quinta-feira, 31 de maio de 2012

Folclore: o saber por trás das brincadeiras

Flávia Roberta Costa

A sociologia a partir do jeito de falar infantil.
Com seis anos, Florestan Fernandes começou a trabalhar como engraxate para ajudar a família. Depois, como auxiliar de barbeiro, alfaiate e cozinheiro. Impedido de seguir seus estudos formais, o filho de lavadeira analfabeta de origem portuguesa que vivia no bairro paulistano do Brás construiu seu saber por meio da experiência, com a convivência humana e a sociedade. Dessa forma, edificou o saber dos outros, revolucionou as ciências sociais no Brasil e ainda estabeleceu um novo estilo de pensamento no país.
É a origem do político, professor universitário e intelectual que apreciamos com a leitura de Folclore e Mudança Social na Cidade de São Paulo (Martins Fontes), compilação de suas primeiras investigações como estudante da USP, realizadas a partir de 1941. Nelas, Florestan estudou a influência do sistema sociocultural urbano sobre o folclore em seu próprio ninho: os bairros populares e de imigração da cidade de São Paulo, como Brás, Belém ou Lapa, num momento em que a cidade buscava um estilo de vida característico da modernidade.
Dito assim, parece meio difícil. Mas não é nada disso: o olhar de Florestan está mais interessado em registrar os diferentes falares das crianças dos bairros paulistanos. Por exemplo: como decidir quem será o pegador em um jogo de esconde-esconde. Na Lapa, alguém cantava: “Lá em cima do piano tem um copo de veneno, quem bebeu morreu”. A cada sílaba da sentença, a criança que fazia o sorteio (que no meu bairro, aliás, se chamava “xiniqueiro”) apontava para outra, uma de cada vez. E ai do infeliz em que “caísse” a última sílaba.
Se você tem mais de 30 anos, certamente vai se lembrar de coisas assim. As brincadeiras, jogos, ditados e até palavrões e xingamentos que marcaram nossa infância registram também a transformação de uma São Paulo e de um Brasil rural num lugar predominantemente urbano.

 Aventuras na História n° 022

Descamonizando a poesia lusitana

Lívia Lombardo

Está certo que Luís de Camões foi o maior poeta do classicismo e um dos mais brilhantes da literatura portuguesa. Só que levaram essa história muito ao pé da letra  a ponto de todo poema de qualidade  escrito no século 16 ter sido atribuído a ele.
Em 1967, o filólogo brasileiro Emmanuel Pereira Filho deu o pontapé inicial para colocar ordem à confusão que se tornou a lírica camoniana. Dos 700 poemas que foram atribuídos a Camões até o século 19, restam atualmente apenas 133 que são considerados indiscutivelmente deste autor. Muitos estudiosos, no entanto, não concordam com os critérios atuais para estabelecer as obras do poeta - de acordo com as normas, versos famosos como Amor é fogo que arde sem se ver (aquele que foi até musicado pela Legião Urbana) deixam de ser considerados de sua autoria.
O maior responsável pela bagunça foi Manuel de Faria e Sousa, poeta português do século 17 que dedicou-se por trinta anos ao estudo da obra camoniana. De acordo com a filóloga Garolina Michaelis em Dispersos, o critério de Faria e Sousa para atribuir a autoria de um poema a Camões era simples: "Tudo que aparecer anônimo, e for bom e belo, é dele; se aparecer em nome alheio, é roubado".
Estava instaurada a confusão. "Até o século 19, ocorreu uma enorme expansão do cânone camoniano, tudo em consequência da compilação dos cadernos de Faria e Sousa", afirma a professora de literatura portuguesa da USP, Márcia Arruda Franco.
A realidade é que a lírica camoniana é um enigma até hoje. Como não chegou até nós nenhum manuscrito autógrafo de Camões - dizem que foram roubados em Moçambique -, a análise da obra do poeta é feita através de manuscritos quinhentistas, cancioneiros por terceiros. O problema é que eles eram copiados de outros textos ou diretamente redigidos enquanto o autor recitava e, por isso, estão sujeitos a todos os tipos de mudanças e erros.
A regra é clara
Hoje em dia, não basta mais ser de qualidade. Para que um poema possa ser atribuído a Camões, ele deve atender a três exigências:
1. Pelo menos dois documentos do século 16, de autores diferentes, devem atribuir o poema a Camões;
2. Ao menos um desses dois documentos deve ser manuscrito. Não podem ser dois documentos impressos;
3. Nenhum registro pode atribuir a autoria desse poema a outro autor.

 Aventuras na História n° 022

O Dia Decisivo

Celso Miranda

Nas primeiras horas da fria manhã de 6 de junho de 1944, as praias da região da Normandia, no norte da França, receberam uma visita inesperada: cerca de 175 mil soldados americanos, britânicos e canadenses. Começava a operação Overlord e o “mais longo dos dias”: o Dia D. A missão da imensa tropa aliada era romper a ocupação nazista na Europa Ocidental, liberar a França e marchar para Berlim. Mas foi na estreita faixa de 80 quilômetros a partir do litoral que a sorte de toda a operação, liderada pelo general americano Dwight Eisenhower, foi decidida. Quando a tarde chegou, perto de 3 mil soldados aliados estavam mortos. Outros 8 mil feridos não puderam prosseguir.
Arrastão
"Nós vamos invadir sua praia, Fritz".
Corra homem, corra.
Cada lancha carregava 36 homens. Quando a rampa baixava só havia uma coisa a fazer: correr. O que, sob fogo inimigo e carregando cerca de 30 quilos em equipamentos, já era por si só um ato de heroísmo.
Fogo traseiro
Como sua principal tarefa era o transporte, os tanques de combustível da LCVP ficavam no lado oposto da rampa de desembarque. Ali, estavam instaladas também duas metralhadoras calibre 30.
Porta de saída
Chegar perto da areia não era tarefa simples. As ondas e as barreiras instaladas pelos alemães dificultavam a tarefa. Para evitar tornarem-se alvos imóveis, os soldados saltavam com água na altura da cintura.
Transporte
As lanchas de desembarque LCVP protagonizaram algumas das imagens mais conhecidas do Dia D. Depois de despejar mais de 100 mil homens nas praias da Normandia, elas levaram caminhões, armas e equipamentos.
Pelo ar
A força aérea aliada era composta de 11 590 aeronaves. Foram mais de 14 mil vôos para deixar os pára- quedistas e para bombardear as tropas alemãs.
Seguir em frente
O desembarque foi um sucesso. Mas avançar nem sempre foi fácil. Os aliados esperavam tomar Caen, cidade-chave para o controle das estradas da região, ainda no Dia D. A resistência alemã, no entanto, frustrou o plano. Caen só foi tomada seis semanas depois.
Omaha sangrenta
A tomada da praia de Omaha foi a mais complicada. Mais de um terço da primeira leva de soldados desembarcados foi morta ou ferida. Os alemães estavam preparados: uma série de obstáculos dificultou o avanço pela praia. Lentos, os soldados americanos tornaram-se alvos fáceis para os atiradores alemães.
General Omar Bradley
Utah
Desembarque: 23 250 homens
Baixas: 197
General Bernard Montgomery
Omaha
Desembarque: 34 250 homens
Baixas: 2 000
General Miles Dempsey
Gold
Desembarque: 24 970 homens
Baixas: 1 000
Juno
Desembarque: 21 400 homens
Baixas: 960
Sword
Desembarque:28 845 homens
Baixas: 1 000

Aventuras na História n° 022

Malcolm X América

Adriana Maximiliano

Muçulmano, negro e revolucionário, ele pregou a luta armada contra os brancos americanos. Depois, brigou com seus velhos mentores, flertou com o socialismo e adotou um discurso menos racista. Acabou morto com 14 tiros num crime que continua sem solução, 40 anos depois.
Ele foi registrado como Malcolm Little, caiu no mundo com o apelido de Red, ficou conhecido como Malcolm X e morreu como El-Hajj Malik El-Shabazz. Em todas as fases de sua vida, ele conviveu com ameaças, atentados e ódio racial. Em 21 de fevereiro de 1965, às 15h10, a história do líder americano que lutava pelos direitos dos negros chegou ao fim com 14 tiros: Malcolm foi assassinado diante de uma platéia que incluía sua mulher e três de suas quatro filhas, num teatro no Harlem, em Nova York. Três homens ligados a uma organização religiosa da qual Malcolm foi líder durante anos, a Nação do Islã, foram presos, mas nunca ficou esclarecido quem planejou o crime.
Quarenta anos depois, o historiador americano Manning Marable, professor da Universidade de Columbia, acredita ter revelações importantes sobre a vida de Malcolm que levantam novas questões sobre o caso. Marable pesquisa essa história há uma década e prepara um livro sobre o assunto. Mas antes quer ter acesso aos arquivos secretos do FBI, a polícia federal americana. “Milhares de documentos sobre Malcolm X continuam sob sigilo”, diz o historiador.
Segundo ele, no entanto, muito da imagem que hoje temos de Malcolm está errada e a culpa é do livro Autobiografia de Malcolm X, de Alex Haley, lançado em 1965. O livro está repleto de cortes e grande parte das polêmicas idéias de Malcolm foram ignoradas: “Eu li uma carta de Haley falando sobre a visão anti- semita de Malcolm e dizendo que retirou as declarações mais ofensivas sobre isso do livro”, afirma Marable. “Muitas de seus ex-colegas e amigos ainda se autocensuram ao falar sobre ele e suas idéias.”
O historiador americano alega ainda que Haley, que morreu em 1992, foi censurado pelo FBI. “O livro surgiu a partir de um artigo sobre os muçulmanos americanos que Alex Haley e Alfred Balk escreveram em 1963 para uma revista de Nova York. O que pouca gente sabe é que Balk havia feito um acordo com agentes do FBI: em troca de informações sobre a Nação do Islã, os dois fariam o artigo de maneira a isolar a organização das demais correntes da sociedade negra da época”, diz Marable.
Para completar, os três capítulos finais do livro original não foram publicados, por opção de Haley, e hoje pertencem a um advogado de Detroit, que pagou 100 mil dólares por eles. Marable teve acesso ao material e diz que, entre outras coisas, ele revela um Malcolm politizado, com um discurso alinhado com a esquerda internacional e revolucionária dos anos 60. “Fica claro,  ainda, seu plano de reunir os negros muçulmanos, que ele liderava e que, por muito tempo, defenderam a separação entre negros e brancos na América, com os líderes cristãos integracionistas encabeçados por Martin Luther King.
“Haley difundiu a imagem de Malcolm X como queria o FBI”, diz Marable. Seu livro vendeu milhões de cópias mundo afora, virou leitura obrigatória em escolas americanas e quando virou filme, dirigido por Spike Lee, em 1992, rendeu o Oscar de Melhor Ator a Denzel Washington. “Ali, ele é apenas um homem movido pelo ódio, um militante racista e violento. Suas idéias políticas de integração entre brancos e negros, suas críticas à sociedade americana que privilegiava cada vez menos gente ficaram como uma lembrança desbotada”. Para Marable, Malcolm é um dos líderes mais mal-entendidos da história americana e desvendar sua morte é apenas o primeiro passo para entender quem foi o homem por trás de Malcolm Little, Red, Malcolm X e El-Hajj Malik El-Shabazz.

