeck. Quando chegaram a Kiev, a capital da república, encontraram uma cidade devastada. Fundada no alto de uma colina às margens do rio Dniepr, Kiev fora uma bela cidade. Mais antiga que Moscou – seus mosteiros, fortalezas e igrejas remontam ao século 11 –, era chamada “a mãe das cidades russas”. Ali os alemães mostraram do que eram capazes. Todos os edifícios públicos, bibliotecas e teatros foram destruídos. Sem contar os soldados, 6 milhões de pessoas foram mortas, cerca de 15% da população ucraniana.
Mas, segundo Steinbeck, havia indícios de que a cidade estava sendo reconstruída. “Não há uma máquina funcionando, não se vê um trator ou escavadeira. Tudo foi levado ou destruído e cada tijolo da cidade devastada é removido manualmente. E, quando uma nova parede é erguida, é também à força de braços ucranianos”, relatou. Steinbeck e Capa encontraram em Kiev um povo que, livre da guerra, vivia mais alegre e descontraído que o de Moscou.
Em 9 de agosto, os dois chegaram a um vilarejo chamado Chevtchenko (em homenagem a um famoso poeta ucraniano). No caminho enlameado que levava até lá, ainda se podiam ver as marcas deixadas pelas lagartas dos tanques. Antes da guerras Chevtchenko era um assentamento não muito rico, mas próspero e produtivo, onde havia 362 casas. Após a passagem dos alemães, restaram oito. Os homens esconderam-se na floresta e permaneceram lutando como guerrilheiros. Crianças e mulheres foram escravizadas, muitas assassinadas. Terminada a guerra, as pessoas retornaram ao vilarejo e, agora, homens e mulheres trabalhavam juntos para erguer pequenas casas, o que, em época de colheita, acontecia depois da lida nos campos, à noite e madrugada adentro. “Eles erguem um aposento e vivem nele até que possam construir outro”, descreveu Steinbeck. Prontas, as casinhas ficam todas parecidas. “Um salão na entrada, que dá para a cozinha, sempre rebocada de branco, com forno e fogão de tijolos, que também serve de lareira. Em seguida vem o aposento de uso comum, com a mesa de jantar e a área de visitas, decoradas com flores de papel, imagens sacras e fotos de parentes mortos. Em cada casa existem muitas delas.”
Em Chevtchenko, os campos eram coletivos, mas cada família mantinha sua própria horta, seu jardim, em que cultivava flores e legumes, além de criar abelhas. A fazenda produzia um pouco de trigo, painço e milho, mas, como o terreno era superficial e arenoso, as principais safras eram pepinos, batatas, tomates e girassóis. “Nos campos, mulheres e crianças colhiam pepinos divididas em batalhões que competiam entre si tentando colher o máximo em menos tempo”, relatou Steinbeck. As mulheres vestiam saias longas, blusas e lenços na cabeça. Estavam todas descalças. Um menino chamado Gricha, que usava um elaborado chapéu feito de junco, correu até sua mãe e gritou algo maravilhado. O tradutor ajudou os visitantes a entender o que ele disse: “Veja, mãe. Esses americanos são iguaizinhos à gente”.

