quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Moderados e Linhas - duras: do Mesmo Saco

Mais iguais do que diferentes
por Rodrigo Cavalcante
A maioria dos brasileiros não se deu conta do que aconteceu em Brasília naquela manhã de quarta-feira, 12 de outubro de 1977, feriado de Nossa Senhora Aparecida. Afinal, para quem não acompanhava de perto os bastidores do poder, a demissão do ministro do Exército, Sylvio Frota, aparentava ser apenas mais uma troca de cargos.
Não era.
Frota era um adversário explícito da política de abertura do presidente Ernesto Geisel e buscava o apoio dos militares da chamada linha dura para se tornar o futuro presidente. Se conquistasse seu objetivo, a distensão estaria comprometida. Ao demiti-lo, Geisel dava um xeque-mate no setor militar contrário à abertura. Como escreveu o jornalista Elio Gaspari, autor da série Ilusões Armadas, a demissão foi um passo decisivo para o desmantelamento do regime, abrindo caminho para a redemocratização. Dessa vez, os moderados teriam vencido. Em outras ocasiões, como na instituição do AI-5, prevalecera a vontade da linha dura. O destino do Brasil, mais uma vez, seria traçado a partir do confronto entre essas duas forças dentro do Exército. Mas até que ponto a história da ditadura pode ser contada a partir de uma sucessão de vitórias e derrotas entre militares classificados como moderados e linhas-duras?
Durante muito tempo, a maioria dos historiadores adotou um esquema simples e útil para explicar as idas e vindas do regime. Em 1964, o general Castello Branco assume o poder comprometido a fazer de seu governo um curto período de transição entre a deposição de Jango e um novo governo democrático. Em menos de dois anos, contudo, a pressão da linha dura teria feito o presidente mudar de planos. Contra sua vontade, Castello Branco decreta o AI-2, em outubro de 1965, fechando o Congresso e suspendendo as eleições. É o início do endurecimento do regime, que culminará com a ascensão à Presidência do general Costa e Silva, o mesmo que decretará o AI-5, considerado um “golpe dentro do golpe”. Estaria inaugurada a fase mais violenta da ditadura, que se arrastaria até o final do governo Medici. Finalmente, em 1974, Ernesto Geisel assume e, após avanços e recuos, consegue se desvencilhar de lideranças da linha dura que atravancavam a distensão. A demissão do ministro Sylvio Frota marcaria a vitória dos moderados. Depois dela, a ditadura teria vivido seu ocaso.
Diferenças têm sutilezas
Por mais que o esquema acima tenha sido útil para explicar as oscilações e disputas internas dos militares, pesquisadores estão revendo mitos que estariam embutidos nessa versão. “Hoje, sabemos que a própria classificação dos militares entre moderados e linhas-duras é uma simplificação”, diz o pesquisador Carlos Fico, autor de Além do Golpe: Versões e Controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Segundo Fico, uma análise mais apurada dos governos do período revela que as divergências na caserna eram muito mais sutis. “Tome-se como exemplo o governo Castello Branco”, diz Fico. “A imagem que foi cristalizada do primeiro general-presidente foi a de uma figura moderada, legalista. Mas um levantamento mais objetivo do seu governo revela que as coisas não foram bem assim.”
Segundo o pesquisador, mesmo que Castello Branco tenha tido uma postura mais moderada do que a de Costa e Silva, seu governo não foi marcado apenas pela moderação. “Ele fechou o Congresso, proibiu atividades políticas dos estudantes, decretou o AI-2 e foi conivente com a tortura que, ao contrário do que é costume afirmar, começou bem antes do AI-5”, diz o pesquisador. “Mesmo que Castello tenha compartilhado da visão de que os militares deveriam ter uma atuação mais moderada, não foi isso que aconteceu na prática.”
De acordo com Fico e outros pesquisadores, essa constatação mostra que o endurecimento do regime após 1968 não chegou a ser surpresa. “Os primeiros anos da ditadura revelam que a implementação do AI-5, por exemplo, foi muito mais o ponto culminante de uma série de medidas que já estavam sendo tomadas anteriormente do que um súbito golpe dentro do golpe”, diz Fico. “Apesar das tantas diferenças entre os governos militares, é inegável que havia também uma unidade, que permitiu que o regime sobrevivesse tantos anos.”
Dois ingredientes explicam essa coesão. O primeiro deles era a crença de que todas as divergências deveriam ser tratadas no interior da caserna, respeitando-se sempre a hierarquia militar. Até porque um dos motivos que teriam precipitado a deposição de João Goulart fora a afronta à hierarquia das Forças Armadas. Na prática, isso significava que, dali em diante, a indisciplina não seria mais tolerada e as diferenças não deveriam ultrapassar os muros dos quartéis. “Na maioria das vezes, o espírito de corpo falou mais alto do que as divergências entre radicais e moderados”, diz a historiadora Maria Celina d’Araújo, do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas. Segundo ela, isso explicaria, por exemplo, por que o presidente Castello Branco aceitou que a linha dura desse as cartas ainda no final de seu governo. “Para o general, a unidade, a modernização e o fortalecimento do Exército eram mais importantes.”
