terça-feira, 28 de dezembro de 2010

A Questão da Água na Mesopotâmia

Nelson Bacic Olic  
A expressão geopolítica da água designa as rivalidades políticas sobre a repartição e a exploração dos recursos hídricos. Tais rivalidades existem não somente entre países cujos territórios são atravessados por um mesmo rio, mas também no interior de um mesmo Estado, gerando tensões entre regiões que buscam tirar proveito dos recursos das bacias hidrográficas mais ou menos próximas.
As “rivalidades hidráulicas” se exacerbaram pela combinação de uma série de fatores: o expressivo incremento da população e das áreas irrigadas, o grande desperdício de água e o aumento da poluição dos mananciais. Contribuíram também os enormes avanços dos meios tecnológicos postos à disposição das sociedades pelas empresas de engenharia civil, que permitiram a realização de grandes obras, como barragens e canais, pelas quais se modificou sensivelmente os cursos dos rios e seus débitos.
No mundo atual, 260 bacias hidrográficas são reconhecidas como internacionais. As águas de 13 delas são utilizadas em conjunto por cinco ou mais países. Quase metade da população mundial vive numa bacia hidrográfica dividida entre dois ou mais países. Alguns exemplos: a bacia do Danúbio drena territórios de 11 Estados, a do Nilo banha 10, as do Níger e Congo, 11, e a do Amazonas, sete.
Existem zonas potencialmente hidroconflitivas em todos os continentes, mas elas apresentam situações mais dramáticas nas áreas onde a água é naturalmente escassa – isto é, em regiões áridas e semi-áridas. Um dos melhores exemplos são as tensões que se verificam na região da Mesopotâmia envolvendo as bacias dos rios Tigre e Eufrates, cujas águas são de grande interesse para Turquia, Síria e Iraque.
Os dois rios têm suas nascentes nas úmidas regiões montanhosas da Anatólia oriental, no sudeste da Turquia. O Tigre, ao deixar o território turco, atravessa o Iraque, enquanto o Eufrates cruza áreas do território sírio antes de drenar terras do Iraque. Pouco antes do estuário, no Golfo Pérsico, as águas de ambos os rios se juntam formando o canal de Chatt-el-Arab.
O curso dos rios tem implicações geopolíticas. A Turquia, que exerce soberania sobre o alto vale dos dois rios, beneficia-se de uma situação hídrica muito mais favorável que a de seus vizinhos situados a jusante. Dados sobre determinados usos desses rios iluminam alguns aspectos das questões hídricas que envolvem os três países.
A Turquia controla 98% do débito do Eufrates e 45% do débito do Tigre. Quanto à dependência de água, isto é, dos recursos hídricos gerados fora do país, os números indicam que a Síria possui um índice de 80%; o Iraque, de 53% e a Turquia, apenas 1%. Em relação ao uso da água no setor agrícola a Síria, com 95%, e o Iraque, com 92%, colocam-se bem acima da média mundial, que é de 70%. Já a Turquia, com 74% está próxima da média. A Síria é o país que mais usa água para produção hidrelétrica (41%), enquanto os números para a Turquia e Iraque são, respectivamente, 25% e 1%.
O Eufrates e seus afluentes são as principais fontes de água da Síria e neles está depositada a esperança do país de aumentar a produção de alimentos para sua crescente população. Mais de 80% da população do Iraque depende do uso da água dos dois rios. As reivindicações dos três países, praticamente incompatíveis, se tornam mais complicadas por conta de conflitos étnicos e reminiscências históricas.
Sírios e iraquianos reivindicam direitos ancestrais sobre os recursos hídricos. Os primeiros alegam que o Eufrates é um curso fluvial internacional e que as disputas que o envolvem deveriam ser negociadas internacionalmente. Os iraquianos, por sua vez, advogam os mesmo direitos que incluiriam a anterioridade do uso dos recursos hídricos, tomando como referência a longínqua civilização suméria.
Todavia, Síria e Iraque também têm problemas entre si no que diz respeito à partilha das águas do Eufrates. Um acordo de 1990 dividiu o fluxo do Eufrates, cabendo 53% aos iraquianos e 42% para os sírios, mas antes disso os dois países quase entraram em guerra pelo controle do recurso escasso. Entretanto, o fator que mais acirra essas disputas é o projeto turco de exploração econômica dos recursos hídricos regionais.
Nos anos 70, o governo turco elaborou uma política hidráulica ambiciosa, denominada Projeto da Grande Anatólia (PGA). Iniciado em 1989 e com previsão de conclusão em 2010, o PGA pretende mudar radicalmente a paisagem do sudeste da Turquia, incorporando ao país 1,7 milhão de hectares de terras irrigadas. São 13 projetos integrados – seis sobre o rio Tigre e sete sobre o Eufrates, 22 reservatórios de água e 19 centrais hidrelétricas. Para a Turquia, o PGA vai melhorar as condições de vida de cerca dos 5 milhões de habitantes que vivem naquela parte do país.
Apesar da importância econômica e social do PGA, não se deve perder de vista o seu lugar nas estratégias geopolíticas internas da Turquia. A região onde está sendo implementado o projeto é, historicamente, a base territorial da minoria curda, sobre a qual se assentam correntes políticas separatistas. As obras do PGA, especialmente a construção de barragens, servem como justificativas oficiais para desalojar populações curdas de suas áreas tradicionais. Ao mesmo tempo, a melhoria da infraestrutura viária estimula as migrações de turcos étnicos para a região curda.
Na Turquia, como na Mesopotâmia em geral, os cursos d’água e as fronteiras políticas configuram linhas incongruentes. Nesta incongruência encontram-se as sementes de conflitos presentes e futuros.

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