domingo, 23 de setembro de 2012

No mocambo matriarcal


Ernani Fagundes
Uma negra, Ngola, foi rainha no século 19, em pleno Brasil escravocrata. Como ela, outras escravas fugidas eram quem mandavam em alguns quilombos no meio da floresta amazônica – os chamados mocambos. Não há estudos sobre quantos eles eram, tampouco sobre sua localização. O que se sabe é que o poder feminino era fruto de uma questão matemática: vinha da proporção desigual da população, uma mulher para cada dez homens, o que as tornava extremamente valorizadas.
Erguidos no meio da floresta por escravos fugidos, os mocambos eram relativamente seguros. Os caçadores de escravos raramente se atreviam a entrar na mata por causa da dificuldade de acesso e das doenças tropicais. A descrição mais precisa que se tem de um mocambo deve-se ao francês Jean Jacques Berthier, que veio ao Brasil exilado da Revolução Francesa.
Fugindo das batalhas que assolaram o país depois da independência, ele foi parar num desses mocambos matriarcais – justamente o da rainha Ngola – e viveu lá entre 1824 e 1828. Sua carta enviada ao irmão Guillaume, em Nantes, na França, foi pesquisada pelo historiador Décio Freitas para o livro A Miserável Revolução das Classes Infames e mostra com riqueza de detalhes como era a vida nesse pedaço da África em plena floresta amazônica.

 Um dia no reino de Ngola
A rainha tinha poder absoluto no mocambo onde viviam cerca de 2 mil pessoas.

1. Coberta de ouro
Ngola, eleita pelo sistema de braço levantado, era o poder absoluto. Passava o dia em audiências com os “súditos”, que a reverenciavam de joelhos. Quando ouvia deles algo que julgava errado, castigava – duas ou três bastonadas. Ngola também usava enfeites feitos de ouro extraído dos domínios de seu mocambo.

2. Ouro por armas
Com o ouro que extraíam, os mocambeiros compravam armas dos holandeses da vizinha Guiana – que, por sua vez, consumiam as ervas medicinais dos negros. Os ex-escravos também vendiam tabaco e mandioca para as populações ribeirinhas e praticavam a pirataria: os soldados de Ngola atacavam canoas em rios distantes, roubando os viajantes – ou então saqueavam povoações de brancos.

3. Arrimo de família
O trabalho no mocambo era todo feito pelos homens, que se dividiam nas tarefas: havia, por exemplo, agricultores, caçadores, pescadores, tecelões, oleiros, serralheiros. O francês Berthier os descreveu como robustos e ágeis e com a mania de caminhar descalços. Outra atribuição masculina era carregar a esposa nas costas, quando elas não queriam andar a pé.

4. Vida boa
Já a ocupação principal das mulheres do mocambo era vigiar o trabalho dos maridos. Aliás, elas podiam ter até cinco companheiros, embora costumassem escolher um preferido, para supervisionar toda a família (que chegava a ter até 20 filhos). Para passar o tempo, a mulherada sentava no chão para bater papo, cantar e fumar tabaco.

5. Festa na floresta
Festas eram comuns no mocambo. E elas duravam dias e noites, com muita música e dança. Ao som de marimbas e de um instrumento chamado “pungo”, contadores de histórias empolgavam os ouvintes. As festas, porém, não eram sempre religiosas – embora os mocambeiros o fossem. Eles adoravam ídolos com feições humanas e animais e faziam sacrifícios com bichos. A cerimônia era realizada por um feiticeiro, que também era curandeiro.

6. União informal
Para se casar, era o homem que tinha que ser aceito pela mulher. Antes de ser aprovado, ele passava por uma convivência de alguns meses. Se aceito, tinha de pagar o dote exigido pela noiva. Só assim ela declarava em público que aquele homem era seu marido. Cabia à mulher ainda mandar os esposos embora de casa quando bem entendesse – e decidir com qual deles manteria relações sexuais.

Aventuras na História n° 034

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