quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Chá de todas as horas


Martha San Juan França
Das folhas de uma planta originária da Índia se faz a mais apreciada infusão do mundo. Um escritor, não por acaso inglês, chegou a dizer que sua falta abalaria a ordem do Universo.
Todas as tardes, por volta das 17 horas, no longo intervalo entre as refeições, a duquesa Anna de Beresford, mulher do sétimo duque de Beresford, conselheiro da Coroa britânica, costumava ficar indisposta, com a sensação de vazio no estômago. Para amenizar o desconforto, ela ordenava à criada que Ihe levasse aos aposentos uma bandeja com chá, pão e manteiga. O mal-estar passava e o hábito da duquesa começou a ser imitado pelas amigas, pelas amigas das amigas e também pelos respectivos maridos. E foi assim que ofive orsquo;clock tea, tendo nascido em 1840, como um santo remédio para aplacar o apetite da senhora de Beresford, dez anos depois tinha se tornado uma instituição nacional, o chá das cinco, tão confiável como a monarquia e tão inevitável como os impostos. As ladies da sociedade passaram a se reunir ao entardecer em volta dos elegantes serviços de porcelana para contar os últimos mexericos, enquanto os homens discutiam as mais recentes peripécias da expansão colonial britânica também sorvendo a fumegante infusão, um símbolo da respeitabilidade do Império e da era vitoriana.
A tal ponto o chá se instalou na vida britânica que o escritor Rudyard Kipling (1865-1936), um dos grandes propagandistas das virtudes civilizadoras da política colonial de Sua Majestade, permitia-se advertir que “a falta de chá durante uma semana abalaria a ordem do Universo". O poder das folhas dessa planta da família das camélias, conhecida pelos botânicos como Thea sinensis (chá da China), era tão difundido que um século antes já havia servido indiretamente de estopim para o movimento de libertação dos Estados Unidos. Em 1773, a três anos do nascimento da nação, americanos de Boston, na então colônia britânica de Massachusetts, disfarçados de índios, jogaram ao mar 342 caixas de chá que esperavam o desembarque a bordo de três veleiros da Companhia das Índias Orientais. Indignados com tamanha provocação, os ingleses adotaram uma série de represálias que apenas serviram para unir as colônias contra o domínio imperial e apressar a Guerra de Independência.
No Brasil, onde se bebe em média cinco xícaras de chá por ano, menos do que um inglês numa semana, é difícil avaliar a presença da Thea sinensis na história dos costumes humanos — ingleses ou não. Por estas paragens, de fato, a palavra chá continua comumente associada à idéia de um geralmente infalível remédio caseiro contra males prosaicos o suficiente para dispensar a mão-de-obra da ida ao médico, males que afligem de preferência a metade menos nobre do corpo humano. Sinônimo de várias ervas de propriedades medicinais específicas, o chá tal qual é falado incorretamente no Brasil tanto pode ser a erva-doce como a camomila, a carqueja e o confrei, o boldo e a catuaba, talvez os mais conhecidos entre algumas centenas de modalidades de nomes peculiares, como alfavaca e espinheira santa, cavalinha e cana-do-brejo, cáscara-sagrada e pepino-de-são-gregório. A confusão está em chamar chá, nome próprio de uma planta, a infusão de um sem-número de ervas — cujos atributos terapêuticos são com justa razão levados a sério pela veneranda Medicina chinesa, que prefere ainda hoje prescrever em forma natural os princípios ativos sintetizados em laboratório. Pois a verdadeira Thea sinensis, a bebida estimulante, rica em cafeína, cuja falta "abalaria a ordem do Universo" e cujo nome contém um equívoco geográfico é um arbusto originário, não da China, mas de Assam, região do norte da Índia.
O arbusto mede pouco mais de 1 metro de altura e tem folhas pequenas, ovaladas, de cor verde-escura. As melhores folhinhas, ou pekoes, na versão ocidentalizada do chinês pak-ho, são colhidas nas montanhas da Índia, Sri-Lanka (Ceilão), China, Japão e Indonésia. Há também variedades que proporcionam uma bebida aprazível, procedentes de lugares tão diversos como o Quênia, no coração da África, e o Vale do Ribeira, no sul de São Paulo. Venha de onde vier o chá, a receita é sempre a mesma. As folhas, inteiras ou moídas, devem permanecer em água fervente de três a cinco minutos. Para o chá a granel, usa-se uma colher de sobremesa para cada quatro xícaras. Os ingleses preferem temperar a infusão forte com um pouco de leite, uma fórmula menos difundida que o chá com limão dos europeus do Leste e dos americanos. Os japoneses usam as folhas verdes, não fermentadas e muito amargas na sua célebre cerimônia do chá. Em climas mais tropicais, há quem goste de chá gelado, que deve ser derramado aos poucos num copo cheio de gelo.