Pequeno
Malcolm Little nasceu em 19 de maio de 1925, em Omaha, estado de Nebraska. Mulato, por trás da cor de sua pele, ele guardava uma tragédia: sua avó engravidou de sua mãe depois de ser estuprada por um homem branco que nunca foi preso, sequer acusado de crime. O quarto dos oito filhos da dona de casa Louise e do pastor da igreja batista Earl Little, Malcolm aprendeu o que era racismo antes mesmo de pronunciar a primeira palavra. Em 1926, a família teve de se mudar às pressas depois que membros da Legião Negra, uma espécie de versão local da Ku Klux Klan, botaram fogo na casa da família. O atentado foi uma represália aos sermões de Earl em favor dos direitos dos negros.
Os Little fugiram. Primeiro para Wisconsin, e, três anos depois, para uma fazenda no Michigan. Lá, seus vizinhos, todos brancos, venceram uma ação na justiça exigindo que eles se mudassem para outra região onde só moravam negros. Os Little se recusaram e tiveram a casa novamente incendiada. O pai de Malcolm pediu ajuda à polícia e acabou preso, acusado de forjar o incidente para fraudar o seguro. A rixa entre vizinhos só acabou em setembro de 1931. E, mais uma vez, de forma trágica: o corpo de Earl Little foi encontrado mutilado nos trilhos de uma estrada de ferro. Não houve investigação criminal e as autoridades concluíram que ele havia cometido o suicídio.
Louise resistiu o quanto pôde para manter a família unida, mas não era raro faltar comida em casa. Dois dias antes do Natal de 1938, ela sofreu um colapso e foi internada num hospital para doentes mentais, de onde só sairia 26 anos depois. Malcolm ficou sob a guarda de um casal de brancos, os Swerlin, num lar de detenção juvenil. “Eles gostavam de mim como de seus animais”, disse Malcolm, numa entrevista publicada na revista Playboy, em 1963.

Vermelho
Com 15 anos, Malcolm abandonou os Swerlin, a escola e foi morar com uma irmã mais velha em Boston. Depois de viver um tempo de bicos, arrumou emprego no trem para Nova York. Ali, ele passou a frequentar os bares do Harlem (o mítico bairro de maioria negra) e conviver com os criminosos locais, seus carros e prostitutas. “Nessa época, ele não parecia ter orgulho de ser negro”, afirmou Haley. “Esticava os cabelos com produtos químicos e namorava mulheres brancas. Era conhecido como New York Red ou simplesmente Red (“vermelho”), por causa da cor de seus cabelos castigados por alisantes.”
Em 1942, aos 17 anos, soube que um grupo de trapaceiros do Harlem precisava de um ajudante e entrou para o crime: tráfico de drogas, roubo, prostituição e jogos. Detido duas vezes em Nova York, ele voltou para Boston e criou sua própria gangue para roubar casas. Foi uma má idéia: apenas duas semanas nessa vida e ele foi pego tentando vender um relógio roubado. Red foi condenado a dez anos de cana.
Foi na cadeia, em 1947, que ele ouviu falar pela primeira vez da Nação do Islã. Wilfred, seu irmão mais velho havia aderido à religião e levado consigo cada um dos Little. Foram as cartas da família que apresentaram a Red aquela “religião natural para os homens negros”, como escreveu Wilfred em carta para o irmão. Mas foram os textos de Elijah Muhammad, líder da Nação do Islã, que converteram Red. Dizia Elijah que Deus era negro e se chamava Alá. “O negro americano deve ser reeducado. O Islã dará a ele as qualificações para sentir orgulho, e não vergonha ao ser chamado de negro.” Em seu discurso racista e segregacionista, Elijah defendia países separados para brancos (“os demônios da humanidade”) e para os negros ou afro-americanos, como preferia.
Red foi desaparecendo aos poucos. Cortou os cabelos, deixou o linguajar de gângster e entrou para o time de muçulmanos da prisão. No dia 7 de agosto de 1952, após seis anos e meio na prisão, Malcolm foi solto.

“X”
Um mês depois de sair, Malcolm foi aceito na Nação do Islã e passou a se apresentar sem o sobrenome “Little”. “Esse nome foi dado aos meus ancestrais por aqueles que os fizeram escravos e recuso-me a usá-lo”, dizia Malcolm, que adotou o “X”, para simbolizar sua identidade desconhecida. O novo Malcolm, como também passou a se apresentar, surgiu numa hora e num país conturbados. Em diferentes estados americanos, principalmente do sul, onde cenas de violência contra negros eram comuns, a segregação racial estava na lei e limitava o acesso dos negros às escolas e aos transportes públicos, por exemplo.
Em 1955, um boicote contra os ônibus em Montgomery, no Alabama, onde Rosa Parks (leia quadro nessa página), uma mulher negra se negou a ceder seu lugar para um branco, iniciou uma série de manifestações populares que ficariam conhecidas como “Movimento pelos Direitos Civis”. Surgiram entidades como Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês), para arrecadar fundos, contratar advogados e atuar politicamente contra as legislações racistas dos Estados Unidos. Mas a luta não foi apenas pacífica como queriam alguns dos líderes, como o mais famoso deles, o reverendo Martin Luther King Jr. (leia na página ao lado). As polícias e tribunais estaduais formados e controlados por brancos não aceitavam mudanças. Em 1954, quando o governo federal obrigou a primeira universidade do sul a aceitar alunos negros, houve quebra-quebra, prisões e assassinatos de militantes negros. Cenas que Malcolm conhecia desde a infância. Mas, dessa vez, ele estava pronto para reagir.
Malcolm X adotou um discurso violento e dizia que o negro precisava reagir diante do branco opressor. Nessa época, ele já não era mais um mero ex-presidiário fanático. Seu carisma e dedicação impressionaram Elijah Muhammad e Malcolm ascendeu rapidamente na hierarquia da Nação do Islã. Em dois anos, comandou a construção de templos em Boston, Hartford e Filadélfia, virou líder do Templo Número 7, no Harlem, e assumiu o posto de porta-voz da organização.
Aos 32 anos, Malcolm X se casou com Betty X, uma freqüentadora do templo no Harlem. Ele era, então, o representante mais famoso da história da Nação do Islã. Sua figura imponente e seus discursos haviam sido fundamentais para o crescimento da organização, que passou de 500 membros para 30 mil em dez anos. Malcolm dizia que as mulheres deveriam cuidar da família, os homens velhos deveriam se dedicar a entender e passar adiante os ensinamentos de Elijah e os jovens seriam treinados para usar a violência contra o inimigo, caso fosse necessário.
E geralmente era. As tensões raciais cresceram e os confrontos com a polícia viraram rotina. Na noite de 27 de abril de 1962, um grupo de policiais matou um membro da Nação do Islã, Ronald Strokes, deixou outro paralítico e cinco feridos ao invadir um templo em Los Angeles. Revoltado, Malcolm X convocou a comunidade negra para protestar nas ruas. Milhares atenderam, cerca de 80 foram presos e 14 feridos, entre eles dois policiais. “Não há nada no nosso livro, o Alcorão, que ensine a sofrer tranqüilo. Nossa religião ensina a ser inteligente, pacífico, cortês, obedecer a lei e respeitar os outros. Mas, se alguém bota a mão em você, mande-o para o cemitério”, disse Malcolm, em 1962.
Seus discursos – cada vez mais concorridos – ficaram bem inflamados. Em dezembro daquele ano, um deles ficou famoso. Do templo simples no Harlem – pouco mais que um púlpito de madeira, cadeiras enfileiradas e uma imagem de Elijah Muhammad na parede – onde só negros podiam entrar, Malcolm falou do orgulho de sua cor e de sua raiva pelo homem branco, o inimigo: “Nós não separamos nossa cor da nossa religião. O homem branco também nunca separou o cristianismo da cor branca. Quando você ouve o homem branco se gabando: ‘Eu sou cristão’, ele está se gabando de ser um homem branco. Minha mãe era cristã, meu pai era cristão. Meu pai era um homem negro e minha mãe era uma mulher negra, mas as canções que eles cantavam na igreja eram feitas para encher seus corações com o desejo de ser branco”.
Com esses discursos, era natural que atraísse a atenção dos órgãos de segurança americanos. “Os membros acreditam que Alá é o ser supremo e afirmam serem descendentes da raça original da Terra. Eles seguem os ensinamentos de Alá como interpretados por Elijah Muhammad, segundo os quais, os membros desta minoria racial nos Estados Unidos não são cidadãos deste país, mas meros escravos e irão continuar assim até que eles libertem a si mesmos destruindo os não- muçulmanos e o cristianismo”, relatou um agente do FBI em um relatório sobre a Nação do Islã.
Ao  mesmo tempo que crescia sua popularidade, Malcolm X passou a ser questionado por Elijah e outros líderes da Nação do Islã. A relação azedou quando Malcolm descobriu – e denunciou – que Elijah mantinha relações amorosas secretas com mulheres da organização. Mas o rompimento definitivo aconteceu no fim de 1963. Quando o presidente americano John Kennedy foi baleado, em 22 de novembro, Malcolm X se preparava para fazer um discurso, em Nova York. Ao chegar ao local, recebeu um recado de Elijah Muhammad, pedindo que não comentasse o atentado. Malcolm e os demais líderes negros não gostavam muito do presidente morto, que consideravam omisso em relação ao movimento pelos direitos civis, mas todos concordaram que não era hora de criticá-lo, já que a população estava traumatizada. Todos menos Malcolm X. Perguntado sobre a morte de Kennedy, ele respondeu com ironia: “As galinhas voltam para dormir em casa”, um ditado americano cujo significado se parece com o do nosso “Aqui se faz, aqui se paga”. Ou seja, Malcolm insinuou que Kennedy morreu por consequência de seus próprios atos, porque falhou ao combater a violência nos Estados Unidos.
A declaração foi mal recebida, inclusive pela população negra, que se voltou contra a Nação do Islã. Irritado, Elijah ordenou que Malcolm se calasse por 90 dias. “Alguns observadores crêem que Elijah aproveitou-se do momento em que a opinião pública se voltou contra Malcolm, para livrar-se dele”, diz Clayborne Carson, historiador da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Terminado o silêncio, em 8 de março de 1964, Malcolm X falou. E disse que deixaria a Nação do Islã.