Ciranda de pedra
A terceira parada na expedição de Capa e Steinbeck foi Stalingrado, a cidade que, já naqueles dias, inspirava um sentimento épico: ali o mundo começou a ser salvo dos nazistas. Pela estrada esburacada, foram conduzidos, só os dois, em um ônibus antigo. “Buick, Cadillac, Lincoln, Pontiac, Studebaker”, dizia o motorista. Eram as únicas palavras em inglês que ele conhecia. Ao lado, ao longe, à frente, havia um movimento ininterrupto de gente carregando pedaços de vagões, peças de artilharia e todo tipo de sucata. Tudo estava sendo recolhido e transportado para a nova fábrica de tratores, construída na periferia de Stalingrado. Em volta dela, centenas de casinhas estavam sendo erguidas para os trabalhadores. Mas, ao chegar à cidade, só se via destruição. Durante meses Stalingrado fora atacada, tomada, retomada e atacada novamente, num dos maiores e mais decisivos confrontos da Segunda Guerra. Na praça central, viam-se os resquícios daqueles dias: uma loja de departamentos destruída, prédios arruinados, destroços espalhados em volta da fonte, onde crianças de pedra ainda dançavam.
Stalingrado havia sido uma cidade grande e agora não havia nada. Mas ela não estava desabitada. Debaixo de todo aquele entulho havia porões e buracos nos quais vivia muita gente. De manhã, de trás dos destroços, as mulheres saíam para trabalhar. Iam bem maquiadas e penteadas. “Era difícil para nós imaginar como podiam fazer isso. Como conseguiam viver no subsolo e ainda assim se manterem tão limpas, orgulhosas e femininas”, escreveu Steinbeck.
Havia, porém, uma exceção. Logo abaixo do hotel onde Capa e Steinbeck se hospedaram, havia um pequeno monte de lixo, onde eram lançados ossos, cascas de melão e de batata. Alguns metros adiante, havia uma pequena elevação de terra, como a entrada da toca de um roedor. No início de cada manhã, uma menina engatinhava para fora desse buraco. Tinha pernas longas, não calçava nada nos pés e seus cabelos eram emaranhados e sujos. Estava coberta por anos de poeira e, por isso, parecia morena. “Agachada, devorava as cascas de melão e chupava os ossos usados na sopa de outras pessoas. Em algum momento, durante o terror dos combates pelo controle da cidade, algo dentro dela se rompera, obrigando-a a buscar refúgio no esquecimento”, escreveu Steinbeck. As pessoas que passavam por ela raramente lhe dirigiam a palavra. Mas certa manhã uma mulher lhe ofereceu um pedaço de pão. A garota o agarrou e apertou-o contra o peito, mas, como um cão selvagem, esperou que a mulher saísse para então comer furiosamente sem, no entanto, deixar de vigiar. “Enquanto comia, um lado de seu xale esfarrapado e imundo escorregou, descobrindo um seio jovem e sujo, mas sua mão automaticamente ajustou o traje, cobrindo-se num tocante gesto feminino.”
Durante muito tempo, muito além dos 40 dias na União Soviética, quando Capa e Steinbeck também estiveram em Tblisi, capital da Geórgia, terra de Stálin, e de volta a Moscou para ver o aniversário da cidade e as apresentações do balé Bolshói, muito depois do vôo de volta aos Estados Unidos e até dos dois anos que levaram para editar seu livro com esses relatos, a imagem daquela garota selvagem e feminina os perseguiria durante os sonhos.

Amigo Willy
A viagem começou num boteco e só foi para a frente porque um barman achou que era uma boa ideia.
Em março de 1946, John Steinbeck passava por aquilo que se costuma chamar de recesso criativo. Depois de publicar sua obra-prima, As Vinhas da Ira, em 1939, ele acabara de abandonar uma peça de teatro, que reescrevera quatro vezes antes. Para afogar o fracasso, Steinbeck bebia no bar do Hotel Bedford, em Nova York, quando entrou Robert Capa, outro que vinha de decepções profissionais, depois do lançamento de um livro de fotos suas (que ele odiava) publicadas na revista Life. Willy, o barman, serviu alguns drinques e logo eles discutiam um de seus assuntos prediletos: a imprensa. “As notícias deixaram de ser novidade, pelo menos as que interessam a todo mundo. Hoje, muito do que lemos como notícia não passa da opinião de meia dúzia de especialistas”, dizia Steinbeck. Willy serviu mais dois. “Todos os dias os jornais publicam um monte de coisa sobre a Rússia. O que Stálin está pensando, seus planos militares, os testes nucleares, e tudo comentado por gente que nunca pôs os pés lá. Mas, sem dúvida, o povo russo também tem uma vida privada, da qual nada sabemos, pois ninguém se dá ao trabalho de tomá-la como tema.”Enquanto Willy preparava mais duas doses, Steinbeck resolveu testar sua tese e perguntou a ele se esse era um assunto pelo qual se interessaria. Willy balançou a cabeça, concordando. Na hora, eles concordaram em ir até lá investigar, fotografar e escrever sobre a Rússia. Dois meses depois, prontos para a viagem, Capa e Steinbeck foram se despedir. Willy lhes serviu dois superdrinques e fez também um para si próprio. Depois do longo gole, o barman deu-lhes um último conselho: “Atrás do balcão, a gente aprende a ouvir muito e falar pouco”. Bom conselho para um jornalista e um fotógrafo.

