sexta-feira, 25 de maio de 2012

ilhas Malvinas: o rato que ruge

Eduardo Szklarz

Por um século, Argentina e Inglaterra disputaram nos tribunais o arquipélago, habitado mais por pinguins que por pessoas. Em 1982, os argentinos partiram para a briga e levaram uma surra.
A ordem de ataque foi dada às 23 horas do dia 1º de abril de 1982. Já a postos, homens do primeiro comando anfíbio deixaram o navio Santíssima Trindade e enfrentaram em botes infláveis as águas geladas do Atlântico Sul. Levaram uma hora para chegar a Porto Enriqueta, a 500 quilômetros da costa argentina e avançaram no meio da névoa por seis quilômetros até avistar o quartel da marinha inglesa. Tinha início a Operação Rosário, lançada pelo governo da Argentina para recuperar as ilhas Malvinas (ou Falklands, para os ingleses) depois de 149 anos de domínio britânico.
Ao receber o alerta, os 68 homens da guarnição inglesa tomaram posição ao redor de Porto Stanley, a capital das ilhas, mas não conseguiram conter os invasores. Só tiveram tempo de colocar um caminhão, madeiras e ferros na pista do aeroporto. O barco-patrulha Endurance, que poderia dissuadir os argentinos, estava a 430 milhas de distância, voltando das ilhas Geórgias do Sul. “Apesar do sinal dos serviços de inteligência, a Inglaterra achou que evitaria a invasão diplomaticamente”, dizem os jornalistas Paul Eddy e Magnus Linklater, no livro The Falklands War (A Guerra das Malvinas, inédito no Brasil).
O aeroporto foi palco dos primeiros disparos. Os comandos argentinos limparam a pista para que aviões Hércules C130 despejassem mais soldados, enquanto os navios San Antonio, Drummond e Grandville atracavam com batalhões de infantaria, artilharia e sistemas de comunicação. Às 4 horas, os argentinos já se espalhavam num raio de 8 quilômetros em torno de Stanley. E, às 4h30, 120 soldados do Comando de Mergulhadores Táticos chegaram em helicópteros. Vestidos de preto, eles se dividiram em dois grupos: o primeiro tomou o quartel inglês de Moody Brook. O outro se dirigiu para o objetivo da missão, a Casa de Governo.
Nesse momento, o governador Rex Hunt recebeu a ordem de rendição. Às 9h25, ele deixou o palácio com as mãos para o alto e foi entregue à embaixada inglesa no Uruguai. Em seu lugar, assumiu o general Mario Menéndez. Os 1800 habitantes da ilha, súditos da coroa inglesa, ouviram por rádio que seus bens seriam respeitados. A Argentina ocupou também as Ilhas Sandwich e a Geórgia do Sul. Porto Stanley virou Porto Argentino e, às 10 horas, a bandeira britânica estava arriada.
A Inglaterra reagiu rapidamente. Em 3 de abril, a primeira-ministra Margaret Thatcher obteve luz verde do Parlamento britânico para enviar tropas às ilhas. Em poucas semanas, chegavam às Malvinas dois porta-aviões, oito destróiers, 15 fragatas e cinco submarinos, além de navios de transporte, hospitalares e de abastecimento, num total de 120 unidades. “Se querem vir, que venham. Nós lhes daremos batalhas”, disse o presidente-ditador argentino Leopoldo Galtieri, diante de uma multidão que se aglomerou na praça de Maio para manifestar apoio à iniciativa do governo.
Os jornais de Buenos Aires clamavam pela unidade nacional, enquanto intelectuais respeitados no país, como o escritor Ernesto Sábato, convocavam o povo a lutar contra o imperialismo. O resto do mundo, claro, não compartilhou de tal euforia. A Comunidade Comum Européia condenou a ocupação e suspendeu a venda de armas para a Argentina. O Conselho de Segurança da ONU aprovou a Resolução 502, que exigiu o fim das hostilidades. Já o secretário de Estado americano, Alexander Haig, foi a Londres e Buenos Aires para tentar uma saída pacífica. Tudo em vão. O governo argentino respondeu que não devolveria nem um metro quadrado das congeladas terras das Malvinas. O objetivo do presidente Galtieri e dos militares de seu país – ocupar para negociar – se transformara numa missão duradoura.
O que começou com um agrupamento de 500 soldados já somava cerca de 10 mil efetivos no final de abril. A maioria dos soldados tinha entre 18 e 19 anos, pouco treinamento e provisões insuficientes para enfrentar 10 graus negativos. “Escutamos pelo rádio que a população havia mandado 50 caminhões de roupa, remédios e comida, mas nada chegou até nós”, diz o jornalista e ex-combatente Edgardo Esteban, autor do livro Iluminados por el Fuego (Iluminados pelo Fogo, inédito no Brasil). “O tenente dizia que os ingleses não lutariam, pois não conheciam as ilhas e chegariam cansados da longa viagem.”
