sexta-feira, 27 de julho de 2012

Xadrez: Xeque-mate

Yury Vasconcelos

Em 1985, o novo e o velho se enfrentam na decisão do título mundial de xadrez. O resultado foi um prenúncio dos ventos de abertura na União Soviética.
Em 9 de novembro de 1985, um mundo dividido assistiu ao fim de uma exaustiva série de partidas pelo título mundial de xadrez. Aos 22 anos, Garry Kasparov se tornava, naquele dia, o mais jovem campeão da modalidade em todos os tempos. O prodígio havia derrotado Anatoli Karpov, que detinha a coroa desde 1975. Ambos tinham nascido na hoje extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a URSS. Entretanto, naqueles tensos anos 80, eles representavam interesses bastante diferentes. Karpov, membro do Partido Comunista, era o preferido dos burocratas de Moscou, enquanto o desafiante Kasparov, anticomunista e crítico do sistema, era encarado quase como um dissidente do regime. Sua vitória foi uma metáfora do fim do comunismo e um prenúncio do declínio da União Soviética, que alcançaria seu desfecho em 1992, com a desintegração do país.
No plano internacional, o planeta vivia a chamada Guerra Fria, que colocava de um lado os Estados Unidos e seus aliados do Ocidente e, do outro, os soviéticos e seus parceiros comunistas. Para compreender o significado do duelo entre Karpov e Kasparov, que durou mais de um ano, é preciso voltar no tempo e perceber a importância do xadrez nos tempos da Guerra Fria. Desde o fim da década de 1920, o regime soviético, por ordem do ditador Josef Stálin, resolveu tratar esse esporte como assunto de Estado. O objetivo era usar o xadrez como instrumento de propaganda política e tentar provar a superioridade intelectual dos comunistas frente aos capitalistas.
“O xadrez sempre foi um simulacro dos confrontos políticos e militares, com todas as suas jogadas de abertura e xeques-mates”, escreveu ano passado, na revista britânica Prospect, o jornalista Daniel Johnson (que está preparando um livro sobre o xadrez e a Guerra Fria). “O jogo funcionou como uma megametáfora para aquela guerra psicológica. Os russos podem ter ficado para trás em termos de tecnologia militar ou competição econômica, mas nos tabuleiros de xadrez eles reinaram supremos”, afirma. Desde o fim dos anos 30, todos os campeões mundiais (Alexander Alekhine, Mikhail Botvinnik, Tigran Petrosian, Boris Spassky) haviam saído da União Soviética. A exceção foi o americano Bob Fischer, que levou o troféu para o Ocidente em 1972, derrotando Spassky. Foi a primeira vez que um ocidental ousou desafiar e vencer um campeão soviético.
Pelas regras da Federação Internacional de Xadrez (Fide, na sigla em francês), o campeão precisava defender o título a cada três anos. O desafiante era definido no Torneio dos Candidatos, uma exaustiva maratona trienal em que enxadristas de todo o planeta se enfrentavam. Karpov venceu a competição e se credenciou para a disputa do título de 1975. Mas, por discordar das regras da disputa, Fischer recusou-se a colocar seu troféu em jogo. Assim, o soviético acabou sendo sagrado campeão.
Três anos depois, Karpov enfrentou o desertor soviético Victor Korchnoi, que tinha se naturalizado suíço. A disputa ocorreu em Baguio City, nas Filipinas – o desafiante não poderia entrar na União Soviética sem correr o risco de ser detido. Karpov ganhou por 6 a 5, com 21 empates. Alguns anos depois da final, Korchnoi declarou que perdera a disputa, mas salvara a própria vida. Era uma alusão aos rumores de que, caso tivesse vencido, os soviéticos teriam forjado um acidente para matá-lo. A disputa pelo campeonato de 1981 opôs, mais uma vez, Karpov e Korchnoi. Desta vez, o desafiante não resistiu ao bom jogo do campeão e perdeu por 6 a 1.