Aventuras na História n° 034

Leonardo da Vinci - O homem de todos os códigos


Celso Miranda e Cíntia Cristina Da Silva
Cinco séculos depois de sua morte, Da Vinci continua sendo um mistério. Afinal, o que há em sua vida e em sua obra que justifique as polêmicas em que vivem metendo seu nome?

Talvez nenhuma pessoa jamais tenha representado tão bem um período da história quanto Leonardo da Vinci. Chamado de “o homem da Renascença” (época caracterizada pela valorização do homem e da natureza), ele, ao longo de seus 67 anos de vida, envolveu-se até o pescoço nos experimentos científicos e artísticos que marcaram o fim da Idade Média na Europa. Da Vinci foi brilhante em praticamente todas as atividades em que se meteu: foi pintor, engenheiro, inventor, músico (compunha e tocava lira), arquiteto, escultor, astrônomo e escritor. E fez tudo isso de uma forma inovadora, revolucionária – genial mesmo.
Por isso, e por outro tanto de coisas que você vai ler nesta matéria, sempre foi motivo de polêmica. Durante sua vida, em suas centenas de biografias, e mesmo hoje, quase 500 anos depois de sua morte, o que se escreve sobre ele ainda faz aumentar a aura de mistério que cerca sua vida e sua obra. “Já foi dito que ele é o verdadeiro autor do Sudário de Milão, que se auto-retratou na Mona Lisa, que era maníaco-depressivo e que praticava experiências de alquimia”, diz a americana Sarah B. Benson, do departamento de Arte da Universidade de Princeton, em Nova York. Daí a dizer que ele foi líder de uma sociedade secreta e que escondeu em suas obras mensagens cifradas que provam que Jesus escapou da crucificação e fugiu com Maria Madalena para a França, tido filhos e vivido felizes para sempre, como afirma o escritor inglês Dan Brown no livro O Código Da Vinci – que agora virou filme –, vai uma grande diferença. Mas, afinal, o que há na vida e na obra de Da Vinci que levanta tanta polêmica? O que se sabe realmente sobre ele? Por que tanta gente acredita que ele foi um misterioso guardião de segredos indecifráveis?
Filho ilegítimo de Caterina, uma camponesa de 16 anos, e de Ser Piero di Antonio, um tabelião 30 anos mais velho, Leonardo nasceu no dia 15 de abril de 1452, num povoado perto de Vinci, a cerca de 50 quilômetros de Florença, na Itália. Na época, a Itália nem era um país, mas um amontoado de cidades-reinos, como Milão, Verona, Nápoles, Gênova, Veneza, além da própria Florença, que rivalizavam entre si e se organizavam em volta do poder religioso e político de Roma e do papa.
A instabilidade política da região não afetou, no entanto, a infância do pequeno Leo, que cresceu sob os cuidados do pai e da madastra, que lhe proporcionaram educação básica: aprendeu a ler, escrever e amarrar os sapatos. E, tirando o talento precoce para as artes, nada em sua juventude fazia prever destino tão especial. Foi na adolescência (conceito, aliás, que ainda não existia, ou seja, não havia um período de transição entre a infância e a condição de adulto – as crianças eram consideradas pequenos adultos, apenas ainda muito fracos ou muito estúpidos para assumir as funções de um adulto) que o gênio de Leonardo começou a surgir. Segundo seu primeiro biógrafo, o italiano Giorgio Vasari, que escreveu Vite dei Più Eccellenti Architetti, Pinttori et Escultori Italiani (“Vida dos melhores arquitetos, pintores e escultores italianos”, inédito em português) apenas 30 anos após a morte de Da Vinci, consta que ele aprendeu sozinho latim, matemática, anatomia humana e física. Passava horas tentando melhorar um desenho. Quando morava com o pai, em Vinci, Leonardo foi encarregado de ilustrar o escudo de um fazendeiro local. Escolheu fazer uma coisa inspirada na mitológica Medusa, aquela que tinha cobras no lugar dos cabelos. Para realizar o trabalho da maneira mais realista, reuniu serpentes, lagartos e outros pequenos animais para servirem como modelo. Um dia seu pai entrou no ateliê e encontrou o filho trabalhando em meio a animais em decomposição. Estava tão absorto que nem sentia o mau cheiro dos bichos mortos. Teve 17 meios-irmãos: 12 por parte de pai e cinco por parte de mãe.
Quando tinha lá seus 20 anos, foi aceito como aprendiz no ateliê do artista Andrea Verrochio, em Florença. Lá conseguiu seus primeiros trabalhos e, com o tempo, obteve notoriedade – de bom pintor e de nunca entregar suas obras no prazo. Ficaram famosas suas pinturas inacabadas. Algumas chegaram aos nossos dias, como o retrato de São Jerônimo, em exposição no Museu do Vaticano. Trabalhou para a Igreja, fez amigos entre os poderosos e conseguiu alguma fortuna. Foi patrocinado por Lorenzo de Médici, o todo-poderoso de Florença, e em 1502 acabou nomeado arquiteto e engenheiro geral para as regiões de Marche e Romagna por César Bórgia, o capitão-geral do exército (e filho) do papa Alexandre VI. Outro fã de suas obras foi Ludovico Sforza, duque de Milão.
Leonardo nunca se casou e na juventude, em 1476, chegou a ser réu no processo de sodomia de Jacopo Saltarelli, um colega aprendiz como ele, mas a acusação foi arquivada. Viajou pela Europa e cultivou inimigos tão poderosos e brilhantes como ele. Michelângelo, um de seus maiores rivais, costumava se referir a Leonardo como “aquele tocador de lira de Milão”. Emigrou para a França, onde foi amigo do rei. Dos reis, na verdade. Tornou-se o preferido da corte de Luís XII e, mais tarde, amigo pessoal e confidente de seu sucessor, Francisco I. Dele ganhou uma casinha (o castelo de Cloux), onde viveu seus últimos dias. Morreu em 1519, dizem, dormindo. Segundo seu desejo, seu caixão foi acompanhado por 60 mendigos. Leonardo deixou um legado enorme entre quadros, desenhos e manuscritos. Apenas pouco mais de 20 de suas pinturas sobrevivem até hoje, entre elas algumas das mais famosas pinturas de todos os tempos, como a Mona Lisa e A Última Ceia. Fora os protótipos de invenções que só seriam concretizadas séculos depois, como o pára-quedas, o escafandro e o tanque de guerra.