Em 25 de abril, os comandos ingleses iniciaram a ofensiva pela ilha Geórgia do Sul. O ataque começou às 6h30, quando um helicóptero inglês Wessex 3 bombardeou o submarino argentino Santa Fé, que estava navegando na superfície. O destróier inglês Antrim também abriu fogo contra as posições inimigas, que não tardaram a abanar três grandes bandeiras brancas. No dia seguinte, o capitão argentino Alfredo Astiz assinou a rendição de sua tropa na Geórgia do Sul.
A partir de então, os ingleses atacavam todas as noites, sempre posicionados em seus barcos. Os britânicos declararam bloqueio aeronaval num limite de 320 quilômetros em torno das Malvinas. “Na madrugada de 1º de maio, fomos sacudidos por um alerta: os ingleses estavam bombardeando Porto Argentino”, diz o general Martín Balza, na época tenente-coronel no comando de um grupo de artilharia.
Com o número de feridos aumentando a cada dia, a Argentina montou um hospital em um colégio abandonado em Soledad – uma das duas grandes ilhas do arquipélago. Os feridos só ficavam internados cerca de dez dias porque não havia remédios suficientes. Vencido o prazo, eram mandados ao continente a bordo de aviões Hércules, que conseguiam driblar os radares ingleses. “Tudo era feito em segundos. Tão logo um Hércules baixava a rampa, nós empurrávamos as macas sob o risco de sermos atingidos pelo fogo inimigo”, diz um médico que serviu na guerra. Como ainda pertence ao Exército, prefere não se identificar.
Para os argentinos, o enfrentamento tomou a forma de guerra de trincheira. “Ficamos entocados em buracos enquanto do outro lado havia um inimigo móvel no céu e no mar, e cujo contato em terra foi limitado a movimentos rápidos”, diz o historiador argentino Vicente Palermo, autor de História Argentina. Além da inferioridade das armas, os nossos vizinhos não contavam com um comando unificado. “Nem Galtieri nem o Estado Maior Conjunto tinham um comando militar eficiente”, afirma Palermo.
Nos combates aéreos, no entanto, os enfrentamentos foram mais equilibrados. Os argentinos pilotavam os aviões franceses Mirage e Super Étendard, além dos Skyhawk, comprados dos americanos em 1966. Todos inferiores aos caças Sea-Harrier ingleses, mas causaram muitas perdas à frota britânica. A maior delas ocorreu em 4 de maio contra o destróier Sheffield, que patrulhava o sudeste das Malvinas. Metade dos 270 tripulantes descansava quando o tenente Nick Batho captou o sinal do perigo: um Étendard havia saído da “zona morta do radar” (abaixo da linha do horizonte) para determinar a posição do alvo. Instantes depois, o tenente viu um míssil Exocet viajando em alta velocidade em sua direção. O foguete explodiu bem no meio do destróier. O Sheffield afundou quando era resgatado.
Em 21 de maio, 3 mil soldados ingleses desembarcaram no porto San Carlos, a 90 quilômetros de Porto Stanley. Era hora de por um fim na briga. O local foi dominado e a Argentina perdeu 22 aviões em três dias. “Os gurkas eram o inimigo mais perigoso”, diz Esteban, referindo-se aos mercenários nepalenses pagos pelos britânicos para lutar nas Malvinas. “Quando um deles era ferido, outro surgia de helicóptero para substituí-lo. Mas nós estávamos ali por mais de 50 dias, enfiados em poças de barro, com obuses que falhavam e a roupa destruída.” Os ingleses ainda contavam com espiões nas ilhas, como o padre. Ele mandava sinais aos navios ingleses com badaladas do sino da igreja.
Os argentinos perderam posições seguidas até que, em 29 de maio, 1400 soldados se renderam. Dez dias depois, o general Daher, comandante do Exército da Argentina, viajou ao continente para expor à Junta Militar a situação das tropas – e não voltou. Na mesma semana, Buenos Aires acordou com a notícia de um novo ataque a Porto Stanley. O assalto final à capital produziu os dias mais duros da guerra.
Movendo-se em helicópteros, os britânicos tomaram as colinas que rodeiam a cidade. Em 12 de junho, o Monte Longdon virou o cenário de combates corpo a corpo. Foram 24 horas de batalhas. Os ingleses perderam 23 homens; os argentinos, 50. Sem outra saída, o governador Menéndez se rendeu em 14 de junho, colocando fim ao conflito que deixou, ao todo, 649 mortos do lado argentino e 250 do inglês. Com a derrota, as ilhas Malvinas voltaram a ser ilhas Falklands. E a Argentina recomeçou as reclamações de posse nos foros internacionais, como fazia desde 1833. Para manter o controle, a Grã-Bretanha alega descobrimento, ocupação e vontade dos kelpers, os habitantes locais. Já os argentinos dizem que as Malvinas, antes território espanhol, são deles por direito desde a independência. A derrota nas ilhas ecoou também na Casa Rosada, contribuindo para a queda do regime militar. Em 30 de outubro de 1983, o país elegeu o presidente Raúl Alfonsín.