Peregrino
Decidido a virar um muçulmano autêntico, Malcolm X viajou para a Arábia Saudita, em abril de 1964, para fazer a peregrinação a Meca. Ali, ele se deu conta de que Elijah Muhammad pregava uma farsa ultrapassada ao dizer que as mulheres deviam ser subservientes e que todos os males dos negros advinham da escravidão na América. Na África, percebeu que o problema não era o homem branco, mas o imperialismo, o sistema político e econômico que permitia que negros pobres fossem explorados por negros ricos. “Durante os últimos 11 dias aqui no mundo muçulmano, eu tenho comido no mesmo prato, bebido do mesmo copo e dormido na mesma cama – enquanto rezo para o mesmo Deus – que seguidores muçulmanos cujos olhos são os mais azuis dos azuis, cujos cabelos são o mais louros dos louros e cujas peles são as mais brancas das brancas. Nós somos todos iguais”, escreveu numa carta para a família. Na volta, ele não era mais Malcolm X, mas El-Hajj Malik El-Shabazz.
E não foi só seu nome que mudou. “Seu discurso assumiu boas doses de críticas ao capitalismo americano e o aproximou de líderes socialistas, como Che Guevara, que Malcolm elogiava por seu caráter revolucionário e anti-imperialista”, diz Carson. Em 1960, ele já havia tido um encontro de meia hora com Fidel Castro e, em 1964, tentou levar Che para uma reunião da recém- fundada Organização da Unidade Afro-Americana, no Harlem. O líder cubano achou que estaria desprotegido e não foi ao encontro, mas mandou uma mensagem, lida pelo próprio Malcolm a um auditório eufórico: “Caros irmãos e irmãs do Harlem, eu gostaria de estar com vocês e Brother Babu, mas as condições atuais não são boas para esse encontro. Recebam calorosas saudações do povo de Cuba e especialmente de Fidel. Unidos, nós vamos vencer”. O Brother Babu, citado por Che, era Abdul Rahman Muhammad Babu, líder socialista africano que virara ídolo no Harlem.
A relação com Elijah Muhammad virou rivalidade. “Apenas aqueles que desejam ser levados ao inferno seguirão Malcolm”, escreveu o novo porta-voz da Nação do Islã, Louis Farrakhan, em dezembro de 1964, no jornal Muhammad Speaks. “Elijah se opõe ao negros americanos ouvirem o verdadeiro Islã, e tem ordenado seus seguidores a aleijar ou matar qualquer um que queira deixá-lo para seguir o verdadeiro Islã”, disse Malcolm numa entrevista para a revista Al-Muslimoon, em fevereiro de 1965.
Alguns dias depois, em 14 de fevereiro, a casa de Malcolm foi incendiada. Sua mulher, que já vinha recebendo telefonemas com ameaças de morte, conseguiu fugir com as filhas. A família acusou publicamente a Nação do Islã. A organização negou e disse que o próprio Malcolm forjara o incêndio. Sobre o caso, nada foi apurado pelas autoridades e Malcolm escreveu ao secretário de estado americano Dean Rusk: “O governo não tem nenhuma intenção de proteger minha vida”.
Mesmo consciente do risco que corria, uma semana depois do atentado, Malcolm foi fazer um discurso, no Harlem. Diferentemente do que ocorria nas reuniões da Nação do Islã, por exemplo, Malcolm não permitia que seus seguranças portassem armas, nem que o público fosse revistado na entrada. Quando ele começou a falar, uma confusão no meio da platéia atraiu a atenção dos guarda-costas e ele ficou sozinho no palco. Das primeiras filas do auditório, alguns homens saíram atirando em sua direção. Malcolm caiu a poucos passos da mulher e das filhas. Foi socorrido, mas era tarde. Baleado 14 vezes, ele chegou morto ao hospital.
Cerca de um ano depois, três homens da Nação do Islã – Talmadge Hayer, Norman 3X Butler e Thomas 15X Johnson – foram presos, acusados de terem atirado em Malcolm. Dois dos presos, Butler e Johnson, sequer estavam no auditório. Ambos tinham álibi e acabaram inocentados. Foram encontrados pedaços de balas de duas armas no corpo de Malcolm, uma pistola calibre 45 e uma 9mm. A primeira foi entregue ao FBI por um segurança de Malcolm, que disse que tirou a arma de Hayer após o tiroteio. A outra nunca apareceu. Em 1977, Hayer declarou que planejou o assassinato com outros quatro muçulmanos que ele conhecia apenas de vista e mal se lembrava do primeiro nome. Um advogado tentou reabrir o caso para tentar identificar esses homens e quem estaria por trás deles, mas não conseguiu. Até hoje não há evidências que liguem o crime à Nação do Islã (leia quadro na página ao lado).
O Departamento de Polícia de Nova York tinha um agente disfarçado entre os seguranças de Malcolm, chamado Gene Roberts, que anos depois foi promovido por ter se infiltrado e ajudado a destruir outra organização, o Partido dos Panteras Negras. Outros policiais disfarçados também estavam no auditório no dia do assassinato. Mas nem eles nem Roberts acrescentaram nada ao processo. Por outro lado, policiais uniformizados que trabalhavam nos comícios de Malcolm em Nova York não entraram no teatro naquele dia. Diriam depois que receberam ordens para ficar do outro lado da rua. Tudo indica que a tragédia já estava anunciada. “Resta saber se ela foi provocada por agentes infiltrados e por que nada foi feito para mudar o desfecho”, afirma o professor Manning Marable.