A história dos combates entre Karpov e Kasparov teve início na luta pelo título de melhor enxadrista de 1984. “Kasparov era uma estrela ascendente. Havia derrotado grandes jogadores para chegar à final”, afirma o enxadrista Luiz Loureiro, cronista da Federação Paulista de Xadrez. “Karpov, por sua vez, era considerado um herói nacional por causa das vitórias contra Korchnoi. Ele havia sido condecorado com uma distinção emérita por ter defendido a honra do país contra um dissidente.”
A disputa começou em setembro e teve como palco a célebre Sala das Colunas, em Moscou (local em que os líderes soviéticos, desde Lênin, haviam sido velados após a morte). Assim como no embate entre Karpov e Korchnoi, venceria quem chegasse primeiro a seis vitórias, sem que houvesse um número limitado de partidas. O confronto começou acirrado, com empate nas duas primeiras partidas, mas logo Karpov abriu uma ampla vantagem. Em nove jogos, fez 4 a 0 e deu a impressão de que venceria com facilidade. Seguiram-se, então, 17 empates até Karpov levar mais uma partida e ficar a uma vitória do título consagrador. Mas não foi o que aconteceu. Depois de três empates, Kasparov registrou sua primeira vitória e resistiu bravamente a mais 14 jogos que terminaram sem vencedor.
Àquela altura, com 45 partidas jogadas, o confronto estava perdendo interesse e tinha virado uma dor de cabeça para seus organizadores. A Federação Soviética de Xadrez não esperava uma disputa tão longa, muito menos arcar com o custo do aluguel da suntuosa Sala das Colunas. Após a partida 47 (empate, assim como a 46), realizada em janeiro de 1985, quatro meses depois de iniciado o confronto, a final foi deslocada para o Hotel Sport, em Moscou. A mudança de ares beneficiou Kasparov, que ganhou duas partidas consecutivas e encostou no placar (3 a 5). Como Karpov era o queridinho do regime, a reação do desafiante acendeu a luz vermelha. “A impressão que se teve é que Kasparov, muito mais jovem e atlético do que Karpov, poderia inverter o jogo”, conta Luiz Loureiro.
Em 13 de fevereiro de 1985, o presidente da Fide, o russo Florêncio Campomanes, amigão de Karpov e defensor do regime comunista, decidiu suspender a disputa, alegando que os jogadores estavam exaustos e que seria improvável um dos dois conseguir a sexta vitória. Ficou acertado que uma nova final seria disputada dentro de seis meses. O tiro acabou saindo pela culatra. “Do ponto de vista esportivo, Karpov foi o maior prejudicado, pois tinha dado aulas de graça para seu adversário”, diz Loureiro. “Kasparov ganhara uma enorme experiência, que o transformou num jogador mais forte, equilibrado e completo.”
Enquanto o embate Karpov-Kasparov estava suspenso, o pano de fundo político havia mudado. Em 11 de março de 1985, chegou ao poder Mikhail Gorbachev, o novo secretário-geral do Partido Comunista Soviético. Autor dos programas de distensão do regime conhecidos como Perestroika (“reestruturação”) e Glasnost (“abertura” ou “transparência”), ele viria a ser o principal responsável pelo desmantelamento da União Soviética. Ele substituía Kostantin Chernenko, que morrera 13 meses depois de ser escolhido pelo partido.
Antes de Chernenko, o país havia sido governado por Yuri Andropov, ex-chefe da KGB, a política secreta soviética. Ele também teve uma passagem efêmera pelo Kremlin (apenas 16 meses). Andropov e Chernenko sucederam o líder Leonid Brejnev, que mandou na União Soviética entre 1964 e 1982. “Os dois líderes que vieram depois dele eram figuras anódinas e desconhecidas. A idéia que se tinha é que o regime estava caindo aos pedaços e seus mandatários estavam enganando o povo”, afirma a historiadora Maria Aparecida de Aquino, da Universidade de São Paulo.