Lado oculto
Legal, deixa ver se até agora eu entendi: o cara era um gênio. Foi um baita artista e se tornou símbolo de um tempo de incríveis mudanças na Europa e no mundo. Da Vinci viveu na mesma época que Cristóvão Colombo, Maquiavel, Michelângelo, Martinho Lutero e Nostradamus. Imagine: enquanto ele pintava Mona Lisa, Pedro Álvares Cabral navegava pelo Atlântico em direção ao Brasil. Mas até agora eu não sei por que a vida dele ou suas telas deram margem a teorias conspiratórias. Então talvez tenha chegado a hora de perguntar: Leonardo era tão diferente e misterioso assim? Sua obra ou sua vida permitiram que tantos anos depois tanta coisa fosse inventada sobre ele?
A resposta é sim. Da Vinci dava sopa para o azar. E, apesar de ele ser, de certa forma, típico de seu tempo, tinha lá suas manias. Primeiro, criou sua própria linguagem em código. Quando não escrevia ao contrário, da direita para a esquerda – fazendo que sua caligrafia só fosse compreendida quando vista no espelho –, usava um tipo de taquigrafia estranhíssima, na qual usava parte de palavras ou símbolos e não letras para exprimir idéias. Se isso não é dar mole para os conspiradores de plantão, então diga lá: o que é?
”Seus interesses ultrapassavam o campo artístico”, afirma Christopher Witcombe, professor do departamento de História da Arte da Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos. Ele especulou pela anatomia, biologia, física e engenharia. Leonardo amava sua arte e acreditava que “o amor a qualquer coisa é produto do conhecimento, sendo o amor mais ardente quanto mais seguro é o conhecimento”, conforme escreveu. Era um profundo estudioso das técnicas que, segundo sua visão, seriam complementares à sua arte. Ele dissecou corpos humanos e de animais para compreender a posição de ossos e como funcionavam músculos e tecidos. Desenvolveu e utilizou lentes para projetar imagens e melhor reproduzir seus modelos, desenvolvendo técnicas aplicáveis às suas obras, como os planos de perspectiva, ponto de fuga etc. Estudou a química das substâncias para desenvolver suas próprias tintas, especulou sobre a matemática e a filosofia. Da Vinci foi um cientista-artista tão fascinado pelos mistérios do Universo e pelos enigmas do corpo humano quanto pelas possibilidades de aplicar esses conhecimentos em suas obras.
Mas, tirando a letra invertida, o resto não era coisa assim tão rara na Europa do fim do século 15, época em que as fronteiras entre ciência, misticismo, e arte não eram tão definidas. Leonardo cruzou esses limites mais vezes e com muito mais facilidade que os sacoleiros de Ciudad del Este. “As linhas mestras do pensamento renascentista, das quais Leonardo era não só um seguidor, mas um entusiasta, misturavam o humanismo grego a experiências alquimistas e conhecimentos herméticos. E isso aliado a experimentações protocientíficas, como dissecação de cadáveres e observação de astros, que estão na raiz do nascimento das modernas medicina e astrofísica”, diz Witcombe. Ciência e misticismo andavam de mãos dadas no fim do século 15, começo do 16. E ambas eram muito mal vistas pela Igreja.
A única fronteira que não se devia atravessar naquela época era a religiosa. Com o sagrado era difícil brincar, ainda mais no caso de um artista, numa época em que a Igreja (assim mesmo, com letra maiúscula, para indicar a instituição com sede em Roma e representada em toda a Europa por bispos e padres católicos) era a principal cliente de pinturas e esculturas. Segundo a professora Sarah B. Benson, os artistas renascentistas escondiam suas crenças e convicções pessoais em pinturas encomendadas pela igreja. Além disso, Da Vinci de fato recheava suas pinturas de símbolos e mensagens cifradas. “Ele realmente espalhou uma série de símbolos não-cristãos em seus quadros – que vão dos que aparecem agora no cinema e foram citados por Dan Brown (leia quadros a partir da pág. 28) – até pintar a si mesmo como João Batista e o anjo Gabriel em algumas obras”, afirma Sarah. Em A Virgem das Rochas, ele introduziu plantas utilizadas em rituais mágicos.

