Celso Miranda
Em 1947, a viagem do
escritor americano John Steinbeck e do fotógrafo húngaro Robert Capa pela União
Soviética rendeu um dos relatos mais reveladores sobre a vida do outro lado da
Cortina de Ferro.
Mal terminara a Segunda Guerra e o mundo estava de novo
dividido entre bons e maus. Em 1946, o ex-primeiro-ministro britânico Winston
Churchill anunciava que uma “cortina de ferro” descera sobre o Leste Europeu.
Antes aliados, soviéticos e americanos tornaram-se mutuamente assustadores. De
parte a parte, as notícias eram desencontradas. Nos Estados Unidos, muito se
falava sobre a Rússia, sua política, seus líderes, mas nada sobre as pessoas.
Como viviam? Como reconstruíam o país? O que comiam no jantar? O que achavam
dos americanos?
Para responder, John Steinbeck, autor de clássicos da
literatura americana, como As Vinhas da Ira, e o fotógrafo Robert Capa, famoso
pelas imagens que fez da Guerra Civil Espanhola e do Dia D, partiram numa
aventura impensável naqueles primeiros dias do que mais tarde viria a ser chamado
de Guerra Fria: viajar pela União Soviética e registrar em textos e imagens a
vida do povo russo. “As informações que nos interessavam não seriam políticas,
exceto na medida em que a política fosse local, afetando diretamente a vida
cotidiana das pessoas”, escreveu Steinbeck, no livro Um Diário Russo.Steinbeck e Capa pousaram em Moscou às 16h30 do dia 31 de julho de 1947, a bordo de um C-47 ainda com a pintura militar marrom – herança do programa de ajuda militar americano durante a guerra. A primeira lembrança que guardariam do país seria a refeição que fizeram no Hotel Metrópole, no centro de Moscou, local que servia de residência a correspondentes internacionais, diplomatas e um ou outro comerciante ou industrial de passagem pela cidade. O jantar para cinco pessoas consistiu de meio litro de vodca, uma grande porção de caviar negro, sopa de repolhos, filé com fritas, queijo e duas garrafas de vinho. Custou cerca de 110 dólares. Pouco para o trabalhão que deu. Não tanto pela comida, mas pelo intricado processo que era realizar uma transação comercial na União Soviética, naqueles dias. Todo o comércio era da alçada do Estado ou de monopólios concedidos pelo governo, e isso tornava a contabilidade muito complexa. O garçom anotava o pedido e tinha que registrá-lo em um livro. Antes de informar o cozinheiro, passava pelo contador, que fazia outro registro dos alimentos desejados e só então emitia a papeleta que seguia para a cozinha. Lá, mais um registro era feito e o prato começava a ser preparado. Quando ficava pronto, outra papeleta era emitida e entregue ao garçom. E ele levava o prato para a mesa, certo? Não, primeiro precisava entregar a papeleta da cozinha para o contador, que registrava a finalização do prato solicitado e entregava outra via ao garçom, que só então retornava à cozinha, retirava a comida e a levava até a mesa. No fim, ele anotava em seu próprio livro que o prato pedido, devidamente registrado, fora afinal entregue aos clientes (no caso de Steinbeck e Capa, o processo levou duas horas e meia).
Enquanto isso, a orquestra tocava “Roll out Barrel” e “In the Mood”, clássicos das big bands americanas, intercalados por canções de Frank Sinatra, como “Old Black Magic” e “I’m Not in the Mood for Love”. Em russo.
No dia seguinte, num passeio pela cidade, Steinbeck achou Moscou muito diferente de quando estivera ali, em 1936. “Partes inteiras dos bairros apinhados e sujos da velha cidade haviam sumido e, em seu lugar, brotaram conjuntos habitacionais e edifícios públicos”, anotou. A cidade, na verdade, passava por um sem-número de obras. Os edifícios estavam sendo pintados ou restaurados para as comemorações dos 800 anos de Moscou. Alguns dias na cidade, porém, bastaram para a dupla perceber que não era ali que desejava estar. “Queríamos conversar com agricultores, trabalhadores e comerciantes, a fim de ver como viviam. Enfim, era isso que pretendíamos contar aos americanos, de modo a tornar possível algum tipo de entendimento entre os dois povos”, dizia Steinbeck. Se pretendiam realizar seus planos, precisariam seguir para o interior, conhecer outras regiões, menos controladas.
