segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Moscou Impõe sua pax no Cáucaso

Nelson Bacic Olic  
No último dia 8 de maio, durante um desfile que comemorava os 57 anos do fim da Segunda Guerra Mundial, ocorreu um atentado que vitimou 41 pessoas na capital Daguestão, uma das repúblicas pertencentes à Federação Russa. As suspeitas iniciais sobre os possíveis autores do ato terrorista recaíram não só sobre nacionalistas daguestanos como principalmente sobre os separatistas que lutam pela independência da vizinha república da Chechênia. Assim como o Daguestão, a Chechênia também é uma das repúblicas que compõem a Rússia. Iniciava-se mais um capítulo do sangrento drama que se desenrola na turbulenta região do Cáucaso.
O Cáucaso é uma área montanhosa que apresenta grande complexidade étnica, nacional, religiosa e lingüística. De forma genérica, o Cáucaso se estende por uma área que envolve conjuntos montanhosos, planaltos e vales fluviais compreendida entre os mares Negro e Cáspio. A cadeia do Cáucaso propriamente dita, corresponde à parte mais importante e acidentada desse conjunto, que se estende por cerca de 1.200 km. no sentido leste-oeste e mais ou menos 200 km no sentido norte-sul. Tendo formação geológica recente, em alguns pontos da cadeia são atingem altitudes superiores a 5 mil metros.
Quanto aos Estados localizados na região temos o seguinte quadro: a parte sul, denominada Transcaucásia ou Cáucaso não-russo, compreende a Geórgia, a Armênia e o Azerbaijão, países conhecidos como repúblicas do Cáucaso e que, até 1991, fizeram parte da antiga União Soviética. Com a desintegração da URSS, tornaram-se independentes e hoje são filiadas à CEI (Comunidade de Estados Independentes). Na porção setentrional do Cáucaso, região dominada de Ciscaucasia ou Cáucaso russo, encontram-se 8 repúblicas e regiões autônomas que fazem parte da Federação Russa, dentre elas a República da Chechênia e do Daguestão.
Abrigando cerca de 25 milhões de pessoas, o Cáucaso se constitui numa zona de contato e confronto de duas "civilizações": de um lado a eslavo- ortodoxa, representada por populações de origem russa e a islâmica, composta por mais de vinte povos, com destaque para os azeris ou azerbaijanos, chechenos, iugushes entre outros.
Do ponto de vista lingüístico, a região é muito complexa. Há uma verdadeira Babel de línguas, com destaque para aquelas denominadas caucásicas já que são originárias da própria região, que por sua vez se apresentam subdivididas em pelo menos quatro grupos. O grupo mais numeroso de locutores das línguas caucásias é o georgiano. Além disso são encontradas línguas de origem indo-européia, como a falada na Armênia e outras classificadas como do ramo turco, cujo melhor exemplo é aquela utilizada no Azerbaijão. No mosaico lingüístico do Cáucaso são encontradas mais de 40 línguas diferentes, sem contar o russo, o idioma do grupo que se impôs na região nos últimos dois séculos.
Água e petróleo
A configuração do relevo desempenha um importante papel na separação das áreas que compõem o conjunto montanhoso do Cáucaso. Assim, tanto nas áreas mais elevadas como nos planaltos, os vales definem pequenas unidades morfológicas onde, ao longo da história, diferentes grupos se estabeleceram buscando refúgio. Esse espaço extremamente fragmentado física e politicamente é local de enfrentamentos entre comunidades diferentes, algumas delas possuindo rivalidades muito antigas.
A compartimentação do relevo induziu a disposição da rede hidrográfica, impôs passagens ou contornos às vias de comunicação, separou diferentes povos e chegou a influir até no formato dos territórios nacionais, Assim, no flanco norte da cadeia, o formato dos países é, de forma geral alongado no sentido norte-sul seguindo, grosso modo, as vias de penetração que cortam os blocos montanhosos. Já na Transcaucásia, o formato dos países tende a ser um pouco mais alongado no sentido leste-oeste, seguindo parcialmente os dois principais eixos fluviais (rios Koura e Araxe), que cortam a Geórgia, Armênia e Azerbaijão.
No Cáucaso além dos conflitos, se superpõem inquietações permanentes a respeito do controle dos vales, das águas, das vias de comunicação e também de oleodutos que atravessam a área, a qual apresenta importantes jazimentos do petróleo no Azerbaijão, junto ao mar Cáspio. Em função de suas ligações históricas, de sua importância estratégica e econômica é que a Rússia sempre se interessou por tudo o que acontece nessa acidentada e conturbada região do planeta.
A presença russa no Cáucaso
A conquista russa sobre o Cáucaso verificou-se em diversas etapas. A primeira delas aconteceu no reinado de Catarina II (1762/1796), quando foram estabelecidas linhas de defesa russas nos contrafortes da porção setentrional da região. A partir daí a conquista seguiu dois itinerários: na parte central, atravessando os desfiladeiros que permitem cruzar a grande cadeia montanhosa no sentido norte-sul e, à leste, margeando o litoral do mar Cáspio.
A segunda fase iniciou-se em 1801, quando da anexação russa da Geórgia, que se constituiu no ponto a partir do qual se processou a conquista de toda a Transcaucásia. Por fim, a terceira fase foi a conquista das regiões ocupadas pelos aguerridos povos montanheses e que só terminou por volta de 1870. Contudo, apesar de derrotados, esses povos nunca deixaram de opor resistência ao domínio russo. O desaparecimento do Império Russo e o advento da URSS não mudaram no essencial a situação pré-existente.
Durante a Segunda Guerra Mundial, tradicional animosidade entre russos e povos do Cáucaso, levou alguns grupos locais se aliarem aos nazistas quando, entre 1941/42, os alemães conseguiram ocupar expressivas áreas da região. A retirada alemã, após sua derrota na batalha de Stalingrado, fez com que o governo soviético ordenasse a deportação em massa dos povos que haviam colaborado com os germânicos durante a ocupação.
Assim, entre o final de 1943 e os primeiros meses de 1944, centenas de milhares de pessoas foram deportadas e colocadas em “zonas de povoamento especiais” em áreas da Ásia Central, isoladas do contato com outros grupos humanos, proibidos de usar sua língua materna e vivendo em condições extremamente precárias. É interessante notar que o governo de Stalin não puniu apenas os que se aliaram aos nazistas mas, todos os indivíduos componentes do grupo nacional. Passaram por essa situação os karatchais, os balkars, os chechenos, os ingushes, entre outros.

