domingo, 26 de dezembro de 2010

A Complexa Realidade Histórico-Geográfico da Cachemira

Nelson Bacic Olic  
Uma das áreas mais problemáticas do mundo atual é o subcontinente indiano. Dentre as várias tensões geopolíticas ali existentes, a que chama mais a atenção é aquela que opõe a Índia ao Paquistão, Nas últimas décadas, as tensões entre esses dois Estados adquiriram dimensões mais perigosas dado ao fato de que ambos os países já possuem o acesso a armas nucleares.
Um dos pontos centrais das rivalidades entre indianos e paquistaneses é a disputa pela Cachemira, região que já foi palco de confrontos entre os dois países em vários momentos desde que ambos conseguiram se libertar do jugo colonial britânico em 1947.
A Cachemira é uma região histórico-geográfica cujos limites não são muito precisos e que se situa no contato entre a Ásia Central fundamentalmente muçulmana e os mundos indiano e chinês. Com um território de aproximadamente 220 mil km2 (pouco menor que o estado de São Paulo), abriga pouco mais de 10 milhões de habitantes e está dividida entre Índia, Paquistão e China. Na prática, ela é constituída por um conjunto heterogêneo de seis entidades bem distintas, no interior das quais as realidades políticas, étnicas, religiosas e lingüísticas são bastante variadas.
A chamada Cachemira “indiana” corresponde ao estado de Jamu-Cachemira, tem pouco mais de 100 mil km2, uma população de aproximadamente 6,5 milhões e é o único estado da Índia onde a maioria da população, cerca de 85%, é constituída por muçulmanos. Desde o final da década de 1980, a região tem sido palco de movimentos separatistas particularmente violentos.
Essa parte da Cachemira pode ser dividida em três regiões distintas. A primeira delas corresponde ao vale do rio Jhelum, núcleo histórico da Cachemira, onde se localiza a cidade de Srinagar, sua capital e principal núcleo urbano. A população dessa área é estimada em 3 milhões e os muçulmanos de rito sunita, correspondem a mais de 90% do efetivo populacional regional.
A segunda é a região de Jamu, situada na parte meridional da Cachemira, vizinha ao estado indiano do Punjab. É uma área nos contrafortes do Himalaia, povoada por quase 3 milhões de pessoas, das quais 2/3 aproximadamente professam o hinduísmo. A terceira área da Cachemira indiana é conhecida como Ladakh e corresponde a uma região muito acidentada, fracamente povoada (cerca de 150 mil habitantes), cujos habitantes, em sua maioria, são de cultura tibetana que professam o budismo. Existe ainda nessa área uma significativa minoria muçulmana.
A Cachemira sob o controle do Paquistão possui cerca de 78 mil km2, é habitada por quase 3,5 milhões de pessoas e compreende duas regiões distintas. A primeira delas corresponde aos Territórios do Norte, administrada diretamente pelo governo federal e é formada pelas áreas de Gilgit e Baltistão. Nesta parte paquistanesa da Cachemira vivem cerca de 600 mil pessoas, a maioria formada por muçulmanos de rito xiita.

A segunda área da Cachemira paquistanesa é conhecida como Azad Cachemir (Cachemira Livre), possui uma extensão de 13 mil km2 e uma população pouco inferior a 3 milhões de pessoas, em sua maior parte muçulmanos xiitas. Ela tem uma condição político-administrativa muito peculiar: dispõe de uma Constituição e parlamento próprios, é dirigida por um Primeiro Ministro e beneficia-se de uma autonomia relativa em relação aos poderes legislativo, executivo e judiciário. Todavia, os aspectos ligados à defesa, relações exteriores e finanças são de responsabilidade exclusiva do governo do Paquistão.
Por fim, a Cachemira chinesa, tem pouco mais de 40 mil km2, tem apenas alguns milhares de habitantes e corresponde quase que totalmente a área conhecida como Aksai-chin. Esta área está ligada à região autônoma do Tibete chinês e é historicamente ligada a influência tibetana. Uma parte dessa região foi conquistada pela China à Índia em 1962.
Cachemira: diferentes concepções
A Índia defende uma concepção de Cachemira bastante ampla, levando em conta considerações de ordem histórica. Os indianos entendem como Cachemira a totalidade dos territórios que eram administrados pelo marajá da Cachemira no século XIX , monarca que obteve esses territórios por herança (Jamu), por compra (vale do Jhelum) e por conquista militar (Ladakh e Baltistão). Dentro dessa concepção geográfica mais ampla, o país reivindica a totalidade do território cachemir, inclusive as áreas que atualmente estão sob o controle do Paquistão e China.
Já o Paquistão tem uma concepção geográfica mais limitada que repousa sobre considerações sócioculturais nas quais tenta estabelecer uma ligação direta entre a identidade nacional cachemir e a religião muçulmana. Por conta disso, o país não reivindica senão uma parte do Jamu-Cachemira indiana, considerando inclusive que as porções orientais da região – o Ladakh e o Aksai-chin, não fazem parte da verdadeira Cachemira.
Todavia se o governo do Paquistão vê oficialmente a questão sob o ângulo da identidade religiosa, de forma não oficial, pesam os aspectos de ordem estratégica. Num eventual controle paquistanês sobre esses territórios, se abriria um novo acesso à China, uma tradicional aliada e, sobretudo permitiria ao Paquistão controlar amplos espaços drenados por todos os grandes rios que atravessam seu território, inclusive todo o médio vale do rio Indo.
Às dificuldades de delimitação geográfica da região junta-se uma outra incerteza quanto à existência da nacionalidade cachemir. Embora a maioria da população da região seja muçulmana, a Cachemira foi, ao longo dos séculos, um importante lugar para o hinduísmo e para o budismo antes de iniciado o processo de expansão islâmica datada do século XIV.
Esse rico passado pré-islâmico não desapareceu totalmente, fato que pode ser comprovado pela presença de mais de 1,5 milhão de não-muçulmanos vivendo na região. Assim, a Cachemira se caracteriza por uma heterogeneidade lingüística, cultural e étnica, fator que se reflete na dualidade quanto às definições de caráter identitário das populações autóctones. No interior dos movimentos que lutam contra o domínio da Índia, alguns privilegiam um combate de caráter religioso, onde fica expresso o desejo de integrar a região ao Paquistão. Outros, no entanto, lutam pela preservação de uma identidade nacional cachemir que busque independência num contexto pluriconfessional.


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