O que existe nos arquivos dos militares
por Rogerio Schlegel
No ano passado, depois de ter consultado milhares de documentos, lido centenas de livros e entrevistado mais de cem pessoas para a biografia do guerrilheiro Carlos Marighella que está escrevendo, o jornalista Mário Magalhães tropeçou em uma foto inesperada: Virgílio Gomes da Silva, o Jonas, desaparecido durante a ditadura militar. Morto. A foto havia sido feita para acompanhar a autópsia do militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) e provava que tinha sido assassinado sob a guarda do Estado. Ao lado da foto, uma anotação informava que aqueles documentos não deveriam ser revelados. Perdida num mar de papel, nos Arquivo Público do Estado de São Paulo, Magalhães encontrou uma pista que pode ser decisiva para a localização do corpo de Jonas, 35 anos após sua morte.
O caso é exemplar, em vários sentidos, do que ainda pode ser descoberto nos arquivos da ditadura, que até hoje só foram parcialmente abertos. Mostra que a parte que já foi liberada à consulta ainda guarda segredos. Indica que houve ações intencionais para ocultar seu conteúdo. Prova que mesmo atos ilegais foram documentados. E demonstra que os arquivos podem ser fundamentais para a reconstituição do que ocorreu no período.
É verdade que, do ponto de vista macro, não se esperam grandes revelações históricas a partir dos documentos. Quem duvida que João Goulart foi derrubado por uma conspiração que uniu militares e civis? Como questionar as estatísticas do milagre econômico, se o brasileiro viu com seus próprios olhos a economia crescendo? Há algum sinal de fraude significativa que tenha minimizado a boa votação da oposição, no fim do regime? A enormidade de dados torna muito mais fácil escrever a história recente do que, por exemplo, recuperar como era a vida dos maias.
Ocorre que, no caso específico da ditadura militar instalada em 1964, as atividades clandestinas desempenharam papel relevante. À esquerda e à direita. A luta armada e a repressão foram centrais para a dinâmica dos acontecimentos políticos e sociais daqueles anos. Embora não se espere a revelação de, digamos, um holocausto de milhares de guerrilheiros até hoje ignorado, esse ponto específico da história ainda está para ser contado em detalhes.
Uma questão de interesse especial é como foram as decisões estratégicas do comando do regime nesse período. “Quem – e em que circunstâncias – determinou o extermínio dos guerrilheiros que combatiam no Araguaia?”, exemplifica Maria Aparecida Aquino, professora de história contemporânea da Universidade de São Paulo (USP). “Como foi articulada a Operação Bandeirante, que centralizava as operações em São Paulo?”, indaga a jornalista Rose Nogueira, do grupo Tortura Nunca Mais. Outro ponto: como era a colaboração da repressão brasileira com a de outras ditaduras latino-americanas, conhecida por Operação Condor?
Papel do comando
Pesquisas já revelaram que a cúpula do regime era no mínimo conivente com as torturas e mortes que aconteciam no porão. Bom exemplo disso é uma conversa gravada do general Ernesto Geisel, tida pouco antes de assumir a Presidência e divulgada pelo jornalista Elio Gaspari na série Ilusões Perdidas. Geisel ouve de um militar que depois seria seu ministro: “O negócio melhorou muito. Agora, melhorou, aqui entre nós, foi quando nós começamos a matar. Começamos a matar”. E Geisel, na resposta: “Esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser”.
A cadeia de comando, as decisões e as ações da repressão ainda precisam ser mais bem detalhados. Até para levar ao encontro dos corpos dos desaparecidos políticos – a causa mais nobre envolvida na abertura dos arquivos, em termos humanitários. Há cerca de 380 famílias que ainda procuram seu parente morto para enterrar como se deve.
À esquerda, também há o que desvendar. Ações propriamente terroristas, como o seqüestro de um avião da Cruzeiro do Sul, em 1970, são pouco conhecidas. Falta entender episódios como o do “Grupo dos 28 da Ilha”, um comando clandestino que treinou guerrilha em Cuba e, no Brasil, teve integrantes sistematicamente assassinados, sugerindo uma conexão cubana nas mortes. A descoberta do plano de Carlos Lamarca para fugir do Exército, em 1969, é atribuída a uma criança bisbilhoteira, mas ela nunca existiu, segundo o militante Pedro Lobo de Oliveira. Ele participou da ação e desconfia de delação. O assassinato de companheiros tidos como traidores é outro ponto obscuro. É só o começo. “Na Alemanha Oriental, o tempo revelou que pessoas que eram tidas como oposicionistas respeitáveis na verdade colaboravam com o regime”, observa Osvaldo Coggiola, professor de história contemporânea da USP. “Aqui ainda não sabemos nada sobre isso.”
Em outros países sul-americanos, a democratização foi diferente da nossa. Na Argentina e no Chile, houve julgamentos até de ex-presidentes, que cumpriram pena por violar direitos humanos e convenções internacionais – desde o final da Segunda Guerra, a tortura de prisioneiros, o assassinato de adversários políticos e o desrespeito ao corpo do inimigo são considerados crimes.
Nesses países, os arquivos da repressão foram abertos, e os militares chegaram a pedir desculpas pelos excessos. “Eles passaram a história a limpo”, resume a jornalista Glenda Mezarobba, que estuda as compensações que o Brasil deu às vítimas dos órgãos de segurança. O combate à subversão foi até mais duro nos vizinhos. Calcula-se que na Argentina desapareceram entre 15 mil e 20 mil opositores do regime. No Chile, a estimativa é de 3mil.