Heróis da resistência
Os negros queriam igualdade perante a lei. Veja como a lei tratou alguns de seus líderes:
Rosa Parks
No dia 1º de dezembro de 1955, Rosa Parks entrou para a história ao se negar a ceder seu lugar num ônibus público para um homem branco, em Montgomery, no Alabama. Ela foi presa por desobedecer a lei de segregação e, em protesto, a comunidade negra decidiu fazer um boicote aos ônibus da cidade a partir da segunda-feira seguinte, dia 5. No mesmo dia, Rosa foi julgada, considerada culpada e condenada a pagar uma multa de 14 dólares. Liderado pelo pastor de uma igreja batista local, Martin Luther King Jr., o boicote durou 381 dias. Até que, em 21 de dezembro de 1956, a Suprema Corte declarou que as leis de segregação de Montgomery eram inconstitucionais. No dia seguinte, Rosa Parks entrou num ônibus pela porta da frente, escolheu um dos primeiros assentos e ficou conhecida como a “Mãe do Movimento pelos Direitos Civis”. Aos 92 anos, ela mora em Detroit.
Medgar Evers
No início dos anos 50, Medgar Wiley Evers conciliava o trabalho de vendedor de seguros com o de ativista da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês), no Mississippi. Quando a Suprema Corte Americana considerou ilegal a segregação nas escolas, em 1954, Evers tentou estudar direito na universidade local, mas não conseguiu. Oito anos depois, ajudou James Meredith a se tornar o primeiro estudante negro da Universidade do Mississippi, um marco para a luta dos direitos dos negros. Evers liderou um boicote contra três comerciantes brancos de Jackson (capital do Mississippi), que davam dinheiro para os Conselhos dos Cidadãos Brancos, considerado o braço legal da Ku Klux Klan. Acabou assassinado em junho de 1963 em frente a sua casa por um branco racista. O criminoso confesso, Byron De La Beckwith, que havia fundado o Conselho dos Cidadãos Brancos do Mississippi, foi inocentado duas vezes e só no terceiro julgamento, 31 anos após a morte de Evers, foi condenado à prisão perpétua.
Muhammad Ali
No esporte, o herói negro da década de 60 foi Cassius Clay, ou como ficaria conhecido depois, Muhammad Ali. Assim como Malcolm X, ele foi membro da Nação do Islã e ajudou a divulgar os ensinamentos de Elijah Muhammad. Ali foi campeão mundial de boxe profissional pela primeira vez em 1964, aos 22 anos, mas perdeu o título e acabou preso três anos depois, ao se recusar a lutar na Guerra do Vietnã. Polêmico, alegou que a guerra era contra sua religião e que nenhum vietnamita fizera nada contra seus irmãos negros. Recebeu o apoio de grande parte da população americana, negros e brancos. Apenas em 1971, porém, a Suprema Corte dos Estados Unidos voltaria atrás em sua decisão. Em 1974, reconquistou o título mundial e, seis anos depois, se aposentou ao ser derrotado por Larry Holmes. Ele deixou a Nação do Islã em 1975 para se dedicar ao islamismo tradicional. Hoje, aos 63 anos, luta contra o mal de Parkinson.
Martin Luther King Jr.
Por liderar o boicote aos ônibus de Montgomery, Martin Luther King Jr. foi ameaçado de morte e sua casa sofreu um atentado à bomba. Mas King jamais revidou uma agressão na vida. Com suas idéias pacifistas, ele mobilizou multidões, foi preso dezenas de vezes e se tornou o homem mais jovem a ganhar o Prêmio Nobel da Paz (em 1964, aos 35 anos). King era o oposto de Malcolm X. Enquanto este promovia a revolta entre as comunidades urbanas do norte do país, aquele falava sobre integração racial para a população rural do sul. Era óbvio que o discurso “Se você me bater, te bato de volta”, de Malcolm jamais se casaria com o "Sofra em silêncio", de King. Mas, apesar de os dois líderes seguirem rumos, religiões políticas tão diferentes, eles tiveram finais parecidos. Nos últimos anos de vida, descobririam que a luta contra o racismo era uma questão maior, global. Ambos foram mortos a tiros quando tinham 39 anos. No caso de King, num hotel no Memphis, Tennessee, em 1968.
Rubin "Hurricane" Carter
O boxeador Rubin Carter, (apelidado de “furacão”), teve uma carreira vitoriosa como peso-médio e era forte candidato ao título mundial até que, aos 29 anos, foi condenado à prisão perpétua por um crime que não cometeu. A tragédia aconteceu porque Rubin passou de carro perto do local onde três pessoas tinham sido assassinadas, num bar em Nova Jersey, em junho de 1966. Sem nenhuma prova contra ele, Rubin levou a culpa, simplesmente por ser negro. Depois de dez anos na cadeia, ele conseguiu um segundo julgamento – e foi novamente considerado culpado. Mas, graças à biografia que escreveu na prisão, Carter foi solto em 1985. Filho adotivo de um casal de ativistas canadenses, o jovem Lesra Martin, nascido numa comunidade pobre do Brooklin, em Nova York, se identificou com o sofrimento de Carter ao ler o livro. Ajudado por sua nova família, Martin conseguiu reabrir o caso e Carter provou que não era um criminoso, mas uma vítima do racismo. Ele tem 68 anos e mora no Canadá.
Tragédia sem fim
Viúva de Malcolm X também foi morta
Após o assassinato de Malcolm, Betty Shabazz culpou a Nação do Islã pela morte do marido. Em 1994, acusou diretamente Louis Farrakhan (que sucedeu Malcolm como líder da organização). Naquele ano, a segunda das seis filhas de Betty e Malcolm, Qubilah, foi presa tentando contratar um homem para matar Farrakhan. O “matador” na verdade era um agente do FBI. Farrakhan, numa reviravolta e tanto, pagou a fiança e defendeu Qubilah: “A filha de Malcolm foi enganada por gente que quer criar discórdia entre a Nação do Islã e a comunidade negra nos Estados Unidos”, disse. Quatro meses depois, Qubilah e Farrakhan encerraram a questão com um aperto de mãos no Harlem. Em 1995, ela voltaria a aparecer nos jornais ao ser levada para uma clínica para viciados em drogas. Durante sua internação, que duraria dois anos, o filho, chamado Malcolm como o avô, foi viver com a avó Betty. O menino de apenas 12 anos também era viciado e, em junho de 1997, ateou fogo na casa da avó, que sofreu queimaduras em todo o corpo e morreu 22 dias depois. No dia 19 de maio 2004, quando Malcolm X completaria 80 anos, suas filhas inauguraram o Centro de Educação e Memorial Malcolm X e Betty Shabazz, no mesmo local onde elas viram o pai ser assassinado 40 anos atrás.

Aventuras na História n° 022

Júlio César, o populista romano


Pedro Paulo Funari

Um homem controverso: aristocrata e líder popular, ditador e ídolo das multidões, representante da elite romana e odiado pelos ricos. Enfim, um dos personagens mais polêmicos da História.
Filho de uma família tradicional e endinheirada, Caio Júlio César (100-44 a.C.) passou a infância, digamos, com o povo. O contato com a plebe se deu graças ao casamento de sua tia Júlia com o líder popular Mário, um sujeito de origem humilde que se tornou general e foi responsável pela profissionalização do exército romano. Inspirado no tio, Júlio César também resolveu seguir a carreira militar, sempre metido no meio da tropa e cortejando as massas.
Em pouco tempo no posto de general (58-51 a.C.), ele conquistou toda a Gália e violou a Constituição romana ao levar suas tropas para a Itália, iniciando uma guerra civil contra os aristocratas até sua vitória e entrada triunfal em Roma (45 a.C.). Em fevereiro de 44 a.C., recebeu o título de ditador perpétuo, mas foi assassinado pelos senadores no dia 15 de março.
A morte, no entanto, não pôs fim à fama de Júlio César. Ele se tornou um dos personagens mais polêmicos da História. Seu nome acabou virando até sinônimo de imperador – kaiser e tsar eram os imperadores alemães e russos, assim como “cesarismo” passou a referir-se ao poder político derivado da mistura da força militar com a popularidade. Nesta entrevista, regada por um bom vinho tinto, o aristocrata comenta algumas das muitas controvérsias sobre sua vida, obra e legado.
Pedro – O senhor assistiu ao filme Alexandre? O Plutarco diz que o senhor chorou, ao comparar-se com Alexandre, pois ele aos trinta e poucos anos já havia conquistado o mundo e o senhor nada...
Júlio – Sobre o filme, melhor nem comentar... A verdade é que estava no fim do mundo. Naquela época, a Espanha não era nem parte da Europa, como hoje – e não me parecia descabido comparar-me a Alexandre, como minhas conquistas posteriores confirmaram.
Por falar em conquistas, após anos de combate, a vitória final sobre o líder gaulês Vercingetorix deve ter sido um alívio!
Encontrei no comandante gaulês um rival à altura, grande general, que preferiu render-se a sacrificar ainda mais o seu povo. Ele, como eu, prezava a liberdade e, ao final, o resultado foi uma amizade entre gauleses e romanos. Ainda durante a guerra, vi muitos filhos de soldados romanos com gaulesas.
Esse é um tema fascinante: a atração pelas mulheres. O senhor enamorou-se de muitas damas, mas todos se perguntam se foi mesmo o nariz de Cleópatra que o encantou. Ela era mesmo tão bela?
Foi Pascal, esse gaulês do século 17, que inventou essa história do nariz. Conheci Cleópatra já cinquentão, ela com vinte aninhos, enrolada em um tapete... Mas o que me encantou mesmo foi sua presença, sua conversa, muito madura para a idade. Atirada, me disse no primeiro encontro a sós que eu tinha fama de superexperiente no amor... Em suma, uma bela mulher.
Bem, deixando um pouco de lado esses detalhes íntimos, os seus adversários o acusaram de ter desobedecido a Constituição, ao marchar armado para a Itália, após sua vitória na Gália. E depois, não hesitou em levar adiante uma guerra civil...
O que queriam? Que aceitasse voltar como simples cidadão privado, após ter ampliado o domínio romano para uma imensa área ao norte, antes fora da civilização? Foi só uma provocação dos reacionários, mas que permitiu que meu programa político de reconciliação fosse levado adiante. Por resistência dos aristocratas, não tive como evitar a guerra.
A ditadura, então, não foi negativa? As acusações de que o senhor queria ser rei, tudo mentira?
Mas veja só: a ditadura me foi conferida, justamente, para evitar as lutas entre facções. Nada a ver com as ditaduras posteriores, quem me concedeu isso foi o senado. No entusiasmo que se seguiu à concessão da ditadura perpétua, em14 de fevereiro (44 a.C.), no dia seguinte me ofereceram, em praça pública, a coroa real e eu não aceitei. Mas achava que era necessário mudar a república, dando mais poder ao governante, para que houvesse o consenso... Este era, desde havia muito, meu programa político para salvar o estado das lutas civis.
Em um mês, o senhor seria assassinado. Por que dispensou a escolta? Não desconfiou do bom afilhado Brutus, só percebeu a traição na hora da facada... Ou pensou como Getúlio Vargas, que era melhor morrer e deixar que seus seguidores voltassem nos braços do povo?
Foi tudo muito sórdido. Aqueles que eu havia poupado, com os quais havia sido clemente – essa era minha palavra de ordem, a clemência –, mostraram-se insensíveis ao avanço que havíamos todos tido, graças ao fim das guerras civis. Até Cícero, que me havia elogiado, comemorou o complô. Quando Brutus se aproximou para desferir seu golpe, ele que eu havia sempre ajudado como a um filho, reagi e disse: “Até tu, seu piralho”. Mas não foi essa a versão que se espalhou. Havia dispensado a escolta justamente porque sabia que, se ousassem me matar, o povo se levantaria, como se levantou. O Getúlio sabia do meu assassinato quando se suicidou... Outro que se inspirou em mim!
O senhor também foi autor de uma obra literária e militar das mais lidas de todos os tempos, A Guerra da Gália, e desenvolveu uma política cultural liberal, tolerante com seus críticos. Foi fácil conciliar cultura e ditadura, uma mistura um tanto incomum?
Nunca separei poder e saber... Frequentei as melhores escolas, me senti sempre mais à vontade com o grego do que com o latim. Não é pedantismo, é a verdade. Me acusaram de escrever A Guerra da Gália como propaganda política, mas apenas queria mostrar minha folha corrida de serviços ao povo romano, minhas façanhas militares em prol da república romana. Mas é uma obra sem pretensões... Quando pedi que reformassem o calendário, era porque estava uma balbúrdia e precisávamos de algo prático. Meu programa era o consenso e, por isso mesmo, nunca me importei com as críticas dos poetas e os incentivava, mesmo quando falavam besteiras sobre mim.
Uma questão permanece controversa: quem deveria ser seu herdeiro, Marco Antônio ou Otávio?
Outra discussão inútil. Marco Antônio foi grande companheiro, desde as campanhas da Gália, um grande general em campo de batalha. Era um homem de briga. Mas Caio Otávio era meu sobrinho, um rapaz franzino em cuja formação me empenhei e a quem adotei. Otávio admirava minha busca de consenso e era meu legítimo herdeiro. Não foi à toa que deu continuidade à minha obra.

