Ana Elisa Camasmie
No século 18, o major Robert Rogers montou uma feroz milícia
que ajudou a conquistar a América do Norte. Dos oficiais ingleses, ele ganhou a
antipatia. Dos índios, o apelido de Diabo Branco.Quase todos os guerreiros do vilarejo indígena de Saint Francis, às margens do rio de mesmo nome, estavam ausentes na madrugada de 4 de outubro de 1759. O povoado, na fronteira entre a Nova França e a Nova Inglaterra (hoje no leste do Canadá, entre Montreal e Quebec), abrigava os abenakis, aliados dos franceses na luta contra os ingleses pelos territórios da América do Norte. Embora preocupados com seus amigos e parentes na frente de batalha, a quilômetros dali, os moradores da vila estavam em festa. Eles tinham acabado de celebrar um casamento, em que as danças tradicionais haviam sido misturadas às bebidas alcoólicas introduzidas pelos brancos. Muitos foram dormir desprezando o aviso de que uma emboscada havia sido tramada para aquela mesma madrugada. Viraram um alvo fácil.
Por volta de 5 da manhã, um grupo de quase 200 índios e soldados brancos atacou em pares, cercando todas as casas e surpreendendo os moradores durante o sono. Em meio aos gritos, baionetas e machados cortavam o ar e a carne. Os agressores, que haviam partido 20 dias antes do forte Crown Point (situado onde hoje é o estado de Nova York), ignoraram solenemente as ordens do comando militar britânico e não pouparam mulheres ou crianças.
Em pouco mais de uma hora, a pequena cidade se encontrava em chamas. Estava concretizada a vingança britânica contra os abenakis. Os índios foram punidos por sua lealdade à França, já que, pouco tempo antes, haviam recusado uma oferta de suborno feita pelos comandantes ingleses. Muitos dos soldados que participaram do ataque também estavam revidando, em particular, a derrota que haviam sofrido em 1757, durante a tomada do forte William Henry – episódio que inspirou o clássico livro O Último dos Moicanos, escrito pelo americano James Fenimore Cooper.
Para levar a cabo o massacre, os ingleses escolheram a mais ameaçadora força de que dispunham: a tropa conhecida como Rogers Rangers. Seu líder, o jovem major Robert Rogers, já havia alcançado fama graças ao temperamento forte e à genialidade militar. Nascido numa colônia em Massachusetts, ele ingressara no exército em 1755, aos 24 anos, para limpar o nome após ser processado por estelionato.
O ataque aos abenakis alçou Rogers ao posto de herói nacional na Inglaterra. Os jornais da época saudavam seus feitos e relatavam com minúcia toda a aventura, incluindo os períodos de fome, frio e doenças que teriam acometido os Rangers durante a viagem de volta, fugindo de tropas francesas. Os detalhes do massacre e de diversos outros episódios são descritos no livro White Devil (inédito no Brasil), do jornalista e historiador inglês Stephen Brumwell. O título da obra é a versão em inglês do nome pelo qual Rogers ficou conhecido entre os indígenas da América do Norte. Lá, ele não tinha nada de herói: era o Diabo Branco (ou “Wobomagonda”, na língua dos abenakis). Brumwell recria com maestria a saga de Rogers e seus bravos e violentos homens, graças à consulta a mapas e diários que pertenceram ao próprio major.
Durante a Guerra Franco-Indígena, o conflito na América do Norte que opôs Inglaterra e França entre 1754 e 1763, Rogers recebeu a missão de formar uma milícia paralela ao exército regular inglês, para atuar nas mais perigosas missões, embrenhando-se na floresta. Essa força era composta por soldados britânicos (chamados de redcoats, ou “casacas vermelhas”), colonos americanos voluntários e guerreiros indígenas das tribos aliadas à Inglaterra. Quando montou os Rogers Rangers, o major formou uma tropa de elite comparável às que, hoje, dão apoio aos melhores exércitos do mundo.
Embora também obedecessem à Coroa Britânica, os homens de Rogers nunca foram reconhecidos como parte do exército inglês. Isso ficava claro pela sua aparência: as oficiais casacas vermelhas davam lugar a uniformes mais curtos, camuflados e apropriados para combates em mata fechada. Alguns Rangers usavam trajes indígenas, como perneiras e mocassins de couro. Os combatentes de origem escocesa e irlandesa usavam seus típicos gorros de lã, próprios para o gelado inverno da região.
A distinção dos Rangers não parava nas roupas. Sua originalidade aparecia também nas táticas de combate, baseadas na guerrilha, e nas armas que carregavam, leves e fáceis de manusear. As preferidas eram mosquetes e pequenas carabinas e baionetas. Também faziam sucesso na milícia as afiadas machadinhas – com elas, os índios obtinham seus maiores prêmios em combate, os escalpos dos inimigos mortos.