A final do campeonato de xadrez de 1985, portanto, foi realizada em meio a profundas transformações na vida soviética. “Karpov representava o período de estagnação de Brejnev e Kasparov era o símbolo da ruptura e dos novos ventos trazidos por Gorbachev”, diz o enxadrista Luiz Roberto da Costa Júnior, sócio do Clube de Xadrez Epistolar Brasileiro. Para evitar o fiasco do embate anterior, a Fide mudou as regras do jogo e limitou em 24 o número de partidas. Seria campeão quem acumulasse mais pontos ao fim do confronto – as vitórias valeriam um ponto e os empates, meio ponto para cada competidor. Em caso de igualdade, Karpov manteria o título.
O reinício do confronto teve como palco a Sala de Concerto Tchaikovsky, em Moscou. Kasparov ganhou a primeira partida, mas Karpov recuperou-se e venceu os jogos 4 e 5, fazendo 2 a 1. O desafiante empatou a disputa no 11º jogo, após cinco empates sucessivos, e virou o placar no 16º embate, fazendo 3 a 2. Ampliou a vantagem ao ganhar o 19º jogo, mas, três partidas depois, Karpov conquistou sua terceira vitória, encostando no marcador (4 a 3). Faltando duas partidas para o fim da disputa, Karpov precisava de mais uma vitória e um empate para continuar com a coroa. O penúltimo jogo acabou sem vencedor e o último foi ganho por Kasparov, que enfim se sagrou campeão.
A vitória do jovem enxadrista foi comemorada no Ocidente, mas teve um gosto amargo para as autoridades de Moscou. “Nos bastidores, eu era visto como um alienígena. Primeiro, não gostavam de minha origem ‘pouco pura’: sou filho de pai judeu com mãe armênia”, declarou Kasparov em entrevista dada à revista Veja em 2004. “Depois, nunca me manifestei a favor do governo russo. Por causa disso, minha presença no pódio do xadrez soviético era incômoda para o regime. Eles teriam preferido dar o ouro a um sujeito como Anatoly Karpov, abertamente simpático ao comunismo.” Um ano depois, falando a uma revista espanhola, o derrotado deu o troco: “Kasparov é muito inteligente e absorve tudo muito rápido, mas só foi tão grande pelo que aprendeu comigo”.
Em outras três ocasiões (1986, 87 e 89), os enxadristas se enfrentaram pelo título e Kasparov, que se aposentou dos tabuleiros no ano passado, sempre manteve a coroa. Um episódio curioso ocorreu na revanche de 1986. Após 16 partidas, Kasparov liderava com três pontos de vantagem. Foi quando Karpov venceu três partidas seguidas e empatou o jogo. “Kasparov pediu o adiamento da partida seguinte e demitiu um de seus analistas, suspeito de repassar a preparação das aberturas para a equipe rival”, conta Costa Júnior. Posteriormente, Kasparov ganhou mais um jogo e manteve o título. Apesar da aparente superioridade de Kasparov, o páreo entre os dois “K”, talvez a maior rivalidade da história do xadrez, sempre foi muito equilibrado. Prova disso é que, das 144 partidas disputadas entre eles no período 1984-1989, Kasparov venceu 21 e Karpov, 19. Os outros 104 jogos terminaram em empate.
Além de transformar profundamente as relações internacionais, o fim da União Soviética teve enorme impacto sobre o mundo do xadrez. Livre da burocracia comunista, Kasparov decidiu abandonar a Fide, controlada por ex-soviéticos, e, em 1993, fundou a Associação Profissional de Xadrez (PCA, na sigla em inglês). Tornou-se, no mesmo ano, seu primeiro campeão. Com a dissidência do antigo rival, Karpov ficou com o título da Federação Internacional, posto que manteve até 1999. No ano seguinte, foi a vez de Kasparov perder a coroa da PCA. Mesmo jogando por associações diferentes, eles não pararam de se enfrentar. A última partida, em 2002, foi vencida por Karpov.