 Aventuras na História n° 022

Junho na História

Maria Carolina Cristianini

1989- Tropas e tanques do Exército Popular de Libertação chinês, sob ordem do líder Deng Xiaoping, dão início à batalha de rua conhecida como “Massacre da Praça da Paz Celestial”. Em abril, manifestações pediam abertura política e protestavam contra a inflação, a corrupção e o nepotismo – mais de um milhão de chineses foram às ruas. Com a visita de Mikhail Gorbachev – visto como herói pelos manifestantes –, os protestos se tornaram diários. O governo decreta em maio uma lei para colocar fim ao movimento, mas a medida culmina no massacre. Não se sabe o número exato de mortes, que varia de centenas a milhares. Dia 4, em Pequim.
 Eu me lembro
"Era correspondente na China e acompanhava todos os dias as manifestações. Minhas filhas estudavam em universidades de Pequim e eram minhas ‘informantes’. Estive na praça no dia do massacre e lembro das barricadas humanas tentando impedir a passagem dos tanques e carros blindados. Hoje, após 16 anos, acredito que os chineses já absorveram o acontecido. Muitas reivindicações acabaram atendidas pelo atual processo de abertura do país."
Jayme Martins, jornalista, morou na China por mais de 20 anos

510 a. C.- Como consequência das lutas entre patrícios e plebeus, a república romana substitui a monarquia e os aristocratas recuperam o poder perdido com a intervenção dos reis etruscos. Com o passar dos séculos, a plebe conquistou mais participação, democratizando a república, que ficou semelhante à de Atenas. Dia 14, em Roma.
455- Após formar o Reino Vândalo no Império Romano do Ocidente, construir uma poderosa frota e ocupar Córsega e Sardenha, Genserico, o rei dos Vândalos, conquista Roma. A cidade é saqueada por 14 dias e a imperatriz e suas filhas são capturadas. Dia 12, em Roma.

1094- D. Rodrigo Diaz de Vivar, conhecido como El Cid Campeador, entra em Valência, na Espanha, após 17 meses e meio de sítio ordenado pelos mouros. Ele rende os muçulmanos e toma posse do governo da cidade, prometendo a todos – em particular aos árabes – que ninguém seria escravizado. A presença de El Cid traz para o Mediterrâneo a língua castelhana, considerada interiorana. Dia 15, em Valência.
1519- Depois da publicação das 95 teses de Martinho Lutero, em Wittemberg, ocorre desse dia até 16 de julho uma discussão teológica na Alemanha, entre o doutor católico Johann Eck e o protestante Carlstadt. Lutero cavalgou cerca de 60 quilômetros para chegar à cidade e participar do debate. Dia 27, em Leipzig.

 1633- De joelhos, com a mão sobre a Bíblia, Galileu Galilei recita, perante o Tribunal da Santa Inquisição – que o havia condenado –, sua renúncia à crença de Copérnico de que a Terra gira em torno do Sol. Galileu foi submetido ainda à prisão domiciliar perpétua e obrigado a repetir por três anos salmos penitenciais. Após a renúncia, murmurou: “E no entanto, ela (a Terra) se move”. Dia 22, em Roma.
Eu me lembro
"Por ter sido ordenado, por este Conselho, a abandonar completamente a falsa opinião que mantém que o Sol é o centro e é imóvel, e proibido de (...) ensinar a referida falsa doutrina (...), com sinceridade de coração e fé genuína, eu abjuro, maldigo e rejeito os referidos erros e heresias, e, de modo geral, todos os outros erros e seitas contrários à referida Santa Igreja."
Galileu Galileu, trecho da declaração de renúncia, lida no Tribunal da Inquisição

1968- Acontece no centro da capital carioca a “Passeata dos 100 Mil”, uma das mais expressivas manifestações contra o regime militar. Com permissão do governo estadual, que decretou ponto facultativo na cidade, o protesto dos estudantes levou também para as ruas artistas, intelectuais e trabalhadores – o movimento estudantil foi a principal forma de oposição à ditadura. Dia 26, no Rio de Janeiro.
Eu me lembro
"Tinha 18 anos e havia acabado de chegar ao Rio de Janeiro para cursar Direito. Logo participava da dissidência comunista. No dia da passeata, fui incumbido de fazer a segurança do líder estudantil Vladimir Palmeira. Cheguei atrasado e a multidão me impediu de cumprir a missão. Mas participei da passeata, pois sabia que não haveria repressão. Foi um momento feliz, em que pensávamos ter conseguido dar um grande passo contra a ditadura. Não imaginava o terror que seria o AI-5."
Augusto Nunes, colunista do Jornal do Brasil

Aventuras na História n° 022

E se... o Sul tivesse vencido o Norte na Guerra da Secessão americana?

Elisa Almeida França

Em primeiro lugar, a resposta mais óbvia: os Estados Unidos teriam apenas 22 estados (em vez dos 50 atuais) e sua influência sobre o mundo não seria lá grande coisa. A maior parte do território norte-americano pertenceria, na verdade, aos Estados Confederados da América (ECA). Isso sem contar o México, Cuba e Porto Rico, entre outras nações da América Latina, que poderiam acabar anexadas, sob o afã expansionista dos ECA agrários e escravistas.
Mas outras implicações mais complexas poderiam sair dessa suposta mudança na história. O socialismo, por exemplo, poderia ter se expandido mais. Isso porque, de acordo com o historiador Fitz Brundage, da Universidade da Carolina do Norte, os Estados Unidos que “sobrassem” no Norte dificilmente teriam servido como uma voz convincente em prol do liberalismo democrático, já que estariam fracos com a divisão do território. “A importante democracia liberal seria percebida como um fracasso na visão da maior parte do mundo. Assim, haveria mais adeptos de alternativas como o socialismo ou a monarquia”, afirma.
Mais tarde haveria outra mudança radical na história. Durante a Primeira Guerra, é possível que nem os ECA nem os EUA tivessem interesse em interferir a favor da Entente, de acordo com o professor Marcos Alves de Souza, da Unesp – na vida real, o apoio foi decisivo para a vitória do grupo liderado por França e Grã-Bretanha. Sem essa força, a Alemanha poderia sair vitoriosa do conflito.
Nesse cenário, todos os países envolvidos no conflito acabariam ainda mais esgotados do que realmente ficaram. A Alemanha não: ela viraria a grande potência européia. Dessa forma, o movimento nazista poderia nem encontrar um ambiente tão propício para se desenvolver. “A Segunda Guerra ocorreria, resultado de um desfecho mal-arranjado da Primeira. Mas não tomaria a dimensão mundial sem o nazismo”, afirma Marcos. Assim, talvez não houvesse Hitler nem o holocausto, talvez a energia atômica e a ONU demorassem mais para surgir.
A hipótese de o Sul (confederados) vencer o Norte (unionistas) na guerra de 1865 não é exatamente viajante. O Sul tinha vários trunfos: os melhores generais, tradição militar e o fato de a maior parte da população viver no meio rural e conhecer o território que defenderia. Contava ainda com o provável apoio da Grã-Bretanha e França, maiores importadoras do algodão produzido por seus escravos.
Em abril de 1861, o Sul se declarou independente e começou a defender seu território contra o que entendia ser uma invasão dos exércitos da União. Em julho de 1863, depois de uma série de vitórias, bastava apenas ganhar as batalhas em Gettysburg e Vicksburg. Só que a história não foi assim. Ao vencer essas batalhas cruciais, as tropas unionistas partiram os ECA em dois, controlaram o rio Mississipi e acabaram tirando Texas, Louisiana e Arkansas da guerra, abrindo uma brecha no Sul para o avanço da União. Partindo desses estados, passaram pelo Tennessee, Geórgia e Carolinas, até ocuparem a capital confederada, Richmond (Virgínia), em abril de 1865. Foi o fim da guerra.
Estados desunidos
País do Norte teria muito menos poder.
Bush, presidente dos ECA
É provável que George W. Bush, um sulista, fosse também o atual presidente dos Confederados. Sua política expansionista não teria nada a ver com a idéia “divina” da época da guerra civil e seria como a de hoje, marcadamente econômica. Nos EUA, a presidência poderia estar nas mãos do democrata John Kerry.
Fronteira movimentada
Após o fim da guerra, a relação entre ECA e EUA não seria das melhores – e as fronteiras seriam especialmente sensíveis. Mas com o passar dos anos e o restabelecimento da economia dos países, essas áreas tornariam-se pontos de fortes intercâmbios comerciais.
Indústrias de ponta
Com o grande mercado interno e a queda no preço do algodão, os ECA desenvolveriam a indústria (têxtil e de maquinário agrícola, a princípio), além de manterem uma grande produção agrícola. O desenvolvimento dos EUA seria parecido  mas o agronegócio não seria muito importante.
Capitais próximas
Os ECA  se expandiriam em busca de terras para agricultura e anexariam México, Cuba, Nicarágua, Porto Rico e Guatemala – mas não teriam a Califórnia. As capitais ficariam a 160 quilômetros: Richmond (Virgínia) no Sul e Washington no Norte.

Aventuras na História n° 022

Roosevelt: gigante em cadeira de rodas

Fabiano Onça

Presidente durante três mandatos consecutivos, Franklin Delano Roosevelt, paralisado pela poliomielite, levantou os Estados Unidos da Grande Depressão nos anos 30, conduziu o país com mão firme durante a Segunda Guerra e, por fim, alçou-o ao posto de superpotência. Fez tudo isso, mas não viveu para ver o país reinar no mundo ocidental. Roosevelt (Nova Fronteira) é a última e ótima biografia realizada por Lord Roy Jenkins, que também não pôde ver sua obra pronta: morreu enquanto a concluía.