Os homens de Rogers ganhavam quase o dobro do que recebiam os soldados regulares ingleses. Seu treinamento, inspirado em técnicas que o major havia aprendido com índios, seguia uma cartilha, as “Rogers’ Rules for Ranging” (algo como “regras de Roger para expedições”). Apontadas como o primeiro manual para orientar guarnições irregulares, elas são 28 “leis” – publicadas na íntegra no livro de Brumwell. Elas detalham desde o modo de vistoriar armas e munições até estratégias de defesa e ataque. Ainda hoje, em versão simplificada, os princípios de Rogers são ensinados nas Forças Armadas americanas.
Mesmo que muitas das vitórias inglesas dependessem unicamente do trabalho realizado pelos Rangers, eles logo geraram polêmica no próprio exército britânico. Muitos oficiais desaprovavam suas táticas exóticas e sua insubordinação. O exército chegou a montar e a treinar seus próprios grupos extra-oficiais de infantaria, mas eles não eram páreo para a eficiência dos Rangers. E isso só aumentava o prestígio do major.
Rogers sem rangers
Depois da importante conquista inglesa de Montreal, em 1760,
Rogers foi escalado para mais algumas missões e viu os Rangers serem
dissolvidos. Péssimo administrador da pequena fortuna ganha depois do ataque à
vila de Saint Francis, o major acumulou dívidas que acabaram o levando à
prisão. Quando saiu da cadeia, Rogers viu sua importância despencar. Com o fim
da Guerra dos Sete Anos na Europa, cessaram também as disputas na América do
Norte, e a Inglaterra não precisava de um guerreiro sanguinário em tempos de
paz. Rogers ainda conseguiu capitalizar o que restava de sua fama em Londres,
lançando dois livros baseados em seus diários de viagem.De volta à América, indicado para o comando de um posto de fronteira em 1765, Rogers resolveu ir atrás de uma velha ambição. Ele tinha planos de encontrar a lendária Passagem do Noroeste, uma rota de navegação que, saindo dos rios norte-americanos, atingiria o Pacífico e encurtaria o caminho para os lucrativos mercados orientais. A arrojada aventura não deu em nada – mas inspirou o livro Passagem do Noroeste, de Kenneth Roberts, publicado em 1937 e transformado em filme em 1940, com Spencer Tracy no papel do major.
As peripécias de Rogers na América do Norte foram interrompidas quando alguns comandantes ingleses que desdenhavam as milícias o processaram por supostamente ter incentivado uma rebelião indígena. O major foi absolvido, mas acabou exilado em Londres, onde ficou até 1775. Rogers voltou então à Nova Inglaterra, que vivia um período de intensa agitação contra o domínio colonial. Os rebeldes americanos ofereceram a ele um posto no exército revolucionário. O major recusou e acabou sendo preso, acusado de espionagem.
Rogers escapou da cadeia e ofereceu de novo seus serviços militares à Coroa Britânica. Em agosto de 1776, um mês depois de os Estados Unidos declararem a independência, o major formou uma outra milícia para atuar na região de Nova York. Inspirada nos Rogers Rangers, ela foi chamada de York Rangers, mas não teve atuações lá muito eficazes (mesmo assim, o exército canadense mantém até hoje um grupo especial de reconhecimento que leva esse nome).
Junto às tropas britânicas derrotadas pelos americanos, o major retornou à Europa em 1783, onde caiu na obscuridade. Em Londres, perdeu sua derradeira batalha, contra um inimigo implacável: o alcoolismo. Rogers morreu em 1795, aos 63 anos – enquanto lamentava o fato de não poder participar de mais uma guerra da Inglaterra contra a França, que tinha começado dois anos antes.
O primeiro conflito mundial
Guerra dos Sete Anos botou o planeta todo para brigar.Entre 1914 e 1918, a humanidade teve o desgosto de presenciar a Primeira Guerra Mundial. Mas bem antes disso outro acontecimento mereceria ter levado esse nome: a Guerra dos Sete Anos, que começou em 1756. Nesse conflito, as grandes potências coloniais do planeta se enfrentaram ao mesmo tempo na Europa, na África, na Ásia e na América. À França se uniram a Áustria, a Saxônia (que hoje fica na Alemanha), a Rússia, a Suécia e a Espanha. Do outro lado, a Inglaterra contou com o apoio de Prússia e Hanover (duas nações que também se incorporariam à Alemanha). Na América do Norte a luta já tinha começado oficialmente dois anos antes, com a Guerra Franco-Indígena. Das diversas tribos existentes na região, algumas se aliaram aos franceses, outras aos ingleses, mudando de lado conforme a conveniência – ao escolher quais colonizadores defender, os índios levavam em conta rivalidades tribais que já existiam bem antes da chegada dos europeus. As duas guerras terminaram ao mesmo tempo, com a assinatura do Tratado de Paris, em 10 de fevereiro de 1763. No continente americano, a vitoriosa Inglaterra tomou da França praticamente todo o Canadá. Mas os britânicos não tiveram o que comemorar por muito tempo: depois do conflito, as duras leis coloniais e os altos impostos revoltaram os colonos americanos – o que fortaleceu o movimento pela independência dos Estados Unidos, proclamada em 1776 e consolidada com o apoio militar dos franceses.
Aventuras na História n° 040
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