Quentes ou frios, os melhores chás, como os melhores vinhos, resultam de colheitas especiais, têm sabores distintos e irresistíveis aromas remanescentes de ervas, flores, frutas e especiarias. Um dos mais apreciados, por exemplo, é o Darjeeling, colhido nas escarpas do Himalaia, na Índia. Outro é o Oolong, originário de Formosa. Outro ainda chama-se Earl Grey, aromatizado com tangerina, cujo nome é uma homenagem ao chanceler inglês Edward Grey (1862-1933), que descobriu essa maravilha numa viagem diplomática ao Oriente. Foi, aliás, nessa parte do mundo que surgiu o costume de tomar chá. Diz a lenda que, para manter-se acordado, um certo monge budista hindu, de nome Bodhidarma, que introduziu a doutrina zen no Japão e na China, no século VI da era cristã, cortou as próprias pálpebras. No lugar onde caíram nasceu a planta cujas folhas em infusão serviriam para mantê-lo desperto durante as longas horas que dedicava à meditação. A lenda, como se vê, consagra as propriedades estimulantes do chá, mas falha na data de seu aparecimento. O mais provável é que se tornou conhecido muito antes, há cerca de 2 mil anos, quando o budismo se alastrou pela China.
Os primeiros consumidores do chá preferiam-no sólido. As folhas eram cozidas em vapor, espremidas e secas. Formavam assim bolos misturados com arroz, gengibre, sal, casca de laranja, cravo, leite e cebola. Até hoje, no Tibete, uma espécie de bolo de chá, o tsampa, é saboreado com manteiga de iaque, o gado do lugar. Mais tarde, os chineses começaram a apreciar o chá bebida, feito de folhas moídas em infusão na água fervente. Esse método se difundiu para o Japão, onde, até o século XII, o mancha, como se chamava o chá verde em pó, era consumido apenas pelos monges budistas. Duzentos anos depois, o hábito já havia transposto as portas dos mosteiros e atravessado os umbrais dos palácios. Os convidados da corte, depois de provarem várias xícaras de chá, tratavam de identificar as melhores regiões produtoras; quando acertavam, ganhavam belos prêmios.
Como esse costume tivesse se tornado moda, as plantações prosperaram e o chá se tornou uma bebida tão popular no Japão como o cafezinho seria no Brasil. Em contraste, as tradições associadas ao seu consumo desapareceram da China com as invasões mongóis do século XIII. Embora  os chineses ainda produzam e apreciem em larga escala a bebida. No Oriente como no Ocidente, o processo de transformação do chá não difere muito desde então. O connaisseur sabe que uma importante referência para avaliar a qualidade da bebida é a parte da planta utilizada para beneficiamento. As folhas superiores, naturalmente as mais novas, são também as melhores. No passado, eram as únicas que serviam. A colheita manual feita, por exemplo, na região indiana de Darjeeling, ainda hoje se limita a essas folhas e as duas seguintes. Mas, fora dali, no mundo inteiro, a colheita é quase sempre mecanizada, o que exclui qualquer seleção. As fases posteriores de produção obedecem as mesmas regras dos tempos antigos. No processo de beneficiamento, espalham-se as folhas sobre prateleiras de bambu para secar. Depois são enroladas a fim de não quebrar. Atualmente, as máquinas retiram todo o suco das folhas. No caso do chá preto, elas ainda passam por um período de fermentação, antes de serem classificadas. Os bons produtores de chá possuem provadores especializados em notar as mínimas diferenças nas amostras. Em geral, as melhores folhas chamam-se orange pekoe, por causa das pontas alaranjadas. Em seguida, vêm as pekoe, pekoe souchong (folhas pequenas, grossas e mais velhas) e as souchong (ainda mais velhas). Mas a classificação pode ser mais complicada. Os chás do tipo oolong, por exemplo, variam conforme a estação em que é feita a colheita. Existem pelo menos oito qualidades, cujo gosto vai da castanha ao mel. As folhas quebradas (broken, em inglês) obedecem às mesmas classificações. Muitos consumidores, no entanto, só conhecem os chá.

Revista Super Interessante n° 030

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