Aventuras na História n° 022

Achados manuscritos cristãos raros

Fernanda Almeida

Descobertas arqueológicas recentes podem revelar ao mundo os primeiros rituais religiosos dos cristãos egípcios, conhecidos como coptas. Três manuscritos coptas do século 5, em diferentes tamanhos e estados de conservação, foram encontrados em março último num túmulo faraônico de 2000 a.C, em Gurna, a 700 quilômetros ao sul do Cairo, pela equipe do pesquisador Thomas Gorik.
No século 4, sob dominação romana, o cristianismo tornou-se a religião oficial do Egito. Em 395, com a divisão do Império Romano em dois (e o Egito passando a fazer parte da porção oriental), o cristianismo mesclou-se com valores culturais locais, adquirindo características próprias e distintas do cristianismo romano. Essa diferença ficou ainda mais acentuada em 451, com a formação da Igreja Copta (a ruptura se deu porque os egípcios não aceitaram a visão romana de que Cristo teria uma natureza humana, além da divina).
Pergunta 1: o que os manuscritos faziam na tumba faraônica? De acordo com Zahi Hawass, secretário-geral do Conselho Supremo de Antiguidades Egípcias, os documentos escondidos podem evidenciar "a perseguição que sofriam os coptas durante o império romano". Pergunta 2: o que motivava essas perseguições? "Desde o século 1, uma das grandes preocupações dos governantes era controlar os grupos dissidentes que ameaçavam o poder político e a integridade do império", afirma Cássio de Araújo Duarte, especialista em arqueologia egípcia da USP.
A resposta completa, porém, pode estar nos manuscritos encontrados. Os arqueólogos acreditam que eles contenham as interpretações coptas para os evangelhos. Decifrando-os, será possível entender o nível de diferença entre as crenças e a razão das perseguições.

Aventuras na História n° 022

Papa negro

Roberta Faria

A Igreja Católica já teve três papas africanos. Vítor I (189-198), Melquíades (311-314) e Gelásio I (492-496) assumiram numa época de relações estreitas entre a Igreja e o Oriente. Alexandria, Cartago e Hipona eram cidades-chave para o domínio cristão – e cargos relevantes foram destinados a homens dessas regiões. “Até o século 5, houve um forte intercâmbio entre a Itália e o norte da África”, diz o bispo gaúcho Zeno Hastenteufel, especialista em história da Igreja. “Mas, embora fossem africanos, os papas não eram negros.” Devido à mistura de raças na região, é mais provável que eles fossem mestiços – pardos, num termo usado hoje. A confirmação é difícil, pois não há referências da época. “Os primeiros papas só foram retratados séculos depois, em imagens que não passam de uma representação simbólica”, diz o teólogo Fernando Altemeyer, da PUC de São Paulo.

 Aventuras na História n° 022

Papa assassino?

Roberta Faria

Não existem provas concretas de algum candidato ter feito isso para se livrar de um concorrente. Mas história de papa que foi morto a mando de nobres descontentes ou de religiosos que queriam seu cargo é o que não falta – há, pelo menos, dez casos assim. Leão V é um exemplo: foi morto em 903 por ordem de Cristóvão, que, assim, papou o papado. Bento VI é outro. Ele foi estrangulado em 974 supostamente a pedido de seu sucessor, Bonifácio VII. O jogo sujo predominou especialmente na Idade Média, quando o posto de papa era muito mais político do que religioso. A eleição não era fechada e secreta como hoje, e as alianças partiam de religiosos apoiados por nobres sedentos por compartilhar o poder papal. As disputas deram origem a uma gigantesca lista de acusações – mas, muitas vezes, a identidade dos algozes não foi descoberta. João VIII, por exemplo, foi morto a marteladas porque o veneno dado a ele não fez efeito, em 882. No século 14, Benedito XI teria morrido por comer vidro moído misturado a figos. E o papa Alexandre VI, então? A dose de arsênico que o matou em 1503 foi tão grande que seu corpo inchou e foi preciso que pulassem sobre sua barriga para fechar o caixão. A lista continua, e poderia incluir também planos frustrados, como a tentativa de matar Leão X. Para tratar suas hemorróidas, contratou-se um cirurgião que, em vez dos devidos ungüentos, colocaria veneno no ânus de Leão X. A tramóia, dessa vez, foi descoberta a tempo.
Aventuras na História n° 022

Natal protestante: Noel fora-da-lei

Celso Miranda

No século 16, descontente com a Igreja Católica e o papa, muita gente trocou de religião. Para se diferenciar, os protestantes foram, às vezes, radicais. Na Inglaterra, eles mudaram o batismo e proibiram procissões. Mas o pior veio em 1647: o parlamento proibiu o Natal. Congregações inteiras foram presas por protestarem contra a lei.
Aventuras na História n° 022

Kalachnikov: a predileta dos brutos

Fabiano Onça

Ela esteve ao lado de Bin Laden no Afeganistão, de Ho-Chi-Min no Vietnã, de Che Guevara em Cuba. Robusta, fácil de manusear, ainda hoje é a favorita dos guerrilheiros. A beldade em questão é a arma mais famosa do século 20, o fuzil de assalto russo Kalachnikov. Com mais de 80 milhões de exemplares em circulação, foi produzido por Mikhail Kalachnikov, que, em Rajadas da História (Jorge Zahar), relata como inventou a arma e como foi sua infância, sua participação na guerra e também a vida sob o regime stalinista.
Aventuras na História n° 022

Luanda é nossa


Ernani Fagundes
Os soldados brasileiros foram os primeiros da América a cruzar o Atlântico para guerrear no Velho Mundo. A missão era expulsar os holandeses de Angola e restabelecer o tráfico de escravos.

Já fazia quase cinco anos que os senhores de terra olhavam pelas janelas de seus casarões esperando por dias melhores. O problema era, de fato, preocupante: faltavam braços negros para tocar os engenhos de cana-de-açúcar, o motor da economia da colônia nos idos de 1600. A penúria arrastava-se desde 25 de agosto de 1641, quando os  holandeses invadiram Luanda, capital da Angola, e passaram a controlar o tráfico de escravos para o Brasil. A única capitania que não sofria com a escassez de mão-de-obra era Pernambuco, então governada pelo holandês Maurício de Nassau. Com a situação cada vez pior, os governantes locais, apoiados pela coroa portuguesa, decidiram tomar uma atitude. Foi então que pela primeira vez na história do Novo Mundo soldados cruzaram o Oceano Atlântico para guerrear no Velho Mundo. “O rei D. João IV autorizou as expedições, mas não forneceu tropas ou munição, já que o combalido reino estava em guerra com a Espanha”, diz o professor de História do Brasil na Universidade de Sorbonne, na França, Luiz Felipe de Alencastro.
A soldadesca tupiniquim zarpou do Rio de Janeiro no dia 8 de maio de 1645. No comando da expedição, estava o governador fluminense Francisco de Souto Maior, destituído do cargo pela coroa para encabeçar a briga na Angola. A tropa de Souto Maior, formada por algumas dezenas de índios e 300 soldados, viajou em cinco navios. Ao mesmo tempo, da Bahia, saíram mais três navios, com uma tripulação de 200 soldados, que incluíam 32 mosqueteiros. “Os baianos foram treinados pelo líder negro pernambucano Henrique Dias, um grande guerreiro”, diz Alencastro. A idéia do ex-governador do Rio era reunir todos os combatentes brasileiros na costa africana e partir para a guerra da reconquista de Luanda, uma bela cidade com 5 mil casas de alvenaria e um excepcional mercado de escravos. Souto maior só não sabia quem esperava sua turma do outro lado do Atlântico.
A tropa baiana, liderada pelo sargento-mor Domingos Lopes Siqueira, foi a primeira a encarar a recepção africana. Ao desembarcar na enseada de Quicombo, a coluna caiu nas mãos dos jagas, tribo canibal aliada dos holandeses. Só sobraram quatro soldados. Armados de machadinhas, os jagas esquartejaram os invasores e fizeram um banquete, devorando quase duas centenas de brasileiros. Souto Maior não teve melhor sorte. Assim que pisou em solo angolano, ele organizou uma ofensiva, mas acabou morto em maio de 1646. Foi envenenado pelos jagas. Mesmo com o fiasco dessa primeira campanha, os brasileiros conseguiram trazer para o Rio dois mil escravos, o que deu novo alento para os donos de engenho, que se entusiasmaram com uma nova expedição.
Dois anos depois, os brasileiros já estavam de novo no mar, rumo a Luanda. A expedição, capitaneada pelo novo governador do Rio, Salvador de Sá, deixou a Baía de Guanabara no dia 12 de maio de 1648. Para conseguir recrutar soldados, Salvador de Sá apelou para o apoio divino. Os jesuítas pregaram colônia afora a expulsão dos “hereges calvinistas”. A força-tarefa reuniu oficialmente 1200 homens a bordo de onze naus e quatro pequenas embarcações. “O padre Antônio Vieira, contrário ao conflito, dava conta que o número de soldados passava de dois mil, acusando o governante de deixar o Rio de Janeiro sem defesas”, diz Alencastro. Já o historiador Charles Ralph Boxer documentou entre 1400 e 1500 homens em seu livro Salvador de Sá e a Luta pelo Brasil e Angola . Ou seja, ninguém sabe quantos homens participaram da segunda expedição. Só se tem certeza que não havia índios e que a tropa contava com combatentes de capitanias do nordeste, além de fluminenses, angolanos refugiados e portugueses.
A travessia não foi um passeio. Pairava no ar a ameaça de ataque da armada holandesa, comandada pelo almirante Witte de With. E o tempo também não ajudou. Duas naus, a Gamela e a Canoa, tiveram de retornar ao Rio de Janeiro devido a avarias causadas por tempestades, e duas outras embarcações e o galeão São Luis diversas vezes se distanciaram da frota. Quando avistou a costa da África, Salvador de Sá contava com 11 dos 15 navios de sua esquadra. Seu primeiro plano era atacar Benguela, mas ancorou em Quicombo no dia 27 de julho. Enquanto a tripulação preparava-se para o desembarque, uma tragédia anunciou os tempos difíceis que viriam pela frente: uma onda gigante afundou o São Luís. De acordo com cartas náuticas da época, o navio “se fez pedaços pouco depois da meia-noite, levando consigo mais de duzentos soldados, entre os melhores da expedição”.
Sem tempo para choro ou velas, Salvador de Sá rumou para Luanda. Na foz do rio Maçangano, uma pequena comitiva desembarcou para avisar os portugueses refugiados no interior do país da chegada de reforços. Mais um contratempo, no entanto, atravessou o caminho dos brasileiros. Nativos aliados dos inimigos aprisionaram os soldados e os levaram para um posto holandês no Forte Mols, na foz do rio Cuanza. O trunfo de Salvador de Sá, o elemento surpresa, foi enterrado aí. Ele, no entanto, continuou a empreitada. A esquadra do Brasil aproximou-se da capital angolana no dia 12 de agosto. Ao contrário do esperado, apenas dois navios guardavam o porto, o Noort-Holland e o Ouden Eendracht, que fugiram para alto-mar. Dois pescadores negros capturados no porto contaram que uma tropa comandada pelo holandês Symon Pieterszoon estava com os jagas combatendo os portugueses em Maçangano. Melhor para Salvador de Sá, que entrou em uma Luanda desguarnecida, com apenas 250 holandeses vigiando o Forte do Morro e o Forte da Guia.
Confiante, Salvador de Sá chegou botando banca. Enviou três emissários para negociar a rendição. Como os holandeses não hastearam a bandeira branca, o governador colocou seus 800 soldados – e mais 200 marinheiros para fazer número – em fila na praia. Os inimigos chamaram os brasileiros para a briga, disparando tiros de canhão. Salvador de Sá e sua tropa, então, se refugiaram na entrada da cidade. E fizeram uma missa campal. No alvorecer do dia 16, Salvador de Sá ordenou um avanço contra o Forte do Morro. Os canhões usados eram de pequeno calibre e não causaram grandes danos, apesar do forte do Morro ser de terra batida. Os holandeses ofereceram fraca resistência, aguardando os reforços de Pieterszoon.
Na madrugada do dia 17, Salvador de Sá iniciou mais uma batalha. Enquanto os navios faziam manobras para fingir um ataque por mar, três colunas de soldados subiram em direção aos fortes do Morro e da Guia. Segundo relatos dos padres Antônio do Couto e Simão de Vasconcellos, o avanço das colunas era para ser simultâneo, o que não ocorreu. Uma coluna, por percorrer um caminho menor, chegou primeiro. Já os holandeses concentraram-se em ataques independentes e sucessivos. Espertos, eles lançavam primeiro foguetes e tochas para visualizar os invasores e, depois, investiam com mosquete e canhões. Quando o sol raiou, 150 dos 400 brasileiros que participaram da empreitada estavam mortos. Do lado holandês, apenas três mortos e oito feridos. Os holandeses, no entanto, tiveram um grave prejuízo. Perderam canhões, destruídos pela artilharia brasileira, e carretas que possibilitavam o transporte das pesadas armas de um lado para o outro.
Para espanto dos brasileiros, não houve batalha final. Abalados com a perda das armas, os capitães holandeses Cornelis Ouman e Adriaen Lens pediram paz. Na negociação, exigiram só uma rendição digna. Ficou acertado que deixariam Luanda e os postos avançados de Cuanza e Benguela levando na bagagem os escravos de propriedade da Companhia Holandesa. Quando Pieterszoon retornou à capital, não gostou do que viu. Mas fingiu aceitar os termos dos brasileiros. Foi embora deixando os jagas armados até os dentes para oferecer resistência aos colonizadores. Consolidada a vitória em Luanda, a tropa partiu para a conquista dos rincões angolanos. Os líderes eram três jesuítas: Antônio do Couto, Gonçalo João e Felipe Franco. Os religiosos convenceram alguns sobas (chefes) a ajudarem na travessia do país em direção a Maçangano, onde espantaram os jagas e os nativos do rei do Congo, que sitiavam os portugueses. Daí para frente, os brasileiros venceram todas as resistências.
A vitória foi comemorada em grande estilo. Salvador de Sá assumiu o governo da Angola e rebatizou o Forte do Morro de Forte de São Miguel, em homenagem ao patrono da expedição brasileira. Já a cidade de São Paulo de Luanda virou São Paulo da Assunção, em honra a Nossa Senhora da Assunção. E os tumbeiros (navios negreiros) embarcaram em direção ao Brasil com sete mil escravos apinhados nos porões. Estava restabelecido assim o tráfico de escravos. O reinado africano de Salvador de Sá acabou em 1652. Depois dele, o Brasil voltou a enviar tropas a Luanda pelo menos em seis ocasiões, principalmente nos governos de João Fernandes Vieira e André Vidal Negreiros, que atuaram ferozmente na captura de mão- de-obra. A última expedição brasileira à Angola foi em 1671 – 200 mulatos nordestinos participaram da batalha conhecida como Pungo Adungo. Quando saiu de vez do território angolano, o Brasil deixou muito bem estabelecido por lá um forte comércio de fumo e cachaça, que conquistou os traficantes de escravos até a sua proibição.
Protagonistas
Em terras angolanas, eles lideraram a briga pela posse dos negros.
Perna-de-Pau

