Ernani
Fagundes
Os soldados brasileiros foram os
primeiros da América a cruzar o Atlântico para guerrear no Velho Mundo. A
missão era expulsar os holandeses de Angola e restabelecer o tráfico de
escravos.
Já fazia
quase cinco anos que os senhores de terra olhavam pelas janelas de seus
casarões esperando por dias melhores. O problema era, de fato, preocupante:
faltavam braços negros para tocar os engenhos de cana-de-açúcar, o motor da
economia da colônia nos idos de 1600. A penúria arrastava-se desde 25 de agosto
de 1641, quando os holandeses invadiram
Luanda, capital da Angola, e passaram a controlar o tráfico de escravos para o
Brasil. A única capitania que não sofria com a escassez de mão-de-obra era
Pernambuco, então governada pelo holandês Maurício de Nassau. Com a situação
cada vez pior, os governantes locais, apoiados pela coroa portuguesa, decidiram
tomar uma atitude. Foi então que pela primeira vez na história do Novo Mundo
soldados cruzaram o Oceano Atlântico para guerrear no Velho Mundo. “O rei D.
João IV autorizou as expedições, mas não forneceu tropas ou munição, já que o
combalido reino estava em guerra com a Espanha”, diz o professor de História do
Brasil na Universidade de Sorbonne, na França, Luiz Felipe de Alencastro.
A soldadesca tupiniquim zarpou do Rio de
Janeiro no dia 8 de maio de 1645. No comando da expedição, estava o governador
fluminense Francisco de Souto Maior, destituído do cargo pela coroa para
encabeçar a briga na Angola. A tropa de Souto Maior, formada por algumas
dezenas de índios e 300 soldados, viajou em cinco navios. Ao mesmo tempo, da
Bahia, saíram mais três navios, com uma tripulação de 200 soldados, que
incluíam 32 mosqueteiros. “Os baianos foram treinados pelo líder negro
pernambucano Henrique Dias, um grande guerreiro”, diz Alencastro. A idéia do
ex-governador do Rio era reunir todos os combatentes brasileiros na costa
africana e partir para a guerra da reconquista de Luanda, uma bela cidade com 5
mil casas de alvenaria e um excepcional mercado de escravos. Souto maior só não
sabia quem esperava sua turma do outro lado do Atlântico.
A tropa baiana, liderada pelo sargento-mor
Domingos Lopes Siqueira, foi a primeira a encarar a recepção africana. Ao
desembarcar na enseada de Quicombo, a coluna caiu nas mãos dos jagas, tribo
canibal aliada dos holandeses. Só sobraram quatro soldados. Armados de
machadinhas, os jagas esquartejaram os invasores e fizeram um banquete,
devorando quase duas centenas de brasileiros. Souto Maior não teve melhor
sorte. Assim que pisou em solo angolano, ele organizou uma ofensiva, mas acabou
morto em maio de 1646. Foi envenenado pelos jagas. Mesmo com o fiasco dessa
primeira campanha, os brasileiros conseguiram trazer para o Rio dois mil
escravos, o que deu novo alento para os donos de engenho, que se entusiasmaram
com uma nova expedição.
Dois anos depois, os brasileiros já estavam de
novo no mar, rumo a Luanda. A expedição, capitaneada pelo novo governador do
Rio, Salvador de Sá, deixou a Baía de Guanabara no dia 12 de maio de 1648. Para
conseguir recrutar soldados, Salvador de Sá apelou para o apoio divino. Os
jesuítas pregaram colônia afora a expulsão dos “hereges calvinistas”. A
força-tarefa reuniu oficialmente 1200 homens a bordo de onze naus e quatro
pequenas embarcações. “O padre Antônio Vieira, contrário ao conflito, dava
conta que o número de soldados passava de dois mil, acusando o governante de
deixar o Rio de Janeiro sem defesas”, diz Alencastro. Já o historiador Charles
Ralph Boxer documentou entre 1400 e 1500 homens em seu livro Salvador de Sá e a
Luta pelo Brasil e Angola . Ou seja, ninguém sabe quantos homens participaram
da segunda expedição. Só se tem certeza que não havia índios e que a tropa
contava com combatentes de capitanias do nordeste, além de fluminenses,
angolanos refugiados e portugueses.