Duelo de titãs
A ficha técnica dos maiores rivais da história recente do xadrez.
Anatoly Yevgenyevich Karpov

Nascimento: 23 de janeiro de 1951, em Zlatoust, ao sul dos montes Urais, na Rússia.
Formação: Economia.
Quando começou a jogar: aos 4 anos. Aos 15 anos, tornou-se o mais jovem jogador a obter o título de mestre nacional em seu país.
Ídolo no xadrez: o cubano José Raúl Capablanca, campeão mundial entre 1921 e 1927.
Vitórias sobre Kasparov: 23.
Estilo de jogo: procura acumular pequenas vantagens posicionais e espera pelo erro do adversário para consolidar seu jogo.
O que faz hoje: é embaixador do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e atua a favor da difusão mundial do xadrez.

Garry Kimovich Kasparov
Nascimento: 13 de abril de 1963, em Baku, capital do Azerbaijão.
Formação: Língua Estrangeira (inglês).
Quando começou a jogar: aos 5 anos. Aos 17, tornou-se o mais jovem enxadrista do mundo a conquistar o posto de grande mestre de xadrez.
Ídolo no xadrez: o russo Mikhail Botvinnik, campeão mundial nos anos 1948-57, 1958-60 e 1961-63.
Vitórias sobre Karpov: 33.
Estilo de jogo: dinâmico, com sacrifícios posicionais. Entrega peças em troca de vantagens no desenvolvimento de seu jogo.
O que faz hoje: é um político de direita, crítico mordaz do atual presidente russo, Vladimir Putin.

Enxadrista de Silício
Supercomputador bateu Kasparov nos anos 90.
Se os americanos de carne e osso nunca tiveram o gostinho de tirar de Garry Kasparov o título mundial de xadrez, eles pelo menos fizeram uma máquina capaz de derrotá-lo. Num golpe publicitário, a IBM patrocinou, em meados da década de 1990, duas séries de seis partidas entre o enxadrista e um supercomputador da empresa chamado Deep Blue – capaz de analisar mais de 100 milhões de posições de jogo por segundo. Em 1989, o mesmo Kasparov já havia derrotado um computador menos potente. E, em fevereiro de 1996, o humano também levou a melhor. Após perder a primeira partida para Deep Blue, Kasparov deu a volta por cima com três vitórias e dois empates. Depois do revés, os técnicos da empresa aperfeiçoaram o desafiante e um novo confronto foi realizado, em maio de 1997. Dessa vez, Kasparov só conseguiu vencer o primeiro jogo: acabou batido com duas derrotas e três empates. Inconformado, insinuou que o computador havia sido ajudado por enxadristas profissionais e pediu uma revanche. A IBM não aceitou e aposentou a supermáquina. A Kasparov, restaram os 400 mil dólares da cota destinada ao perdedor – a equipe responsável por Deep Blue levou 700 mil.

Abertura misteriosa
Modalidade provavelmente surgiu na Índia.
Ninguém sabe ao certo quando o jogo de xadrez foi criado. Alguns pesquisadores acreditam que ele apareceu pela primeira vez na Índia, por volta do século 6 a.C. Em torno do ano 1000, já tinha se espalhado pelo Oriente Médio e pela Europa. Na Idade Média, era conhecido como “jogo real”, por causa de sua popularidade entre os membros da nobreza. No século 20, a prática do xadrez se desenvolveu bastante na Rússia e no Leste Europeu, antes mesmo do surgimento da União Soviética. “Na Rússia czarista, o esporte ganhou grande impulso com os torneios internacionais disputados em São Petersburgo a partir do fim do século 19”, diz Luiz Roberto da Costa Júnior, do Clube de Xadrez Epistolar Brasileiro. “O título de grande mestre de xadrez, por sinal, foi criado pelo czar russo Nicolau II e concedido aos cinco primeiros colocados do torneio disputado em 1914.” Nos anos 50, a Federação Internacional de Xadrez adotou essa denominação para definir os melhores jogadores do mundo.

Aventuras na História n° 031

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