Em 29 de novembro de 1947, um dia após a votação da Partilha da Palestina pelas Nações Unidas, o colono judeu Ehud Avriel foi convocado a comparecer diante da Agência Judaica, organização que representava os judeus da Palestina, antes da criação de Israel. Ele foi recebido por um homem robusto, de cabelos desgrenhados e grisalhos. Seu nome era Davi Ben Gurion, o líder supremo dos sionistas. Nascido na Polônia, ele fugira do anti-semitismo e dos pogroms (perseguição em massa) europeus em 1909, migrando para a Terra Santa. Lá, com seu carisma e liderança, tornou-se a encarnação viva da causa sionista. “Daqui a seis meses, declararemos a independência de Israel. Nesse mesmo dia, cinco exércitos árabes nos atacarão”, previu Ben Gurion, com incrível exatidão. “Se não conseguirmos obter armas com a máxima urgência, seremos aniquilados.” Em seguida, o chefe da Agência Judaica encarregou o correligionário de uma missão crucial: viajar à Europa para contrabandear armamentos. Avriel assentiu. No dia seguinte, pegou um avião para Genebra com uma lista quilométrica para comerciantes do mercado negro: 1 milhão de balas, mil metralhadoras e 1,5 mil submetralhadoras.
Ben Gurion, cujos talentos de estrategista tornariam-se mitológicos, sabia que os árabes não aceitariam a Partilha. Também sabia que as táticas de guerrilha da milícia clandestina sionista (o Hagannah) não seriam suficientes para deter os inimigos. Entre 1947 e 1948, Ben Gurion contrabandeou toneladas de armas, principalmente da Tchecoslováquia, e incorporou ao Hagannah dois grupos militantes radicais – o Irgun e a Gangue Stern. Nascia assim a FDI – Forças de Defesas Israelenses, que na época contava com pouco mais de 20 mil soldados.RIFLES ENFERRUJADOS
Ao contrário dos sionistas, os palestinos tinham uma organização mínima. Sua espinha dorsal fora quebrada em 1936, quando uma grande rebelião contra o domínio britânico e a imigração judaica foi esmagada pelas forças conjuntas dos britânicos e das milícias sionistas – com um saldo de 5 mil árabes e 400 judeus mortos. Sem nenhuma liderança forte, empunhando rifles enferrujados e com apenas 2,5 mil soldados de verdade, eles eram a menor das preocupações para os generais israelenses. O verdadeiro desafio vinha dos países árabes vizinhos, cujos exércitos somavam mais de 25 mil homens com armas modernas, vendidas principalmente pela Grã-Bretanha.
Foi Ben Gurion quem leu a Declaração de Independência de Israel, em Tel-Aviv, na ensolarada tarde de 14 de maio de 1948, diante de uma multidão em êxtase. Foi também ele quem comandou a guerra contra o rei Abdullah da Jordânia e seus aliados árabes, que na manhã seguinte bombardearam Tel-Aviv e atravessaram as recém-traçadas fronteiras do país.
O conflito que se seguiu foi um triste prenúncio do que estava por vir nas próximas décadas. Ambos os lados atacaram a população civil, com pesadas baixas. De acordo com o historiador Mitchell Bard, mais de 6 mil judeus foram mortos nos meses seguintes, entre soldados e não- combatentes – 1% da população total.
Israel não ficou atrás no que diz respeito a crimes de guerra. Segundo historiadores como o brasileiro André Gattaz e o israelense Avi Shaim, grupos armados caíram com fúria sobre a população árabe palestina, num banho de sangue que varreu do mapa centenas de vilarejos. A chacina mais famosa ocorreu em Deir Yassin, a poucos quilômetros de Jerusalém – um evento que se tornou emblemático para a resistência palestina (leia no quadro abaixo). A maior parte da população árabe em grandes cidades, como Haifa e Jaffa – que hoje é um subúrbio de Tel-Aviv – fugiu ou foi expulsa. “Por prudência, por pânico e por causa da política deliberada do Exército israelense, quase dois terços dos palestinos deixaram suas casas e tornaram-se refugiados”, escreve o historiador britânico de origem libanesa Albert Hourani, no clássico Uma História dos Povos Árabes (Companhia das Letras, 2006). De 500 mil a 900 mil árabes, entre cristãos e muçulmanos, foram para o exílio, de acordo com estudos das Nações Unidas. Milhares de judeus também foram violentamente expulsos de países árabes.