Virou mito
Tá, ok: o cara era o típico renascentista. Um gênio, metido com alquimia e medicina primitiva. Entendi. Era um tremendo pintor também, que desenvolveu técnicas revolucionárias. Mas esse não é o assunto desta matéria. Nosso desafio é explicar por que essa obra genial se presta até hoje a interpretações pouco convencionais, com claras tendências fantasiosas. Para o historiador norte-americano George Gorse, da Universidade de Pomona, nos Estados Unidos, a resposta pode estar na própria arte e no talento de Da Vinci. “Sua obra é universal, pois fala com cada pessoa de maneira particular. E é isso que o torna mais interessante e faz com que, após tantos anos, ele continue sendo uma figura indecifrável, tão sedutora quanto a imensidão e a beleza de sua obra. Sempre haverá o que ser descoberto sobre um artista tão genial”, diz George.
Isso equivaleria a dizer, com um pouco menos de frufru, que a universalidade da obra de Leonardo (isso que faz cada pessoa ver um – ou algum – sentido nas pinturas dele) fez com que ela atravessasse o tempo, tornando-se algo cujo significado fosse adaptado aos diferentes períodos da história e continuasse fascinando a imaginação de tanta gente. Menos frufru ainda? Então lá vai: a obra de Leonardo atravessou os séculos, adaptando-se aos gostos e linguagens de cada época. Como ícones de um passado comum, suas obras foram assumindo um caráter que tem muito mais a ver com o espírito do tempo presente do que com o tempo ou a realidade que o autor procurou exprimir. Ou seja, fala muito mais sobre o tempo de quem a vê (seja hoje, seja no século 19) do que sobre o tempo de quem a pintou ou de quem está retratado nela.
Por exemplo, na década de 1960, sua obra mais famosa, a Mona Lisa, se tornou símbolo da cultura pop. Quando resolveu promover o Dadaísmo, movimento artístico que pregava o absurdo e o desprezo pela arte tradicional, Marcel Duchamp (1889-1968) pintou bigodes na Mona Lisa. Ele não poderia ter escolhido obra mais representativa para mandar seu recado. Tornou-se símbolo de uma arte descartável, presa em molduras de madeira, vazia de significado. Um rosto de mulher, como uma foto de Marilyn Monroe, que pode ser copiada, e copiada, e copiada.
Hoje, o que nos leva de volta à obra de Da Vinci é outra coisa. Procuramos no passado respostas para os anseios que a sociedade moderna tem. Na era da superciência, os homens tendem a procurar respostas mais simples. Afinal, deve existir alguma resposta lógica para tudo, não é? Deve haver algo que nos conecte a todos. Uma rede que faça sentido, uma “matrix”, um código que explique quem somos e por que estamos aqui. Vivemos numa época propícia para teorias que desconstroem a realidade como a conhecemos, oferecendo uma versão convincente – e mais fascinante – da vida, da nossa história, do nosso passado.
Por fim, há um fator que faz de Da Vinci um forte candidato às conspirações. Ele é famoso. E esse fato se virou contra Leonardo. “Parte do mistério que se imputa à obra, à vida e a tudo que se relacione com Da Vinci é motivado pelo simples fato de ele ser famoso”, diz George. Ou seja, ele é famoso porque se fala dele. E fala-se dele porque ele é famoso. O que adiantaria se Travis Di Montemore tivesse escondido segredos em suas obras? (Travis quem? Pois é.)
“Da Vinci entrou para a história como um dos homens mais brilhantes que pisaram esta Terra e também como um dos mais misteriosos”, diz o historiador inglês Kenneth Clark, professor de História da Arte em Oxford e ex-curador do Museu Britânico. “E, por mais que se escreva sobre ele, apesar das muitas interpretações a que sua vida e obra dêem margem, ainda haverá espaço e material suficientes para se formularem muitas outras teorias sobre ele.”
Em tempo, Travis Di Montemore foi um pintor italiano – de pais franceses – que obteve sucesso e fama no século 16. Seus dotes artísticos eram disputados por reis, sua atenção pelas rainhas. Caiu no esquecimento no século 18 e nunca, nunca mais alguém ouviu falar dele. Nem Dan Brown.