Cornelis Pieter Jols, conhecido como Perna-de-Pau, comandou a frota de 19 navios de guerra da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, que invadiu Luanda em 1641. Além de dois mil soldados e 900 marinheiros, ele contou com 200 índios potiguares, embarcados em Recife. Para afugentar o governador angolano Pedro César de Menezes, Perna-de-Pau teve sorte. No caminho, aprisionou um capitão espanhol inimigo dos portugueses que indicou uma passagem no porto, livre do alcance dos canhões.
 Rainha Jinga

Soberana do reino de Matamba, no leste de Angola, Jinga comandava uma horda de guerreiros canibais, chamados jagas, habilidosos na luta com machadinhas. Teve vida longa, de1581 a 1663. A rainha era conhecida pela luxúria e perversidade. Possuía um harém de homens, dispostos a morrer por ela. Seus súditos, os jagas, viviam do roubo, vitimando diversas tribos. Quase no fim de sua vida, Jinga acabou convertida ao catolicismo pelo frei napolitano Antônio da Gaeta, capuchinho de São Salvador do Congo.
Salvador de Sá

Governador do Rio de Janeiro em diferentes períodos, Salvador Correia de Sá e Benevides foi o principal responsável pela retomada de Luanda, em 1648. Ele conseguiu apoio do rei D. João IV para dar o troco nas escaramuças produzidas pelos holandeses nas colônias do Atlântico Sul. Na África ganhou o nome de Nfumu-Etú-Lálânâ – Nosso Senhor Salvador – e foi o pior inimigo da rainha Jinga. Tomou dela muitos escravos sem nunca devolver a princesa dos jagas, Cambo, mantida como refém.
Kimpako

D. Garcia Afonso II – ou Kimpako na língua bacongo – foi o rei do Congo do ano de 1641 a 1663. Até 1648, ele manteve forte aliança com os holandeses, que colaboravam na sua luta contra um de seus vassalos e pior inimigo, o Conde de Soyo. Convertido ao cristianismo, o soberano congolês era católico fervoroso e abrigava em sua capital, São Salvador do Congo, frades capuchinhos contrários à escravidão. Kimpako negociou a paz com o novo governador de Angola, Salvador de Sá, após a expulsão dos holandeses de Luanda, mas só foi perdoado pelo rei de Portugal, D. João IV, depois de apelar para a intervenção do papa.
João Fernandes Vieira

Grande proprietário de engenhos de cana-de-açúcar na Paraíba e comandante da resistência aos holandeses na Insurreição Pernambucana, ele governou Angola entre 1651 e 1658. Vieira iniciou a série de expedições de mulatos nordestinos que espalharam o terror na África Central, queimando plantações dos nativos e escravizando angolanos e congoleses, inclusive de tribos aliadas dos portugueses. Acabou excomungado pelos jesuítas por denunciar a imensa quantidade de escravos que a Igreja mantinha em cativeiro.
André Vidal de Negreiros

Herói da Insurreição Pernambucana, a guerra contra a ocupação holandesa no Brasil, ele ganhou como prêmio o governo de Angola. Ficou no poder entre 1661 e 1666 e comprou briga com o novo rei do Congo, D. Antônio Afonso, chamado na língua bacongo de Mani Mulaza. A rixa entre os dois aconteceu na Batalha de Ambuíla (1665), quando os mulatos de Negreiros resistiram com espingardas e debaixo de chuva a milhares de arqueiros de Mani Mulaza. Mesmo com muitas glórias, Negreiros foi afastado do governo de Angola justamente por romper a paz com o Congo, conquistada logo após a retomada de Luanda.
Tempos bárbaros
Negros eram trocados por fumo e cachaça.
Para conseguir escravos, os exploradores luso-brasileiros não mediam esforços. Valia tudo, desde a guerra de captura até o pagamento de tributos. Um dos jeitos mais comuns para amealhar a valiosa mão-de-obra era trocar mercadorias de origem portuguesa (vinho, pólvora e sal-gema) ou brasileira (fumo, cachaça e farinha de mandioca) por negros.
Nos tempos de paz, os agenciadores de escravos, os pumbeiros, vasculhavam o sertão angolano comprando os prisioneiros de tribos rivais. Nas idas e vindas ao interior, levavam 150 escravos para carregar as mercadorias usadas como pagamento. Demoravam cerca de um ou dois anos nas jornadas e voltavam com filas de 500 a 600 “peças”. Já nas guerras de captura, os capitães partiam acompanhados por centenas de soldados europeus, mulatos brasileiros ou mesmo angolanos. Enfrentavam as tribos e escravizavam os homens capturados. Em Luanda, os cativos ficavam em grandes barracões, esperando o embarque. Quando os navios demoravam para transportar a “carga”, os escravos acabavam aproveitados na plantação e cultivo da mandioca local.
Os jesuítas, que possuíam numerosos escravos em Luanda, tinham um importante papel durante essa estadia, catequizando as almas. Antes de embarcar, todos os escravos eram batizados com nomes bíblicos, recebendo a nova alcunha por escrito em um papel. Eram orientados a esquecer  os costumes de sua terra e a serem felizes na nova fé.

Aventuras na História n° 022

terça-feira, 29 de maio de 2012

Como funciona o Telescópio Espacial Hubble?