Pepinos maduros
Dois dias depois, Steinbeck e Capa estavam sobrevoando a
Ucrânia, uma região coberta por plantações. Como os aviões soviéticos
costumavam voar baixo, a uns 300 metros de altitude, e só iam mais alto em caso
de chuva (aliás, eles também não voavam à noite e, se escurecia no meio da
viagem, o piloto pousava na cidade mais próxima e só decolava no dia seguinte),
dava para ver que o trigo e a cevada já estavam sendo colhidos. “Mas, ao
avistarmos vilarejos, víamos o ziguezague das trincheiras e as crateras abertas
pelas bombas. Havia casas destelhadas e manchas escuras de edifícios
incendiados”, escreveu Steinbeck. Quando chegaram a Kiev, a capital da
república, encontraram uma cidade devastada. Fundada no alto de uma colina às
margens do rio Dniepr, Kiev fora uma bela cidade. Mais antiga que Moscou – seus
mosteiros, fortalezas e igrejas remontam ao século 11 –, era chamada “a mãe das
cidades russas”. Ali os alemães mostraram do que eram capazes. Todos os
edifícios públicos, bibliotecas e teatros foram destruídos. Sem contar os
soldados, 6 milhões de pessoas foram mortas, cerca de 15% da população
ucraniana.Mas, segundo Steinbeck, havia indícios de que a cidade estava sendo reconstruída. “Não há uma máquina funcionando, não se vê um trator ou escavadeira. Tudo foi levado ou destruído e cada tijolo da cidade devastada é removido manualmente. E, quando uma nova parede é erguida, é também à força de braços ucranianos”, relatou. Steinbeck e Capa encontraram em Kiev um povo que, livre da guerra, vivia mais alegre e descontraído que o de Moscou.
Em 9 de agosto, os dois chegaram a um vilarejo chamado Chevtchenko (em homenagem a um famoso poeta ucraniano). No caminho enlameado que levava até lá, ainda se podiam ver as marcas deixadas pelas lagartas dos tanques. Antes da guerras Chevtchenko era um assentamento não muito rico, mas próspero e produtivo, onde havia 362 casas. Após a passagem dos alemães, restaram oito. Os homens esconderam-se na floresta e permaneceram lutando como guerrilheiros. Crianças e mulheres foram escravizadas, muitas assassinadas. Terminada a guerra, as pessoas retornaram ao vilarejo e, agora, homens e mulheres trabalhavam juntos para erguer pequenas casas, o que, em época de colheita, acontecia depois da lida nos campos, à noite e madrugada adentro. “Eles erguem um aposento e vivem nele até que possam construir outro”, descreveu Steinbeck. Prontas, as casinhas ficam todas parecidas. “Um salão na entrada, que dá para a cozinha, sempre rebocada de branco, com forno e fogão de tijolos, que também serve de lareira. Em seguida vem o aposento de uso comum, com a mesa de jantar e a área de visitas, decoradas com flores de papel, imagens sacras e fotos de parentes mortos. Em cada casa existem muitas delas.”
Em Chevtchenko, os campos eram coletivos, mas cada família mantinha sua própria horta, seu jardim, em que cultivava flores e legumes, além de criar abelhas. A fazenda produzia um pouco de trigo, painço e milho, mas, como o terreno era superficial e arenoso, as principais safras eram pepinos, batatas, tomates e girassóis. “Nos campos, mulheres e crianças colhiam pepinos divididas em batalhões que competiam entre si tentando colher o máximo em menos tempo”, relatou Steinbeck. As mulheres vestiam saias longas, blusas e lenços na cabeça. Estavam todas descalças. Um menino chamado Gricha, que usava um elaborado chapéu feito de junco, correu até sua mãe e gritou algo maravilhado. O tradutor ajudou os visitantes a entender o que ele disse: “Veja, mãe. Esses americanos são iguaizinhos à gente”.
Ciranda de pedra
A terceira parada na expedição de Capa e Steinbeck foi
Stalingrado, a cidade que, já naqueles dias, inspirava um sentimento épico: ali
o mundo começou a ser salvo dos nazistas. Pela estrada esburacada, foram
conduzidos, só os dois, em um ônibus antigo. “Buick, Cadillac, Lincoln,
Pontiac, Studebaker”, dizia o motorista. Eram as únicas palavras em inglês que
ele conhecia. Ao lado, ao longe, à frente, havia um movimento ininterrupto de
gente carregando pedaços de vagões, peças de artilharia e todo tipo de sucata.