Em 1956, três anos após a morte de Stalin, seu sucessor, Nikita Krushev, reabilitou todos os povos punidos e permitiu seu retorno a seus locais de origem, que em alguns casos já estavam ocupados por outros grupos, gerando novos problemas que se arrastam até hoje.
A última tentativa (por enquanto) de desafio à hegemonia russa no norte do Cáucaso, aconteceu na República da Chechênia a partir de 1991. Antes da desintegração da URSS, no interior da República da Russa (uma das 15 que formavam a URSS), havia uma república autônoma, a da Chechênia-Iugushia, que reunia os dois povos que lhes davam o nome.
Em setembro de 1991, nos momentos conturbados que antecederam o fim da URSS, um militar de origem chechena, o general Djokar Dudaiev, chegou ao poder na Chechênia. Alguns meses mais tarde, quando a URSS não mais existia, Dudaiev se recusou a assinar o tratado de adesão à Federação Russa e, imediatamente proclamou a independência da Chechênia. Quase ao mesmo tempo, os iugushes formam sua própria república mas, aderiram à Rússia.
O governo de Moscou não reconheceu a independência da Chechênia mas, só em dezembro de 1994 ordenou uma intervenção militar. A desorganização das forças russas e a encarniçada resistência dos chechenos fizeram o conflito se prolongar até agosto de 1996. O fim da chamada primeira guerra da Chechênia teve um saldo trágico de vítimas fatais: cerca de 15 mil soldados russos, 10 mil guerrilheiros e mais de 80 mil civis. Mais ou menos 80% da cidade de Grozni, a capital chechena, foi destruída e o número de refugiados chegou a 350 mil. Um dos pontos dos acordos de paz que pôs fim ao conflito, estipulava a discussão sobre o futuro político da Chechênia para depois do ano 2000.
Todavia, em setembro de 1999, a opinião pública russa ficou traumatizada por uma série de atentados atribuídos, sem nenhuma prova concreta, a terroristas chechenos. O presidente russo Vladimir Putin, fez da ocasião um pretexto para desencadear uma segunda guerra contra a Chechênia, mais mortífera que a primeira.
Em 2000, Moscou anunciou o fim das operações militares. No entanto, os atentados contra as tropas de ocupação russa se multiplicaram. As represálias das forças russas se voltaram contra a população civil acusada de apoiar os rebeldes. Assim, passaram a ocorrer bombardeios indiscriminados sobre as cidades e aldeias, torturas, violações, detenções arbitrárias, pilhagens e execuções sumárias. Organizações internacionais e russas de Direitos Humanos passaram a acusar o governo russo de cometer crimes de guerra em larga escala.
O destino da Chechênia para a Rússia pode ser analisado pelo menos sobre dois pontos de vista. O primeiro deles, é eminentemente político: um eventual sucesso do separatismo checheno, provavelmente levaria outras repúblicas da Federação Russa seguir seu exemplo, situação que fatalmente levaria a uma amputação significativa do território atualmente sob o controle de Moscou.
A outra dimensão tem caráter econômico e refere-se às formas de escoamento dos expressivos recursos energéticos, petróleo e gás natural, existentes na Ásia Central e no Azerbaijão. Por exemplo, para se levar o petróleo das enormes reservas do Azerbaijão, para o Mar Negro através do território russo, o caminho mais indicado para o escoamento do produto é um oleoduto que passa pelo território checheno. Daí a necessidade de uma Chechênia "pacificada".
A "pacificação" posta em prática pelo presidente Putin, ganhou impulso a partir de 11 de setembro de 2001. Ao apoiar de forma inconteste a estratégia norte-americana de guerra ao terror, os principais governos do Ocidente, especialmente o dos Estados Unidos, deram carta branca para que Moscou impusesse uma "pax " russa à Chechênia.

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