Renato Domith Godinho

Um dos mais complexos aparelhos já colocados em órbita pelo homem, o Hubble é um telescópio de reflexão - ou seja: em vez de lentes, funciona com espelhos convexos para captar e ampliar a luz que chega até ele. Apesar de a qualidade de definição das imagens corresponder proporcionalmente ao diâmetro do espelho principal, o Hubble leva a vantagem de estar no espaço, sem ter a visão obscurecida pela atmosfera da Terra. Assim, mesmo tendo apenas 2,4 metros de diâmetro, seu espelho enxerga mais longe e mais nitidamente que o telescópio que possui o maior espelho do mundo, o do observatório de Keck, no Havaí, com 10 metros de diâmetro. O Hubble Space Telescope ganhou esse nome em homenagem ao cientista americano Edwin P. Hubble (1889-1953), considerado o fundador da astronomia moderna. O equipamento - que pesa 11 toneladas e tem 13 metros de comprimento - levou oito anos para ser construído.
Desde 1990, ele gira no espaço a 612 quilômetros da Terra, enxergando galáxias a mais de 10 bilhões de anos-luz - distância tão grande que a luz emitida por elas vem ainda dos primórdios do Universo, permitindo aos cientistas entenderem melhor a origem do Cosmo. Quando o Hubble já estava em órbita, descobriu-se uma falha no polimento do espelho principal. Ela era menor que um fio de cabelo, mas suficiente para deixar o telescópio míope. Em 1993, astronautas instalaram lentes corretivas e só então o Hubble passou a produzir as estonteantes imagens que conhecemos. No último mês de março, ele passou por outra reforma: ganhou novos painéis solares, uma câmera digital dez vezes mais sensível e um novo sistema de refrigeração para a câmera de infravermelho, que estava pifada desde 1999.
Odisséia fotográfica As imagens capturadas no espaço percorrem um longo caminho até a Terra
1. A luz de partes distantes do espaço entra no telescópio e bate no espelho principal, que a reflete de volta para a frente, rumo a um espelho secundário.
2. O espelho secundário capta a luz, melhora o seu foco e a envia de volta, em direção a um pequeno orifício no centro do espelho principal.
3. Atrás do espelho principal, uma série de micro- espelhos redireciona a luz para cinco câmeras digitais que irão fotografá-la: uma câmera infravermelha (que capta o calor dos objetos), uma espectrográfica (que divide a luz em cores para descobrir a composição das estrelas), uma para fotografar regiões amplas do espaço, uma para detectar os menores movimentos dos astros e uma ultra- sensível para captar imagens de galáxias ainda mais distantes.
4. As câmeras digitais não têm filme, mas uma tela que transforma as partículas de luz (fótons) em sinais elétricos, daqui enviados aos computadores de bordo. Lá, as imagens são processadas e enviadas para a antena do telescópio.
5. A antena envia as imagens captadas pelo Hubble para um satélite de comunicação que estiver passando por perto.
6. O satélite então envia os sinais para a estação receptora de White Sands, no Novo México, Estados Unidos, que, por sua vez, os encaminha ao Instituto Científico do Telescópio Espacial, em Baltimore. Lá, os dados serão recompostos em belas imagens.
Tampa protetora
Por causa de suas câmeras extremamente sensíveis, o Hubble nunca poderá ser usado para observar o Sol. Um só raio direto queimaria tudo. Uma tampa cobre o telescópio quando sua órbita o coloca de frente para o astro.
Painéis solares
Os dois painéis captam a energia do Sol e a transformam em energia elétrica, necessária para manter o aparelho funcionando.
Segredo de locomoção
Se usasse jatos para mudar de direção, a nuvem de gás formada por eles deixaria o Hubble cego. Por isso, para direcionar o telescópio são usadas três rodas. Quando elas giram - acionadas por um motor elétrico, cada uma em um eixo -, a lei física da ação e reação entra em cena, fazendo o Hubble rodar para o outro lado. Além disso, seis giroscópios detectam o movimento do telescópio em volta da Terra e enviam as informações para o computador central, que faz girar o aparelho, mantendo-o fixo em relação ao nosso planeta.

Revista Mundo Estranho Edição 7/ 2002

O que é engenharia reversa?

Qualquer um que destruiu o radinho de pilha do pai para "ver como funciona" já deu os primeiros passos em engenharia reversa. Ela consiste em pegar um produto já acabado e examiná-lo, desmontando peça por peça, para descobrir como foi feito. A idéia é reproduzi-lo da melhor maneira possível, mesmo sem ter acesso às instruções e instrumentos do fabricante original. "A engenharia reversa é a principal atividade dos departamentos de desenvolvimento de produtos de todas as grandes empresas multinacionais. No Brasil, por exemplo, os fabricantes de televisores mantêm uma vistoria permanente nos aparelhos dos concorrentes", diz o engenheiro Javier Ramírez, da USP. Espiar o quintal do vizinho é, afinal, mais rápido e barato que reinventar a roda  e basta alterar um pouco o processo de fabricação para não ter que pagar por uma tecnologia patenteada, prática que leva a grandes discussões judiciais.
Até o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o Japão adquiriu muito da sua tecnologia utilizando engenharia reversa em produtos americanos e alemães.

Revista Mundo Estranho Edição 7/ 2002

O que acontecia na cidade secreta de Machu Picchu?

Fabio Volpe

Em 24 de julho de 1911, o arqueólogo americano Hiram Bingham encontrou estas incríveis ruínas no Peru. Machu Picchu foi construída por volta de 1450 e pertencia ao Império Inca, que se estendeu do Chile ao Equador antes de ser destruído pelos espanhóis no século XVI. Um dos mistérios que envolvem a cidade é como os incas carregaram tantas pedras para construí-la. O trabalho não foi tão duro assim, pois a própria montanha era rica em granito. Mais complicado era extrair as rochas do terreno. Mestres no assunto, os incas usavam técnicas curiosas, como encher de água fissuras naturais nas pedras para que, à noite, com a queda da temperatura, o líquido congelasse e se expandisse, aumentando as rachaduras e facilitando a extração.
Mas o que fazia no meio das montanhas essa cidade para até 1 000 habitantes? Alguns estudiosos acreditam que era um local secreto para cultos religiosos. Já no livro Machupicchu - Universidad Inka, o arquiteto peruano Oscar Zereceda defende a tese de que o lugar teria sido uma espécie de universidade de astronomia e de técnicas agrícolas. A única certeza é que ela foi abandonada sem que nenhum colonizador espanhol a tivesse conhecido - o que você pode fazer agora.
A Intiwatana (pedra de amarrar o Sol) era a peça central de um sistema de medições astronômicas, importante para definir o plantio. A Praça Sagrada tinha dois templos: o das Três Janelas (simbolizando a terra dos vivos, a dos mortos e a dos deuses) e o dos Animais (para celebrar a fertilidade).
A entrada principal era o Portal Sul, que separava o setor urbano do rural. Na parte alta da cidade, ficava o Bairro Nobre, lar de sacerdotes, oficiais e parentes do imperador.
ARMAZÉM
Aqui eram estocados os alimentos cultivados na cidade ou trazidos de fora em tropas de lhamas, já que Machu Picchu não conseguia produzir comida suficiente para todos os seus habitantes. O local também poderia servir como uma espécie de recepção para os visitantes.
O pico Huayna Picchu (montanha jovem) era um ponto estratégico para observações astronômicas, ligado à cidade por uma íngreme escadaria.
Na parte baixa da cidade, ficava o bairro popular, moradia de artesãos, camponeses e professores. A Praça Central era uma espécie de pátio interno, onde ocorriam as festas.
TERRAÇOS
Pareciam grandes degraus e serviam para o plantio - de batata e milho a folhas de coca, usadas para resistir à altitude. Eles tinham uma base de pedra que permitia a rápida passagem da água entre um terraço e outro. Além disso, protegiam o terreno da erosão.
O GRANDE TEMPLO
O Sol era o deus mais popular entre as inúmeras divindades da natureza adoradas pelos incas e era representado em muitos ornamentos de ouro. O Templo do Sol, o principal de Machu Picchu, tinha duas janelas posicionadas para receber os primeiros raios solares que entravam na cidade nos dias que marcam o início do verão e do inverno. Lá, sacerdotes também sacrificavam lhamas e porquinhos-da-índia para prever o futuro em suas vísceras.
A rede de água começava nas montanhas, onde nascia a água potável que a avançada engenharia hidráulica inca distribuía por canais e pequenas fontes de pedra.

Revista Mundo Estranho Edição 7/ 2002

A radiação das bombas de Hiroshima e Nagasáki ainda prejudica a vida no Japão?

Não. "As medições mais recentes indicam níveis de radiação compatíveis com os de outras cidades. Não há mais riscos à saúde", afirma a física Emico Okuno, da USP, especialista no assunto. Como os solos não estão mais contaminados, já dá para consumir sem medo os alimentos ali cultivados. É claro que isso não apaga o horror das bombas. Pelo menos um quarto da população das duas cidades morreu nas explosões, em agosto de 1945, no final da Segunda Guerra Mundial. Nas décadas seguintes, uma pesquisa feita pelo instituto nipo-americano Radiation Effects Research Foundation (Fundação de Pesquisa dos Efeitos da Radiação) revelou que a radiação fez aumentar a incidência de câncer entre os sobreviventes. Dos 50 mil sobreviventes estudados entre 1950 e 1990, 176 morreram de leucemia. Desses casos, 89 (51%) foram causados pela radiação. Entre as pessoas que estavam a menos de 1 quilômetro do centro das explosões, as bombas foram responsáveis por 100% das mortes por leucemia.
O estudo ainda apontou a ocorrência, em menor grau, de outros tipos de câncer, como de estômago, pulmão, mama e fígado. No total, estima-se que 9% das mortes por câncer entre os sobreviventes tenha sido causada pela bomba. A boa notícia é que não houve indícios de alteração genética nos fetos expostos à bomba. "Mas as pesquisas continuam. Ainda restam muitas dúvidas sobre os efeitos da radiação", diz Emico.
Cogumelos letais Número de mortos pelas bombas
Cidade - Hiroshima
População Estimada - 310 000
Número de mortos* - 60 000 a 80 000
Cidade - Nagasáki
População Estimada - 250 000
Número de mortos* - 90 000 a 140 000
* Inclui mortes ocorridas até quatro meses depois dos bombardeios

 Revista Mundo Estranho Edição 7/ 2002