Golpe baixo
O navio General Belgrano foi atacado fora da zona de exclusão.
Dois pesos pesados protagonizaram a ação mais polêmica da guerra. De um lado, o submarino nuclear inglês Conqueror, que costumava identificar barcos soviéticos em tempos de Guerra Fria. Do outro, um cruzador de 10 650 toneladas batizado de General Belgrano, em homenagem ao criador da bandeira argentina. O cruzador sobrevivera ao ataque japonês a Pearl Harbor, em 1941, quando ainda pertencia aos Estados Unidos. Mas, naquele 2 de maio de 1982, não teve sorte. O Conqueror o identificou quando navegava fora da zona de exclusão imposta pela Inglaterra. Mesmo assim, o gabinete de guerra da primeira-ministra Margaret Thatcher ordenou o ataque. O primeiro torpedo explodiu às 16 horas debaixo da quilha, entre a casa de máquinas da popa e os alojamentos. O segundo atingiu a proa cerca de seis metros acima da água e afetou a viga vertical, provocando a inundação dos compartimentos inferiores. “Quando ouvi os estrondos, não tive a mínima idéia do que estava acontecendo”, recorda o motorista Fernando Jaime, na época um soldado cumprindo o serviço militar obrigatório. “Soubemos depois que o submarino havia lançado três torpedos e que dois nos atingiram. Havia uma quantidade enorme de gente queimada. Ajudamos os enfermeiros do jeito que pudemos e embarcamos com os feridos nas balsas salva-vidas, enquanto o barco afundava.” Dos 1093 tripulantes do General Belgrano, 323 morreram. Os outros 770 permaneceram nas balsas durante 30 horas, pois uma tormenta os empurrou para o sul e dificultou sua localização pelas equipes de resgate. “Enfrentam os ondas de dez metros de altura e 25 graus negativos durante a noite”, diz Jaime. “Muita gente continuava em estado de choque quando fomos salvos.”

Iluminados por el fuego
A dura realidade de um soldado argentino.
Mais de duas décadas depois do final do conflito, chega às telas o primeiro filme que reconstrói o cotidiano da Guerra das Malvinas. Com estréia prevista na Argentina para o dia 2 de abril, data de início da guerra, Iluminados por El Fuego foi baseado na obra homônima de Edgardo Esteban, um jornalista, que, aos 18 anos, encarou os campos de batalha.
O diretor Tristan Bauer focaliza dois pontos: o sofrimento no front e a marginalização na volta para casa. “ Tenho lutado para sair daquele inferno há muito tempo. Escrevi o livro para fechar essa história”, diz Esteban.
A Argentina hoje também luta para encerrar o assunto. O conflito tem sido objeto de reflexão no país. O livro La Trama Secreta (A Trama Secreta, inédito no Brasil) conta que a Junta Militar – formada pelo general Leopoldo Galtieri, o almirante Jorge Anaya e o brigadeiro Bazilio Lami Dozo – designou uma comissão para planejar a tomada das ilhas em sigilo, quando a tarefa era do Estado Maior Conjunto. “O segredo foi a causa de erros táticos. Gerou falha de coordenação, falta de preparação e erro na apreciação do inimigo”, concluiu o Informe Rattenbach, fruto de uma investigação militar.
O primeiro erro do general Galtieri foi achar que a Inglaterra não reagiria.
O segundo, acreditar que os Estados Unidos os obrigariam a negociar, já que o presidente Ronald Reagan chegou a ligar para ele na véspera da ocupação tentando convencê-lo a não usar a força. Só que diante da agressão Reagan ficou do lado dos ingleses. Forneceu a Margaret Thatcher informações de satélite e lhe cedeu a base americana da ilha de Asunción. Situada entre a Europa e as Malvinas, o lugar foi fundamental para a vitória britânica.
O roteiro de Iluminados por El Fuego passeia por dois momentos dessa guerra insana, sem chances de vitória: 1982, quando Esteban embarca para a guerra; e, agora, quando retorna às ilhas aos 40 anos de idade. Na volta às Malvinas, Esteban se surpreendeu. Sapatos, latas de refrigerante, sacos de dormir, escovas de dente, garfos e destroços de helicópteros formam uma espécie de museu da guerra a céu aberto. Nas entrelinhas da história de Esteban estão revelações chocantes.
Por exemplo: morreram mais ex- soldados por suicídio nos últimos 23 anos do que nos campos de batalha.
Para construir a obra, o diretor contou com a ajuda de ex-combatentes e da Força Aérea. Ele rodou as cenas nas províncias de San Luis e Santa Cruz, com orçamento de US$1 milhão. Antes de chegar ao público, o filme já ganhou cinco prêmios, entre eles o do Festival de Havana.
A Guerra inspirou outras produções na Argentina. O cineasta Bebe Kamín relata o impacto do conflito na vida de três garotos em Los Chicos de la Guerra (1984).
Já a comédia Fuckland (2000), de José Luis Marqués, narra a saga de um sujeito que vai às ilhas para engravidar nativas e povoar as Malvinas com uma nova geração de argentinos.

Aventuras na História n° 021

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