O segundo ingrediente responsável por essa coesão era a crença em pontos básicos da Doutrina de Segurança Nacional, formulada pela Escola Superior de Guerra (ESG). Mesmo que o real poder da ESG na época esteja sendo reavaliado atualmente pelos historiadores, nenhum militar poderia discordar, por exemplo, da necessidade de combater a ameaça comunista, um dos ideais mais caros aos “revolucionários”. A questão era como aplicar essas teses.
Sob a alegação de que se tratava de uma guerra, boa parte dos militares passou a ser tolerante com a violação de direitos humanos ao lidar com os inimigos do regime. Estava aberta a brecha para o avanço da tortura e dos assassinatos. A justificativa para o uso da violência na época lembra bastante o atual discurso de setores do governo Bush sobre o terrorismo: na luta contra um inimigo que não mostra a cara e está disposto a morrer pela causa, todos os meios parecem indispensáveis.
Anarquia militar
Não deixa de ser um paradoxo o fato de que o próprio presidente Geisel, responsável pela abertura do regime, tenha sido também tolerante com a tortura ainda durante o governo Castello Branco. Convocado para apurar denúncias de maus-tratos praticadas por militares no Nordeste, Geisel não chegou a indicar culpados. Em um depoimento dado aos professores Gláucio Ary Dillon Soares, Celso Castro e Maria Celina D’Araújo, Geisel reconhecera que achava “que a tortura, em certos casos torna-se necessária para se obter confissões”. Se Geisel e a maioria dos militares pensava assim, o que diferenciava ele e o general Golbery do Couto e Silva de militares como Sylvio Frota, que se opunham à abertura?
A maioria dos pesquisadores acredita que tanto Geisel como Golbery, chefe da Casa Civil e arquiteto da distensão, sabiam que em nome da repressão a ditadura havia criado uma verdadeira anarquia militar que nem sequer o presidente da República conseguia controlar. O próprio endurecimento do regime criou uma armadilha para o governo, fazendo com que os generais-presidentes passassem a ser encarados como meros delegados da revolução. Caso se desviassem dos “ideais revolucionários”, o presidente poderia ser deposto pelo comando do Exército.
Havia também o terrorismo de direita, sempre disposto a tumultuar a distensão, como se viu no caso Riocentro. Além disso, o ocaso do milagre econômico minava a popularidade do regime, sinalizando que talvez fosse hora de os militares buscarem uma saída honrosa, antes que fossem enxotados pela porta dos fundos.
Como diz o jornalista Elio Gaspari, a demissão do ministro Sylvio Frota, apesar de ter sido obra de um presidente-general, significou o fim de uma época em que o presidente da República era apenas um representante da vontade militar. Dali em diante, as disputas na caserna continuaram. Mas certamente sem a mesma relevância para o destino do país.
No meio do caminho tinha uma bomba
Atentado preparado para o Riocentro gera morte de radical e silêncio do governo
Os terroristas estavam animados: no estacionamento do Centro de Convenções Riocentro, no Rio, milhares de jovens se preparavam para assistir, em 30 de abril de 1981, a um show em homenagem ao Dia do Trabalho, com grandes nomes da MPB, muitos deles simpatizantes da esquerda. Em poucas horas, bombas causariam pânico e mortes no meio da multidão.
Só que uma das bombas explodiu antes da hora, no automóvel em que estava sendo transportada. Dentro do Puma, estavam o capitão do Exército Wilson Machado e o sargento Guilherme do Rosário. A explosão feriu o capitão, matou o sargento e desencadeou uma das últimas crises do regime militar. A versão oficial divulgada já no dia do enterro do sargento era de que os militares haviam sido “vítimas de um atentado”. Essa narrativa seria corroborada mais tarde por um Inquérito Policial Militar, montado para sustentar a versão inconsistente dos fatos. O governo sabia que o atentado do Riocentro era obra da ala mais truculenta do Exército, formada por militares que praticavam atentados terroristas com o objetivo de tumultuar o processo de abertura do regime. Antes do Riocentro, bombas já haviam sido explodidas em jornais de oposição, na Câmara Municipal do Rio e dentro de uma carta ao presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que matou uma secretária. O governo Figueiredo, contudo, parecia não querer descontentar os militares que apoiavam os atentados e deixou que as investigações continuassem sendo obstruídas. Um laudo da autópsia do sargento morto chegou a ser confiscado pelo Exército. Enquanto isso, líderes do Congresso protestavam contra o silêncio do governo, temendo que aquilo fosse um sinal de que a abertura estava ameaçada.
Dentro do governo, a única autoridade que parecia empenhada em garantir que o inquérito do atentado fosse conduzido de maneira honesta era o general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil. Trabalhando nos bastidores, ele logo se viu isolado dentro do palácio, o que teria precipitado seu pedido de demissão do cargo, em agosto de 1981.
De certa forma, a farsa em torno das investigações revelou, mais uma vez, que a linha que separava o governo dos radicais de direita era tênue. Na época, fez-se uma espécie de acordo: o governo prometia que a investigação não ia dar em nada, e os radicais garantiam brecar o ímpeto terrorista dos colegas. O caminho para a abertura estava livre. Desde que ninguém quisesse remexer nesse passado.

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