A travessia não foi um passeio. Pairava no ar
a ameaça de ataque da armada holandesa, comandada pelo almirante Witte de With.
E o tempo também não ajudou. Duas naus, a Gamela e a Canoa, tiveram de retornar
ao Rio de Janeiro devido a avarias causadas por tempestades, e duas outras
embarcações e o galeão São Luis diversas vezes se distanciaram da frota. Quando
avistou a costa da África, Salvador de Sá contava com 11 dos 15 navios de sua
esquadra. Seu primeiro plano era atacar Benguela, mas ancorou em Quicombo no
dia 27 de julho. Enquanto a tripulação preparava-se para o desembarque, uma
tragédia anunciou os tempos difíceis que viriam pela frente: uma onda gigante
afundou o São Luís. De acordo com cartas náuticas da época, o navio “se fez
pedaços pouco depois da meia-noite, levando consigo mais de duzentos soldados,
entre os melhores da expedição”.
Sem tempo para choro ou velas, Salvador de Sá
rumou para Luanda. Na foz do rio Maçangano, uma pequena comitiva desembarcou para
avisar os portugueses refugiados no interior do país da chegada de reforços.
Mais um contratempo, no entanto, atravessou o caminho dos brasileiros. Nativos
aliados dos inimigos aprisionaram os soldados e os levaram para um posto
holandês no Forte Mols, na foz do rio Cuanza. O trunfo de Salvador de Sá, o
elemento surpresa, foi enterrado aí. Ele, no entanto, continuou a empreitada. A
esquadra do Brasil aproximou-se da capital angolana no dia 12 de agosto. Ao
contrário do esperado, apenas dois navios guardavam o porto, o Noort-Holland e
o Ouden Eendracht, que fugiram para alto-mar. Dois pescadores negros capturados
no porto contaram que uma tropa comandada pelo holandês Symon Pieterszoon
estava com os jagas combatendo os portugueses em Maçangano. Melhor para
Salvador de Sá, que entrou em uma Luanda desguarnecida, com apenas 250
holandeses vigiando o Forte do Morro e o Forte da Guia.
Confiante,
Salvador de Sá chegou botando banca. Enviou três emissários para negociar a
rendição. Como os holandeses não hastearam a bandeira branca, o governador
colocou seus 800 soldados – e mais 200 marinheiros para fazer número – em fila
na praia. Os inimigos chamaram os brasileiros para a briga, disparando tiros de
canhão. Salvador de Sá e sua tropa, então, se refugiaram na entrada da cidade.
E fizeram uma missa campal. No alvorecer do dia 16, Salvador de Sá ordenou um
avanço contra o Forte do Morro. Os canhões usados eram de pequeno calibre e não
causaram grandes danos, apesar do forte do Morro ser de terra batida. Os holandeses
ofereceram fraca resistência, aguardando os reforços de Pieterszoon.
Na madrugada do dia 17, Salvador de Sá iniciou
mais uma batalha. Enquanto os navios faziam manobras para fingir um ataque por
mar, três colunas de soldados subiram em direção aos fortes do Morro e da Guia.
Segundo relatos dos padres Antônio do Couto e Simão de Vasconcellos, o avanço
das colunas era para ser simultâneo, o que não ocorreu. Uma coluna, por
percorrer um caminho menor, chegou primeiro. Já os holandeses concentraram-se em
ataques independentes e sucessivos. Espertos, eles lançavam primeiro foguetes e
tochas para visualizar os invasores e, depois, investiam com mosquete e
canhões. Quando o sol raiou, 150 dos 400 brasileiros que participaram da
empreitada estavam mortos. Do lado holandês, apenas três mortos e oito feridos.