Apesar da superioridade numérica, os exércitos anti- sionistas tinham uma desvantagem que até hoje assola o mundo árabe: a desunião interna. Intrigas, desavenças e crises de ciúmes entre os chefes mergulharam a campanha na anarquia. Já os sionistas mantiveram-se unidos sob a mão férrea de Ben Gurion – que se tornou primeiro-ministro de Israel em 1948 – e destroçaram os cincos exércitos inimigos em cerca de oito meses. O conflito, que hoje é lembrado pelos israelenses como a Guerra da Independência, acabou em julho de 1949, com uma série de armistícios humilhantes assinados por quase todos os países árabes envolvidos. Os combatentes guardaram suas facas e metralhadoras, mas não trancaram a porta da caserna: o segundo round poderia começar a qualquer instante.
EXPANSÃO ISRAELENSE
A Palestina, agora, tinha uma cara completamente transformada. A Partilha, acertada pela ONU, dois anos antes, foi para o espaço: entre 1947 e 1949, Israel não se limitou a defender suas fronteiras, avançando sobre território alheio. Se antes os israelenses controlavam 55% da região, a fatia crescera agora para mais de 75% .
Fora de Israel, sobraram apenas dois pedacinhos de terra palestina – que até hoje compõem um mantra eternamente repetido nas manchetes de jornais, nos tratados de paz, nas resoluções da ONU, nos brados dos radicais e nas preces dos moderados: a Faixa de Gaza, que fica no litoral do Mediterrâneo, a sudoeste de Israel, e a Cisjordânia, na fronteira oriental. O destino e o status desses territórios, que juntos não chegam a formar 10 mil quilômetros quadrados, continuam no olho do furacão do Oriente Médio. Na época, as duas fatias de terra foram anexadas por vizinhos árabes que, teoricamente, tinham entrado na guerra para garantir os direitos dos palestinos. O Egito ficou com a Faixa de Gaza. O rei jordaniano Abdullah abocanhou a Cisjordânia e a parte oriental de Jerusalém – onde se encontram dois dos maiores santuários do Islã, a Mesquita de Al-Aqsa e o Domo da Rocha. A ONU abençoou as novas fronteiras e o mundo respirou aliviado. Menos os palestinos – que ficaram com nada.
Hebron, o primeiro massacre
Plantada no alto de uma região montanhosa e cercada de vinhedos, a cidade de Hebron fica a cerca de 40 quilômetros de Jerusalém. Seu nome – que em árabe é Al-Khalil – deriva da palavra “amigo”, em hebraico. No início do século 20, o lugar até que fazia jus à denominação: uma comunidade de 800 judeus, cujos ancestrais estavam lá havia séculos, vivia em relativa paz com milhares de vizinhos árabes. Isso começou a mudar com a chegada de imigrantes hebreus vindos da Europa, conhecidos como ashkenazis. Os árabes viam-nos como invasores colonialistas dispostos a usurpar suas terras. A tensão chegou a níveis insuportáveis em 1929, quando se espalhou o falso boato de que alguns árabes haviam sido assassinados por judeus de origem européia. Surtos de violência pipocaram em diversas partes da região, mas foi entre as colinas de Hebron que ocorreu o primeiro de uma fúnebre série de massacres que ensanguentaram a Terra Santa.
O ESTOPIM DO CONFLITO
No dia 23 de agosto, jovens árabes apedrejaram e esfaquearam um estudante judeu ashkenazi que acabava de sair da escola. Assustados, os hebreus de origem européia refugiaram-se na casa do rabino local. No dia seguinte, uma multidão de árabes armados de porretes, facas e machados cercou o local e exigiu que os “europeus” fossem entregues. O rabino recusou-se e o ataque teve início.
