Nelson Bacic Olic
Os desdobramentos dos atentados de 11 de setembro fizeram que o mundo todo passasse a se interessar e olhar com maior atenção para o chamado mundo ou civilização islâmica. Conceitualmente, as civilizações correspondem a agrupamentos humanos que vão muito além de outros agrupamentos como povos e sociedades. As civilizações abrangem vários Estados, às vezes separados por rivalidades, mas cujos povos compartilham de heranças e tradições comuns, fato que lhes conferem uma identidade cultural. São as mais duradouras das associações humanas.
As civilizações não possuem fronteiras estáticas e, embora não sejam entidades políticas, podem conter em seu interior diversas unidades políticas. Os povos que as compõem podem redefinir suas identidades e, com isso, alterar a composição e os limites da civilização. Diferentemente dos impérios e dos Estados em geral. elas sobrevivem às convulsões políticas, sociais e econômicas. Elas existirão por mais tempo se permanecerem certas idéias fundamentais, em torno das quais gerações sucessivas se identificam.
A área abrangida pela civilização islâmica, muçulmana ou maometana corresponde a todos os países do Oriente Médio (á exceção de Israel), África do Norte, parcelas significativas do subcontinente indiano, da Ásia Central, (inclusive o noroeste da China, região do Xinjiang Uigur) e do Sudeste Asiático (Indonésia e Malásia principalmente). Além disso, a sua influência se projeta até alguns espaços da África Subsaariana e do sudeste da Europa, na área da península Balcânica, especialmente na Bósnia, Albânia e Kosovo. Contudo, as áreas nucleares correspondem ao Oriente Médio e África do Norte.
O elemento central dessa civilização é a religião islâmica que, inclusive, identifica a própria entidade cultural. Apesar de a civilização muçulmana ter se originado no mundo árabe, mais especificamente na península Arábica, ela vai muito além dos seus limites.
Fundado no século VII por Maomé, em territórios que hoje correspondem à Arábia Saudita, onde estão as cidades santas de Meca e Medina, o Islamismo se expandiu rapidamente num processo de conquista e domínio de outros povos.
A concepção do islamismo como uma comunidade religiosa e política fez com que no passado, os Estados-núcleos tivessem surgido apenas quando a liderança política e religiosa se combinavam numa só instituição governante. A conquista árabe do Oriente Médio e África do Norte, no século VII, se deu com a formação do Califado Omíada; no século seguinte, como Califado Abássida; e com Califados secundários (Cairo e Córdoba), no século X. Cerca de quatro séculos mais tarde, os otomanos – depois de terem conquistado amplas áreas do Oriente Médio e de tomarem Constantinopla em 1453 – estabeleceram um novo Califado. O domínio de áreas extensas do mundo muçulmano, inclusive aquelas de origem da religião, qualificaram o Império Otomano como o Estado-núcleo do Islã.
A expansão da civilização ocidental européia, especialmente a partir do século XVI, foi erodindo lentamente as bases de sustentação otomana. Mais tarde, já no início do século XX, quando a República da Turquia veio a substituir o desintegrado Império Otomano, o Islã deixou de ter um Estado-núcleo.
No Oriente Médio, os territórios perdidos pelos otomanos, em função dos acordos implementados ao final da Primeira Guerra Mundial, foram divididos e passaram a integrar os domínios coloniais da Grã-Bretanha e da França. As fronteiras artificiais criadas pelas potências européias vencedoras do conflito geraram, nas décadas posteriores, Estados frágeis, idealizados segundo modelos ocidentais, estranhos às tradições islâmicas. Essa circunstância contribuiu para que nenhum país tivesse poder, legitimidade cultural ou religiosa para assumir o papel de Estado-núcleo da civilização islâmica.
Nos últimos quarenta anos, alguns Estados islâmicos têm tentado se apresentar como eventuais líderes desse grupo, que atualmente congrega quase um terço dos países do mundo (a Liga Muçulmana é formada por quase 60 Estados). Os países que nesse período tentaram se apresentar para desempenhar esse papel foram o Egito, o Paquistão, a Arábia Saudita, o Irã e a Turquia. Todavia, nenhum deles, pelo menos até agora, reuniu as condições geopolíticas para exercer a liderança sobre o mundo islâmico.