Da Vinci x Dan Brown
Leonardo esconde símbolo sem suas obras ou o mistério está nos olhos de quem vê?

O segredo de Mona Lisa
Hoje protegido por um vidro à prova de balas no Museu do Louvre, em Paris, o sorriso mais famoso do mundo é também o mais polêmico. Dan Brown, em O Código Da Vinci , sugere que ele esconde um segredo: o nome “Mona Lisa” seria um anagrama feito com o nome das divindades egípcias Amon (masculino) e Ísis (feminino). A tela seria, então, a forma que Da Vinci encontrou de elevar o caráter sagrado das mulheres (e de Maria Madalena), igualando-as ao elemento masculino. No entanto, é pouco provável que essa fosse a intenção de Leonardo. Ele não conhecia a mitologia do antigo Egito, que só entraria em evidência no Ocidente no século 19. A tese de Brown também levantaria dúvidas sobre a identidade da modelo retratada (já se disse que ela seria o próprio Da Vinci). Mas o mais provável é que Lisa Gherardini, mulher de Francesco del Giocondo (daí o outro nome pelo qual a tela é conhecida, La Gioconda), seja a dona do sorriso.

Duas versões e um enigma
Em 1483, os monges da igreja de São Francisco Grande, em Milão, pediram a Leonardo uma pintura que mostrasse a Virgem Maria ladeada por anjos. Um rigoroso contrato sugeria até as cores das roupas dos personagens e marcava a entrega para dali a oito meses. Leonardo não cumpriu o prazo e, quando terminou a obra, ela não foi aceita. Uma outra versão da tela, concluída por ajudantes do pintor, foi finalmente entregue em 1508. Hoje A Virgem das Rochas está exposta na Galeria Nacional, em Londres. Já a primeira versão, que está no Louvre (em O Código Da Vinci, pistas são escondidas atrás dela), teria sido recusada por causa de detalhes heréticos: numa desconcertante inversão de papéis, é o pequeno João Batista que abençoa Jesus, enquanto, com a mão esquerda, Maria parece ameaçar João. Sob os dedos curvados dela, que parecem segurar uma cabeça, o anjo Uriel faz um gesto como se a estivesse decapitando. Tudo, claro, interpretações mais ou menos consagradas por obras anteriores a O Código. “Jamais saberemos se Da Vinci quis dizer alguma coisa com isso, mas o fato é que essas cenas foram tiradas, ou suavizadas, na segunda versão”, diz a historiadora Sarah B. Benson, da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. “Outro motivo pelo qual provavelmente a primeira versão foi rejeitada é que no cenário atrás dos personagens apareciam algumas espécies de plantas utilizadas em rituais pagãos.” A tela é inspirada no animismo, uma linha de pensamento comum naquela época, segundo o qual a natureza teria vida e alma.

Pentagrama humano
Numa das primeiras cenas do livro (e do filme), um homem esvai-se em sangue. Antes de morrer, no entanto, ele resolve dar uma pista sobre seu assassino e se deita com os braços e pernas abertos no centro de um círculo, formando um pentagrama humano. A imagem macabra é uma referência ao desenho mais famoso de Leonardo, conhecido como Homem Vitruviano. A obra é uma referência ao tratado Des Architetura, do engenheiro romano Vitruvius Pollio, que viveu no século 1 a.C. e de quem Leonardo importou o conceito das proporções arquitetônicas e da simetria do corpo humano. “O comprimento dos braços abertos de um homem é igual à sua altura”, escreveu Vitruvius. “Nesse estudo, Da Vinci se inspirou em Pitágoras, o matemático grego que viveu no século 6 a.C. e que acreditava que todo o Universo se sustenta segundo uma ação proporcional e geométrica”, diz o historiador inglês Martin Kemp, professor da Universidade de Oxford. Segundo ele, os princípios da proporção eram uma preocupação comum aos artistas do Renascimento, mas Leonardo levou isso às últimas conseqüências, incorporando às suas obras estudos sobre a simetria dos seres vivos e dos objetos. A inovação de Leonardo ao criar o Homem Vitruviano foi posicioná-lo no centro de um quadrado e de um círculo. “Nessa nova apresentação, o esquema de Vitruvius tornou-se uma realização visual definitiva. É amplamente usado como um símbolo do desenho cósmico da estrutura humana”, afirma Martin.

João ou Maria
Centro da polêmica e suposta grande revelação de O Código Da Vinci, uma das mais sublimes pinturas de Leonardo está na parede do refeitório da igreja Santa Maria das Graças, em Milão. Feita sob encomenda do poderoso Ludovico Sforza, mostra a última refeição de Jesus com seus apóstolos. “Esse vinho é o meu sangue derramado por amor a vocês. Esse pão é o meu corpo, comam dele em minha memória”, estaria dizendo Jesus, segundo a tradição cristã. Até aí, tudo bem. O problema é que, segundo o livro, a cena esconde uma série de sinais que provariam o segredo mais bem guardado do últimos 2 mil anos: Maria Madalena teria sido mulher de Jesus e com ele tido filhos. A prova? É ela quem aparece à direita de Jesus, no lugar em que geralmente identificamos João. As feições delicadas que Leonardo deu ao apóstolo seriam, para Dan Brown, um forte indício de sua tese. Segundo Lisa DeBoer, professora de História da Arte na Universidade Westmont, nos Estados Unidos, no entanto, a explicação não convence. “Ele era o discípulo mais jovem e mais próximo de Jesus. Retratá-lo com traços finos e rosto imberbe não foi algo exclusivo de Leonardo, outros artistas renascentistas também o pintaram dessa maneira”, diz Lisa. Outra pista que Leonardo teria dado, segundo o livro, é que o espaço deixado pelo artista entre João (ou Maria) e Jesus forma a inicial “M”.“Essas idéias já existiam na época de Leonardo, mas não há nenhuma dica, nos milhares de textos que ele deixou, de que ele as conhecesse ou compactuasse com elas.”

Aventuras na História n° 034