Ernani Fagundes
Uma negra, Ngola, foi rainha no século 19, em pleno Brasil
escravocrata. Como ela, outras escravas fugidas eram quem mandavam em alguns
quilombos no meio da floresta amazônica – os chamados mocambos. Não há estudos
sobre quantos eles eram, tampouco sobre sua localização. O que se sabe é que o
poder feminino era fruto de uma questão matemática: vinha da proporção desigual
da população, uma mulher para cada dez homens, o que as tornava extremamente
valorizadas.Erguidos no meio da floresta por escravos fugidos, os mocambos eram relativamente seguros. Os caçadores de escravos raramente se atreviam a entrar na mata por causa da dificuldade de acesso e das doenças tropicais. A descrição mais precisa que se tem de um mocambo deve-se ao francês Jean Jacques Berthier, que veio ao Brasil exilado da Revolução Francesa.
Fugindo das batalhas que assolaram o país depois da independência, ele foi parar num desses mocambos matriarcais – justamente o da rainha Ngola – e viveu lá entre 1824 e 1828. Sua carta enviada ao irmão Guillaume, em Nantes, na França, foi pesquisada pelo historiador Décio Freitas para o livro A Miserável Revolução das Classes Infames e mostra com riqueza de detalhes como era a vida nesse pedaço da África em plena floresta amazônica.
Um dia no reino de Ngola
A rainha tinha poder absoluto no mocambo onde viviam cerca
de 2 mil pessoas.
1. Coberta de ouro
Ngola, eleita pelo sistema de braço levantado, era o poder
absoluto. Passava o dia em audiências com os “súditos”, que a reverenciavam de
joelhos. Quando ouvia deles algo que julgava errado, castigava – duas ou três
bastonadas. Ngola também usava enfeites feitos de ouro extraído dos domínios de
seu mocambo.
2. Ouro por armas
Com o ouro que extraíam, os mocambeiros compravam armas dos
holandeses da vizinha Guiana – que, por sua vez, consumiam as ervas medicinais
dos negros. Os ex-escravos também vendiam tabaco e mandioca para as populações
ribeirinhas e praticavam a pirataria: os soldados de Ngola atacavam canoas em
rios distantes, roubando os viajantes – ou então saqueavam povoações de
brancos.
3. Arrimo de família
O trabalho no mocambo era todo feito pelos homens, que se
dividiam nas tarefas: havia, por exemplo, agricultores, caçadores, pescadores,
tecelões, oleiros, serralheiros. O francês Berthier os descreveu como robustos
e ágeis e com a mania de caminhar descalços. Outra atribuição masculina era
carregar a esposa nas costas, quando elas não queriam andar a pé.
4. Vida boa
Já a ocupação principal das mulheres do mocambo era vigiar o
trabalho dos maridos. Aliás, elas podiam ter até cinco companheiros, embora
costumassem escolher um preferido, para supervisionar toda a família (que
chegava a ter até 20 filhos). Para passar o tempo, a mulherada sentava no chão
para bater papo, cantar e fumar tabaco.
5. Festa na floresta
Festas eram comuns no mocambo. E elas duravam dias e noites,
com muita música e dança. Ao som de marimbas e de um instrumento chamado
“pungo”, contadores de histórias empolgavam os ouvintes. As festas, porém, não
eram sempre religiosas – embora os mocambeiros o fossem. Eles adoravam ídolos
com feições humanas e animais e faziam sacrifícios com bichos. A cerimônia era
realizada por um feiticeiro, que também era curandeiro.
6. União informal
Para se casar, era o homem que tinha que ser aceito pela
mulher. Antes de ser aprovado, ele passava por uma convivência de alguns meses.
Se aceito, tinha de pagar o dote exigido pela noiva. Só assim ela declarava em
público que aquele homem era seu marido. Cabia à mulher ainda mandar os esposos
embora de casa quando bem entendesse – e decidir com qual deles manteria
relações sexuais.
Aventuras na História n° 034
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