Nelson Bacic Olic
Os únicos países da América do Sul (e de todo o continente americano) privados de acesso direto ao mar são o Paraguai e a Bolívia. Enquanto o Paraguai sempre foi uma nação continental, a Bolívia perdeu a estratégica saída para o Pacífico após uma guerra contra o Chile. Essa desvantagem geográfica torna-os dependentes de seus vizinhos para exportar e importar mercadorias.
Paraguai e Bolívia possuem ainda em comum terras drenadas pela Bacia do Prata, formada pelos rios Uruguai, Paraguai e Paraná. Durante muito tempo essa foi a via exclusiva de ligação desses países com o Oceano Atlântico, o que favoreceu a Argentina e sua capital, Buenos Aires, situada no Estuário do Prata, “ponto final” da bacia.
A Bolívia é apenas em parte uma nação platina. Isso porque seu território situa-se na intersecção de três grandes unidades fisiográficas da América do Sul: além de terras platinas, a Bolívia é também cortada pela cordilheira dos Andes e tem parcela considerável de seu território drenado por rios pertencentes à bacia Amazônica. Essa localização peculiar confere ao país um papel fundamental em qualquer projeto de integração regional – seja entre os Andes e o Pacífico ou, eventualmente, entre as bacias Platina e Amazônica.
A Bolívia não encontrou uma saída para a crise econômica e política em que há muito tempo vive. Se a fase negra de golpes de estado e ditaduras militares ficou para trás, a deterioração da economia e o aumento das tensões sociais são atualmente problemas de primeira ordem.
A Bolívia é o país mais indígena e o mais pobre da América do Sul. Seus indicadores sociais são similares ao de países da África Subsaariana. Os povos quíchuas, aimarás e guaranis correspondem a cerca de 60% da população, mas seu peso demográfico é inversamente proporcional à posição que ocupam na sociedade. Os "espanhóis", brancos, cerca de 15% da população sempre tiveram o poder político e econômico em suas mãos. O restante da população é composto por mestiços
Marginalizados do poder e da economia, os ameríndios bolivianos formam o contingente de miseráveis que confere à Bolívia a colocação mais baixa do cone sul no que diz respeito ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) indicador econômico-social utilizado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Nos últimos anos as condições se deterioraram a tal ponto que essa massa de esquecidos decidiu mostrar a cara em violentos protestos contra governo. Mesmo antes dos acontecimentos recentes, em fevereiro de 2003, mais de 30 pessoas morreram durante um levante em La Paz (a capital) contra o projeto de um novo imposto sobre os salários de baixa renda.
Folhas de coca, gás e saída para o Pacífico
É impossível compreender a crise boliviana sem levar em conta o plano de combate ao cultivo da coca, a planta usada na produção da cocaína. Até meados da década de 1990, a Bolívia era o segundo maior produtor mundial da folha de coca. A renda obtida com a venda das colheitas aos narcotraficantes garantiu, por muito tempo, o sustento de milhares de indígenas. Mas o dinheiro explica apenas em parte sua importância para o povo boliviano. Há séculos, a folha de coca é usada tradicionalmente em chás e medicamentos e é mascada para aliviar os efeitos da altitude.
Embora a erradicação tenha começado em meados da década de 1980, sob pressão e patrocínio dos Estados Unidos, foi apenas a partir de 1997, que o programa deslanchou de fato. Em 2000, o governo anunciou a destruição quase completa das plantações.
O sucesso da estratégia foi desastroso para os "cocaleros", denominação dada aos produtores da folha de coca. De uma hora para a outra, viram-se sem meios de subsistência já que, até o momento, o projeto de substituição de culturas não alcançou os resultados esperados.
Nos últimos anos, os protestos dos camponeses tornaram-se rotina no país, com freqüentes bloqueios de estradas. A força do movimento ficou evidente nas eleições presidenciais de 2002 que, para a surpresa geral, levaram ao segundo turno o líder indígena e cocalero, Evo Morales.