Os holandeses, no entanto, tiveram um grave prejuízo. Perderam canhões,
destruídos pela artilharia brasileira, e carretas que possibilitavam o
transporte das pesadas armas de um lado para o outro.
Para espanto dos brasileiros, não houve
batalha final. Abalados com a perda das armas, os capitães holandeses Cornelis
Ouman e Adriaen Lens pediram paz. Na negociação, exigiram só uma rendição
digna. Ficou acertado que deixariam Luanda e os postos avançados de Cuanza e
Benguela levando na bagagem os escravos de propriedade da Companhia Holandesa.
Quando Pieterszoon retornou à capital, não gostou do que viu. Mas fingiu
aceitar os termos dos brasileiros. Foi embora deixando os jagas armados até os
dentes para oferecer resistência aos colonizadores. Consolidada a vitória em
Luanda, a tropa partiu para a conquista dos rincões angolanos. Os líderes eram
três jesuítas: Antônio do Couto, Gonçalo João e Felipe Franco. Os religiosos
convenceram alguns sobas (chefes) a ajudarem na travessia do país em direção a
Maçangano, onde espantaram os jagas e os nativos do rei do Congo, que sitiavam
os portugueses. Daí para frente, os brasileiros venceram todas as resistências.
A vitória foi comemorada em grande estilo.
Salvador de Sá assumiu o governo da Angola e rebatizou o Forte do Morro de
Forte de São Miguel, em homenagem ao patrono da expedição brasileira. Já a
cidade de São Paulo de Luanda virou São Paulo da Assunção, em honra a Nossa
Senhora da Assunção. E os tumbeiros (navios negreiros) embarcaram em direção ao
Brasil com sete mil escravos apinhados nos porões. Estava restabelecido assim o
tráfico de escravos. O reinado africano de Salvador de Sá acabou em 1652.
Depois dele, o Brasil voltou a enviar tropas a Luanda pelo menos em seis
ocasiões, principalmente nos governos de João Fernandes Vieira e André Vidal
Negreiros, que atuaram ferozmente na captura de mão- de-obra. A última
expedição brasileira à Angola foi em 1671 – 200 mulatos nordestinos
participaram da batalha conhecida como Pungo Adungo. Quando saiu de vez do
território angolano, o Brasil deixou muito bem estabelecido por lá um forte
comércio de fumo e cachaça, que conquistou os traficantes de escravos até a sua
proibição.
Protagonistas
Em terras angolanas, eles lideraram a briga
pela posse dos negros.
Perna-de-Pau
Cornelis Pieter Jols, conhecido como
Perna-de-Pau, comandou a frota de 19 navios de guerra da Companhia Holandesa
das Índias Ocidentais, que invadiu Luanda em 1641. Além de dois mil soldados e
900 marinheiros, ele contou com 200 índios potiguares, embarcados em Recife.
Para afugentar o governador angolano Pedro César de Menezes, Perna-de-Pau teve
sorte. No caminho, aprisionou um capitão espanhol inimigo dos portugueses que indicou
uma passagem no porto, livre do alcance dos canhões.
Rainha Jinga
Soberana do reino de Matamba, no leste de
Angola, Jinga comandava uma horda de guerreiros canibais, chamados jagas,
habilidosos na luta com machadinhas. Teve vida longa, de1581 a 1663. A rainha
era conhecida pela luxúria e perversidade. Possuía um harém de homens,
dispostos a morrer por ela. Seus súditos, os jagas, viviam do roubo, vitimando
diversas tribos. Quase no fim de sua vida, Jinga acabou convertida ao
catolicismo pelo frei napolitano Antônio da Gaeta, capuchinho de São Salvador
do Congo.