No Brasil, há sinais de que os documentos já liberados são uma gota no oceano. Foram basicamente os papéis dos Departamentos de Ordem Política e Social (Dops), que eram estaduais, e da Justiça Militar. Os centros de informações do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, muito ativos na repressão, não abriram seus arquivos. Tampouco os Destacamentos de Operações de Informações (DOIs) e os Centros de Operações de Defesa Interna (Codis). Ou o Conselho de Segurança Nacional (CSN) e a Comissão Geral de Investigação (CGI). No caso do Serviço Nacional de Informações (SNI), o acesso aos documentos é limitado.
É controverso se esses papéis ainda existem. As Forças Armadas, quando se manifestam, sinalizam que boa parte teria sido destruída – o que seria ilegal, pois há leis para o descarte de documentos oficiais, que incluem a elaboração de um laudo de destruição para cada peça. No início do ano, o programa Fantástico, da Rede Globo, mostrou imagens de papéis queimados recentemente na Base Aérea de Salvador, reascendendo a discussão. Outro ponto polêmico: nos arquivos que já foram abertos, há sinais de que algumas coisas inconvenientes desapareceram. “Passaram por um banho”, afirma o jornalista Mário Magalhães, referindo-se aos arquivos do Dops, conservados durante certo tempo pela Polícia Federal.
Governo Lula
O fato é que há, sim, o que abrir. A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) detém o acervo do SNI e admite oficialmente que dispõe de 3 milhões de documentos do extinto serviço de inteligência. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva também assume a existência dos arquivos do CSN e da CGI, que promete revelar, mas sem se comprometer com prazos.
Costuma-se discutir também as regras para a abertura dos documentos. Quando presidente, Fernando Henrique Cardoso sancionou decreto que estipulou em 50 anos o prazo para abertura de documentos classificados como ultra-secretos, renováveis por mais 50 anos. No ano passado, o governo Lula revogou a medida, estabelecendo a abertura dos ultra-secretos em 30 anos. Para os secretos, a data-limite é de 20 anos. Os confidenciais ficaram com dez anos e os reservados, com cinco. “Essa controvérsia acaba desviando a conversa do que realmente interessa: enfrentar o passado”, sustenta a historiadora Maria Aparecida Aquino. Seu raciocínio é cristalino: como a ditadura acabou há 20 anos, a sociedade tem direito a ver todos os documentos do regime, exceto os ultra-secretos, que são raros.
O governo Lula rateia. “A divulgação dos documentos deve estar vinculada à observância das restrições que asseguram, antes de tudo, a garantia de manutenção da segurança da sociedade e do Estado, além da inviolabilidade à intimidade da vida privada, da honra e da imagem das pessoas”, afirmou, em entrevista por e-mail, Mauro Marcelo de Lima e Silva, diretor-geral da Abin. “O direito individual ou coletivo de obter informações sigilosas não pode se transformar em ameaça à estabilidade das instituições fundamentais do Estado”, resume Lima e Silva.
A abertura dos arquivos não beneficiaria apenas quem esteja disposto a incriminar envolvidos na repressão ou na luta armada. Também não permitiria unicamente separar as responsabilidades individuais das que são coletivas, encerrando recriminações genéricas a grupos que atuaram no período, de um lado e de outro. Trata-se de escrever com precisão esse ponto da história brasileira, com todas as vantagens que conhecer o passado representa para o futuro.
Escreva você mesmo a história
Como ter acesso adocumentos do regime militar, em arquivos ou pela Internet
1) Arquivo Público do Estado
Em geral, os arquivos do Dops são guardados por instituições estaduais. Cada estado tem uma política diferente para lidar com o acervo, que inclui processos, fichas, fotos, laudos, panfletos e recortes de jornal. Em São Paulo (www.arquivoestado.sp.gov.br/), é possível consultar arquivos de terceiros desde que se assine um termo de responsabilidade. No Rio (www.aperj.rj.gov.br), só com autorização da pessoa a que se referem os papéis ou de sua família.
2) Arquivo Nacional
O acervo, composto principalmente de materiais administrativos e filmes do período da ditadura, só pode ser consultado pessoalmente. Fica no Rio de Janeiro, na rua Azeredo Coutinho, 77, Centro, tel. (21) 3806-6133.
3) Agência Brasileira de Inteligência (Abin)
Pelo site www.abin.gov.br é possível baixar um requerimento e solicitar uma certidão com as informações contidas nos arquivos do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI). Para pesquisar dados de terceiros, é preciso apresentar procuração.
4) FOIA (Freedom of Information Act)
Lei que garante acesso a documentos oficiais do governo dos Estados Unidos, permite pesquisar documentos até pela internet. Em alguns casos, pode ser necessário enviar requerimento ao órgão encarregado. Acesse para informações mais detalhadas: www.usdoj.gov
5) Outras fontes de pesquisa
http://www.desaparecidospoliticos.org.br/
Traz dados sobre mortos e desaparecidos políticos e material sobre episódios históricos, como a guerrilha do Araguaia e a Anistia.
www.torturanuncamais-rj.org.br
Site carioca do grupo Tortura Nunca Mais, permite pesquisar a lista de mortos e desaparecidos.
http://www.ternuma.com.br/
Site de grupo Terrorismo Nunca Mais, que defende o ponto de vista dos militares. Pesquisadores acreditam que, algumas vezes, suas versões são extraídas de documentos não divulgados.
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