Os egípcios têm a seu favor o fato de serem árabes, com expressiva população, localizado nas proximidades do berço do Islamismo e de ocuparem posição geográfica estratégica. O Egito constitui área de contato entre a África do Norte e o Oriente Médio e controla o Canal de Suez. Contudo, pesam negativamente a sua pobreza, as grandes desigualdades sociais, a dependência econômica e militar tanto dos países árabes ricos em petróleo quanto do Ocidente. Os Estados Unidos consideram o Egito um dos seus aliados mais importantes e confiáveis no mundo árabe-muçulmano e, por isso, o regime egípcio é olhado com desconfiança tanto por setores de sua própria sociedade quanto por vários países islâmicos.
O Paquistão apresenta, como condições favoráveis, expressivo contingente populacional e o fato de seus dirigentes terem sistematicamente reivindicado o papel de promotores da cooperação entre os Estados islâmicos. Todavia, assim como o Egito é um país ainda muito pobre. Além disso, exibe graves divisões étnicas internas e uma rivalidade permanente com a Índia, que o conduziu a desenvolver relações especiais com potências não muçulmanas, como os Estados Unidos e a China.
A Arábia Saudita, espaço de origem da religião islâmica, detém as maiores reservas petrolíferas mundiais. Além disso, a ação internacional do regime saudita – apoiando causas muçulmanas tão díspares como o fornecimento de ajuda para a construção de mesquitas e implementação de escolas religiosas na África Subsaariana e o financiamento de grupos extremistas islâmicos – conferiu um certo prestígio a esse reino quase feudal do Golfo Pérsico. Entretanto, a sua pequena população e a sua vulnerabilidade geográfica fazem com que dependa do Ocidente, especialmente dos Estados Unidos, para a sua segurança contra os inimigos internos (a minoria xiita) e os externos (Iraque e Irã).
O Irã apresenta significativa extensão territorial e população, importantes tradições histórico-culturais e viabilidade econômica, em função de suas vastas reservas de petróleo. Mas a população iraniana é persa, não árabe, e majoritariamente xiita, enquanto a maior parte dos muçulmanos do mundo, cerca de 80%, é sunita. Depois que os fundamentalistas islâmicos chegaram ao poder no Irã, em 1979, as exortações radicais de seu clero no sentido de expandir a revolução religiosa assustaram e geraram desconfianças entre os regimes políticos da maioria dos países muçulmanos.
Finalmente, a Turquia é a herdeira do antigo Império Otomano, Estado-núcleo da civilização islâmica durante séculos. Além disso, é o único país a manter amplos vínculos com muçulmanos dos Bálcãs (Bósnia, Albânia), do Oriente Médio e da África do Norte e das antigas repúblicas soviéticas da Ásia Central.
Porém a Turquia desenvolve profunda cooperação político-militar com o Ocidente, participando a mais de cinqüenta anos da OTAN e almejando há décadas fazer parte da União Européia. Além disso uma hipotética liderança turca tem contra si as suas opções políticas originais. No final da Primeira Guerra Mundial, quando a República turca foi criada em substituição ao Império Otomano que acabara de se desintegrar, o líder dessa transição, Mustafá Kemal Ataturk, conferiu caráter secular ao novo Estado, separando nitidamente o poder político do poder religioso. Assim como Ataturk naquela época, a maior parte da elite turca atualmente gostaria de ver apagadas as marcas do passado otomano e muçulmano, promovendo a integração do país ao Ocidente.
Apesar de tudo, e independentemente do país que venha a liderar o mundo islâmico, ou da ausência perene de um Estado-núcleo, a civilização islâmica constitui hoje, mais do que nunca, um enorme desafio ao conjunto de idéias, valores e práticas políticas defendidas pela chamada civilização ocidental.
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