Salvador de Sá
Governador do Rio de Janeiro em diferentes
períodos, Salvador Correia de Sá e Benevides foi o principal responsável pela
retomada de Luanda, em 1648. Ele conseguiu apoio do rei D. João IV para dar o
troco nas escaramuças produzidas pelos holandeses nas colônias do Atlântico
Sul. Na África ganhou o nome de Nfumu-Etú-Lálânâ – Nosso Senhor Salvador – e
foi o pior inimigo da rainha Jinga. Tomou dela muitos escravos sem nunca devolver
a princesa dos jagas, Cambo, mantida como refém.
Kimpako
D. Garcia Afonso II – ou Kimpako na língua
bacongo – foi o rei do Congo do ano de 1641 a 1663. Até 1648, ele manteve forte
aliança com os holandeses, que colaboravam na sua luta contra um de seus
vassalos e pior inimigo, o Conde de Soyo. Convertido ao cristianismo, o
soberano congolês era católico fervoroso e abrigava em sua capital, São
Salvador do Congo, frades capuchinhos contrários à escravidão. Kimpako negociou
a paz com o novo governador de Angola, Salvador de Sá, após a expulsão dos
holandeses de Luanda, mas só foi perdoado pelo rei de Portugal, D. João IV,
depois de apelar para a intervenção do papa.
João Fernandes Vieira
Grande proprietário de engenhos de
cana-de-açúcar na Paraíba e comandante da resistência aos holandeses na
Insurreição Pernambucana, ele governou Angola entre 1651 e 1658. Vieira iniciou
a série de expedições de mulatos nordestinos que espalharam o terror na África
Central, queimando plantações dos nativos e escravizando angolanos e
congoleses, inclusive de tribos aliadas dos portugueses. Acabou excomungado
pelos jesuítas por denunciar a imensa quantidade de escravos que a Igreja
mantinha em cativeiro.
André Vidal de Negreiros
Herói da Insurreição Pernambucana, a guerra
contra a ocupação holandesa no Brasil, ele ganhou como prêmio o governo de
Angola. Ficou no poder entre 1661 e 1666 e comprou briga com o novo rei do
Congo, D. Antônio Afonso, chamado na língua bacongo de Mani Mulaza. A rixa
entre os dois aconteceu na Batalha de Ambuíla (1665), quando os mulatos de
Negreiros resistiram com espingardas e debaixo de chuva a milhares de arqueiros
de Mani Mulaza. Mesmo com muitas glórias, Negreiros foi afastado do governo de
Angola justamente por romper a paz com o Congo, conquistada logo após a
retomada de Luanda.
Tempos bárbaros
Negros eram trocados por fumo e cachaça.
Para conseguir escravos, os exploradores
luso-brasileiros não mediam esforços. Valia tudo, desde a guerra de captura até
o pagamento de tributos. Um dos jeitos mais comuns para amealhar a valiosa
mão-de-obra era trocar mercadorias de origem portuguesa (vinho, pólvora e
sal-gema) ou brasileira (fumo, cachaça e farinha de mandioca) por negros.
Nos tempos
de paz, os agenciadores de escravos, os pumbeiros, vasculhavam o sertão
angolano comprando os prisioneiros de tribos rivais. Nas idas e vindas ao
interior, levavam 150 escravos para carregar as mercadorias usadas como
pagamento. Demoravam cerca de um ou dois anos nas jornadas e voltavam com filas
de 500 a 600 “peças”. Já nas guerras de captura, os capitães partiam
acompanhados por centenas de soldados europeus, mulatos brasileiros ou mesmo
angolanos. Enfrentavam as tribos e escravizavam os homens capturados. Em
Luanda, os cativos ficavam em grandes barracões, esperando o embarque. Quando
os navios demoravam para transportar a “carga”, os escravos acabavam aproveitados
na plantação e cultivo da mandioca local.
Os jesuítas, que possuíam numerosos escravos
em Luanda, tinham um importante papel durante essa estadia, catequizando as
almas. Antes de embarcar, todos os escravos eram batizados com nomes bíblicos,
recebendo a nova alcunha por escrito em um papel. Eram orientados a esquecer os costumes de sua terra e a serem felizes na
nova fé.
Aventuras na
História n° 022