Na votação indireta, mais uma vez a elite ditou as cartas e o Congresso escolheu para o cargo o conservador e ex-presidente, Gonzalo Sánchez de Lozada. Ainda assim, o partido de Morales, o Movimento ao Socialismo (MAS), conquistou 35 assentos no novo Congresso (Câmara dos Deputados e Senado). A expressiva bancada indígena marcou a renovação histórica do poder legislativo boliviano.
A erradicação não prejudicou apenas os cocaleros. Ao combater o narcotráfico, o governo mexeu num dos pilares da precária economia boliviana. O dinheiro obtido com a venda da folha de coca estimulava outras atividades produtivas, sobretudo no setor informal. Em 1999, o desempenho do PIB boliviano chegou perto de zero e desde então o país não consegue mais crescer como antes, quando a média anual entre 1990 e 1999 superou os 4%.
Agressivos esforços de exploração levaram à descoberta recente de enormes campos de gás natural na Bolívia. Essas descobertas praticamente quintuplicaram a produção de gás do país. Especialistas avaliam que o país tem potencial para se tornar um importante fornecedor de gás para o Cone Sul, assim como para o México e os Estados Unidos. O governo boliviano, por sua vez, deposita todas as esperanças no sucesso da exploração e exportação dessa riqueza, vista como a saída para a crise e passaporte para o desenvolvimento. Até o momento, porém, os resultados são insatisfatórios. O crescimento da oferta tem sido superior ao da demanda e a produção vem caindo desde 1999.
As exportações para o Brasil ganharam impulso após a inauguração, em 1999, do gasoduto Brasil-Bolívia. Com uma extensão de 3.150 quilômetros, liga a cidade de Rio Grande (Bolívia) a Porto Alegre (Brasil), passando por São Paulo. Mas o mega-projeto – o maior do setor privado em infra-estrutura na América do Sul - operava com apenas um terço da sua capacidade em 2002 e os dois países negociavam formas de estreitar a parceria.
Outra obra é vista como crucial pelo governo boliviano para aumentar as vendas de gás para o exterior, especialmente para o estado norte-americano da Califórnia. Trata-se do gasoduto que ligará o campo de Margarita (sul do país) ao Oceano Pacífico. O destino final do gasoduto está causando enorme polêmica já que existem duas alternativas: Chile ou Peru.
Há grande oposição a qualquer acordo com o Chile pois a Bolívia exige de volta sua saída para o mar, perdida para os chilenos no século XIX. Já o consórcio que irá construir o gasoduto – chamado LNG Pacífico e formado pelas principais multinacionais presentes na Bolívia – prefere o traçado pelo território chileno, por ser mais curto.
A Bolívia perdeu parcela considerável de seu território original nos séculos XIX e XX em função de conflitos e acordos com seus vizinhos sul-americanos. Quando conquistou a independência, o país tinha cerca de 2,3 milhões de quilômetros quadrados. Atualmente, a área total do país não chega a 1,1 milhão de quilômetros quadrados.
O desmembramento mais dramático aconteceu na Guerra do Pacífico (1879-1884) quando a Bolívia se uniu ao Peru contra o Chile em um conflito que terminou com a vitória chilena. Em conseqüência, a Bolívia perdeu para os chilenos o território do Atacama, uma região desértica e rica em minerais que garantia ao país o acesso ao Oceano Pacífico.
Os bolivianos ainda não deram por encerrado seu litígio com o Chile e, até hoje, reclamam uma saída para o mar. No início do século XX, o país perdeu para o Brasil o território rico em borracha que corresponde ao atual estado do Acre. Na década de 1930, num novo conflito, desta vez com o Paraguai, os bolivianos perderam parte da região do Chaco.
A recente crise que levou à renúncia do presidente Gonzalo Lozada resultou da combinação de persistentes (e ainda não resolvidos) fatores econômicos, políticos, sociais, culturais e geopolíticos. Dentre eles, o sentimento das perdas territoriais (especialmente a da saída marítima) está historicamente entranhado no coração e nas mentes do povo boliviano.
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