Cláudio Moreno
Assim como há pessoas que se parecem muito com seus pais, há
palavras cuja origem não oferece mistério algum, pois o falante percebe
claramente o seu parentesco com algum velho radical da nossa língua. No fértil
campo dos vocábulos ligados a animais, por exemplo, não temos dificuldade de
ver, no verbo "macaquear", a mania que tem o macaco de imitar os
gestos dos humanos, e um "cavalete" só pode ter recebido esse nome
porque seu apoio no solo lembra as patas de um cavalo. No entanto, existem
outros casos em que essa ligação pode passar despercebida. Poucos lembram de
uma serpente quando ouvem falar na "serpentina", companheira do
confete; no entanto, é evidente que aquelas tiras de papel colorido receberam
esse nome por causa da maneira espiralada com que se desenrolam. Veremos,
abaixo, exemplos de vocábulos em que o animal primitivo está tão bem escondido
que poucos de nós conseguimos enxergá-lo. me
GATILHO (de gato)
Nas primeiras armas de fogo, fabricadas artesanalmente e
decoradas com extremo requinte, a peça que segurava a pederneira (pedra que
produzia a faísca para iniciar o disparo) costumava ser esculpida com a forma
da cabeça de um cão ou de um gato. Desse costume proveio o nome das duas peças
que manuseamos na hora de atirar: o cão e o gatilho. Embora originariamente
ambos fossem nomes diferentes para a mesma coisa, pouco a pouco
"gatilho" passou a denominar apenas a parte em que se apóia o dedo
para disparar o tiro, tecnicamente conhecida como disparador.
VACINA (de vaca)
Na sua origem, "vacina" era um adjetivo latino,
presente na expressão variolae vaccinae ("varíola das vacas"). O
médico inglês Edward Jenner (1749-1823) desenvolveu a idéia de inocular as
pessoas com o vírus dessa varíola animal, muito mais fraca que a humana,
provocando assim uma reação que deixava o organismo imunizado contra a temida
doença. Hoje, a Organização Mundial da Saúde considera extinta a varíola em
nosso planeta, mas o termo "vacina" continua a ser usado para
abranger toda inoculação que produza anticorpos protetores contra qualquer
outra doença.
BOATO (de boi)
Contrariando o dito que do boi só não se aproveita o berro,
a palavra "boato" vem do latim boatus ("mugido, berro do
boi"). No século 17, o famoso jesuíta português padre Vieira ainda
utilizava o termo para se referir a uma "gritaria; alvoroço",
significado até hoje conservado no espanhol. Pouco a pouco, no entanto,
"boato" passou a designar aquela informação, geralmente mal
intencionada e sem fundamento algum, que as pessoas vão passando umas para as
outras, como reses de um grande rebanho.
PORCELANA (de porca)
A porcelana, fabricada na China desde o século 7, foi
introduzida na Europa pelos mercadores venezianos e portugueses do
Renascimento. A louça feita com esse material leve e translúcido logo
substituiu os pesados utensílios de cerâmica, metal ou madeira até então
utilizados nas mesas européias. Ela foi batizada de porcellana pelos italianos,
devido à sua semelhança com a textura branca e lisa de uma concha conhecida
como porcella ("porquinha"), numa analogia de sua forma com o órgão
sexual da porca. No famoso relato do mercador e aventureiro Marco Polo, do
início do século 14, aparece o termo usado tanto para a louça, quanto para o
molusco.
CANÁRIO (de cão)
O pássaro canário, conhecido na Europa desde o século 16,
recebeu esse nome porque foi trazido das Ilhas Canárias, hoje pertencentes à
Espanha. No início da Era Cristã, Juba II, rei da Numídia (região que faz parte
da atual Argélia), fez uma expedição a essas ilhas, onde teve a surpresa de
encontrar numerosas matilhas de cães selvagens, de porte avantajado, levados
para lá por possíveis viajantes do norte da África. O fato o levou a chamar o
arquipélago de Canariae Insulae (em latim, "ilhas dos cães"), o que
faz com que a palavra "canário" seja da mesma raiz que
"canil" ou "canino".
CÍNICO (de cão)
Uma das mais controvertidas escolas filosóficas da Grécia
antiga era a dos cínicos, que desprezavam as aparências e as convenções sociais
e pregavam uma vida radicalmente simples e independente. Não há dúvida de que o
nome dessa escola vem do grego kyon, kynos ("cão"), embora haja duas
teorias diferentes para explicar essa origem. Uma a relaciona com o modo de
vida de Diógenes, o mais famoso seguidor dessa filosofia, que vivia ao ar
livre, comendo o que encontrava nas ruas e fazendo suas necessidades em qualquer
lugar; ele próprio se intitulava "o cão", e latia quando queria fazer
críticas a alguém. A outra teoria liga o nome ao ginásio denominado Cinosarges
("cão branco"), local onde lecionava Antístenes, o filósofo que
fundou a escola dos cínicos.
PISCINA (de peixe)
Os apreciadores de horóscopo não estarão equivocados se
enxergarem aqui uma derivada da palavra latina piscis ("peixe"), o
nome clássico do signo de Peixes, pois originariamente a piscina era apenas um
grande reservatório para a criação de peixes (que denominamos, não por acaso,
de "piscicultura"). Com a difusão dos famosos banhos públicos de
Roma, o vocábulo passou a designar os grandes tanques de água fria e quente em
que os patrícios nadavam.
MÚSCULO (de rato)
Vem do latim musculum, diminutivo de mus, muris
("rato"), a mesma fonte de onde proveio o famoso mouse do inglês e o
nosso "morcego" (de muris caecus, "rato cego", como os
antigos o chamavam). Esse estranho nome de "ratinho" foi adotado pelo
primitivos estudiosos de anatomia porque certos músculos, como os do braço e os
da perna, ao se contraírem sob a pele, dão a impressão do volume de um pequeno
rato que se move sob um pedaço de tecido.
Revista Mundo Estranho Edição 20/ 2003
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