Tudo estava sendo recolhido e transportado para a nova fábrica de tratores,
construída na periferia de Stalingrado. Em volta dela, centenas de casinhas
estavam sendo erguidas para os trabalhadores. Mas, ao chegar à cidade, só se
via destruição. Durante meses Stalingrado fora atacada, tomada, retomada e
atacada novamente, num dos maiores e mais decisivos confrontos da Segunda
Guerra. Na praça central, viam-se os resquícios daqueles dias: uma loja de
departamentos destruída, prédios arruinados, destroços espalhados em volta da
fonte, onde crianças de pedra ainda dançavam.Stalingrado havia sido uma cidade grande e agora não havia nada. Mas ela não estava desabitada. Debaixo de todo aquele entulho havia porões e buracos nos quais vivia muita gente. De manhã, de trás dos destroços, as mulheres saíam para trabalhar. Iam bem maquiadas e penteadas. “Era difícil para nós imaginar como podiam fazer isso. Como conseguiam viver no subsolo e ainda assim se manterem tão limpas, orgulhosas e femininas”, escreveu Steinbeck.
Havia, porém, uma exceção. Logo abaixo do hotel onde Capa e Steinbeck se hospedaram, havia um pequeno monte de lixo, onde eram lançados ossos, cascas de melão e de batata. Alguns metros adiante, havia uma pequena elevação de terra, como a entrada da toca de um roedor. No início de cada manhã, uma menina engatinhava para fora desse buraco. Tinha pernas longas, não calçava nada nos pés e seus cabelos eram emaranhados e sujos. Estava coberta por anos de poeira e, por isso, parecia morena. “Agachada, devorava as cascas de melão e chupava os ossos usados na sopa de outras pessoas. Em algum momento, durante o terror dos combates pelo controle da cidade, algo dentro dela se rompera, obrigando-a a buscar refúgio no esquecimento”, escreveu Steinbeck. As pessoas que passavam por ela raramente lhe dirigiam a palavra. Mas certa manhã uma mulher lhe ofereceu um pedaço de pão. A garota o agarrou e apertou-o contra o peito, mas, como um cão selvagem, esperou que a mulher saísse para então comer furiosamente sem, no entanto, deixar de vigiar. “Enquanto comia, um lado de seu xale esfarrapado e imundo escorregou, descobrindo um seio jovem e sujo, mas sua mão automaticamente ajustou o traje, cobrindo-se num tocante gesto feminino.”
Durante muito tempo, muito além dos 40 dias na União Soviética, quando Capa e Steinbeck também estiveram em Tblisi, capital da Geórgia, terra de Stálin, e de volta a Moscou para ver o aniversário da cidade e as apresentações do balé Bolshói, muito depois do vôo de volta aos Estados Unidos e até dos dois anos que levaram para editar seu livro com esses relatos, a imagem daquela garota selvagem e feminina os perseguiria durante os sonhos.
Amigo Willy
A viagem começou num boteco e só foi para a frente porque um
barman achou que era uma boa ideia.Em março de 1946, John Steinbeck passava por aquilo que se costuma chamar de recesso criativo. Depois de publicar sua obra-prima, As Vinhas da Ira, em 1939, ele acabara de abandonar uma peça de teatro, que reescrevera quatro vezes antes. Para afogar o fracasso, Steinbeck bebia no bar do Hotel Bedford, em Nova York, quando entrou Robert Capa, outro que vinha de decepções profissionais, depois do lançamento de um livro de fotos suas (que ele odiava) publicadas na revista Life. Willy, o barman, serviu alguns drinques e logo eles discutiam um de seus assuntos prediletos: a imprensa. “As notícias deixaram de ser novidade, pelo menos as que interessam a todo mundo. Hoje, muito do que lemos como notícia não passa da opinião de meia dúzia de especialistas”, dizia Steinbeck. Willy serviu mais dois. “Todos os dias os jornais publicam um monte de coisa sobre a Rússia. O que Stálin está pensando, seus planos militares, os testes nucleares, e tudo comentado por gente que nunca pôs os pés lá. Mas, sem dúvida, o povo russo também tem uma vida privada, da qual nada sabemos, pois ninguém se dá ao trabalho de tomá-la como tema.”Enquanto Willy preparava mais duas doses, Steinbeck resolveu testar sua tese e perguntou a ele se esse era um assunto pelo qual se interessaria. Willy balançou a cabeça, concordando. Na hora, eles concordaram em ir até lá investigar, fotografar e escrever sobre a Rússia. Dois meses depois, prontos para a viagem, Capa e Steinbeck foram se despedir. Willy lhes serviu dois superdrinques e fez também um para si próprio. Depois do longo gole, o barman deu-lhes um último conselho: “Atrás do balcão, a gente aprende a ouvir muito e falar pouco”. Bom conselho para um jornalista e um fotógrafo.
Aventuras na História n° 034
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