A turba enlouquecida trucidou 67 judeus – incluindo crianças, velhos e mulheres. Estupros e mutilações multiplicavam-se em meio a portas arrombadas e casas saqueadas. O massacre só não foi maior porque cerca de 20 famílias árabes arriscaram as próprias vidas para esconder e salvar seus vizinhos judeus.
O efeito do massacre de Hebron foi o aumento da militarização dos colonos judeus. O Haganah era até então um grupo mal- organizado – depois de 1929, seus militantes passaram por treinamentos, compraram armas e transformaram-se em uma tropa de elite. Foi a semente do exército israelense, hoje um dos mais temidos no mundo.
Horror em Deir Yassin
Deir Yassin era um típico vilarejo árabe, com pouco mais de mil habitantes, a dois quilômetros de Jerusalém. Antes da guerra de 1948, o muktar – chefe de aldeia, em árabe – firmou um pacto de não-agressão com as milícias sionistas e com os assentamentos judaicos. Quando estourou o conflito, ele não permitiu que os exércitos árabes usassem o local como base militar. Para todos os efeitos, era uma aldeia neutra. O problema é que Deir Yassin ficava entre Jerusalém e Tel-Aviv – uma posição estratégica para os sionistas. Os radicais do lado israelense decidiram que ela devia ser varrida do mapa.
Sem perdão
No dia 19 de agosto de 1948, uma tropa de assalto sionista atacou Deir Yassin de surpresa. Reunia membros do Haganah – a força militar “oficial” de Israel – e de dois grupos extremistas, o Irgun e a Gangue Stern. A aldeia foi tomada rapidamente, quase sem derramamento de sangue. Com a vitória, o pelotão do Haganah retirou-se. Os prisioneiros ficaram à mercê dos milicianos radicais, e o que se seguiu foi pura barbárie. Os soldados do Irgun e da Gangue Stern destroçaram os casebres e metralharam sem distinção todos os que viam pela frente. Jovens, velhas e crianças foram estupradas e mutiladas. Cerca de 250 civis foram chacinados e seus corpos, lançados dentro de um poço. A matança só parou quando colonos judeus do assentamento de Givat Shaul, vizinho a Deir Yassin, chegaram ao local e intercederam pelos prisioneiros. Um vislumbre de piedade em um inferno de intolerância.
Cidadãos de lugar nenhum
Ao fugirem da Palestina durante o estabelecimento do Estado de Israel, muitos árabes cristãos e muçulmanos esperavam voltar em breve para casa. Por isso, tiveram o cuidado de trancar as portas antes de partir. Foi em vão, já que nenhum dos refugiados da primeira guerra entre árabes e judeus retornou. Suas terras foram desapropriadas e muitas aldeias sumiram do mapa. Em 1950, o total de refugiados registrados pela ONU passava de 900 mil. Dentro de Israel, sobraram 150 mil árabes, dos quais mais 20% tiveram de sair de suas terra e tornaram-se “refugiados internos”.
A situação dos judeus que habitavam países árabes também se tornava insuportável. A maioria fugiu ou foi enxotada, dando origem a um êxodo semelhante ao dos refugiados palestinos: mais 900 mil pessoas. O problema dos refugiados judeus teve solução relativamente rápida: a maioria foi absorvida por Israel. Já o drama dos palestinos continua. Hoje, eles e seus descendentes somam mais de 4 milhões de refugiados – o equivalente à população do Uruguai. A maioria vive em acampamentos entupidos de gente sob administração da ONU, espalhados pela Síria, Líbano e Jordânia. O retorno dos refugiados é uma das exigências dos palestinos em qualquer negociação de paz. E é também um dos pontos em que os israelenses são mais inflexíveis. Israel é um país pequeno, argumentam eles, e não há espaço para um Uruguai inteiro – ainda por cima, um Uruguai de inimigos em potencial.
Revista Aventuras na História n° 014
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